Um país que não enfrenta os seus mortos acaba governado pelos seus fantasmas
Quem confunde a serenidade democrática com a anestesia histórica ou não percebe o que é a democracia, ou teme o seu verdadeiro significado
Analista de assuntos europeus e política internacional
Quem confunde a serenidade democrática com a anestesia histórica ou não percebe o que é a democracia, ou teme o seu verdadeiro significado
Na análise da história e da política espanholas, poucas constantes são tão certas como o regresso de Franco sempre que é preciso forjar comparações absurdas ou quando as eleições negam a um partido o governo que julgava seu por direito. O artigo publicado no Expresso sobre Franco, Pedro Sánchez e Portugal força-nos a escolher entre duas interpretações: ou vemos a evocação de Franco como um mero estratagema propagandístico de Sánchez, ou incorremos na “ingenuidade” de acreditar que a história merece, de facto, ser revisitada.
Esta divisão simplista assenta numa premissa pueril. A história de um país não se apaga ao sabor das urgências partidárias, nem se resgata apenas para eleições. Quando o autor sugere que o resgate da memória é um expediente “divisionista”, revela uma miopia perigosa: recusar o confronto com as verdades incómodas é alimentar mitos que envenenam o presente. Negar o passado não apaga as feridas – apenas as mantém abertas para que voltem a sangrar. Nenhuma sociedade democrática pode sobreviver sem encarar o seu passado com honestidade.
Mas o erro não reside apenas na forma: sobretudo, está no conteúdo. Ao descrever a Transição espanhola como um pacto de elites virtuoso, tecido entre monárquicos e republicanos, falangistas e comunistas, o texto cristaliza a narrativa de uma concórdia que nunca foi verdadeiramente justa. Foi, antes, um compromisso imposto pela necessidade, sob o olhar atento dos militares e com o fantasma da guerra civil a pairar como ameaça.
Este olhar seletivo perpetua-se também no silêncio sobre a Lei da Amnistia de 1977, que o autor discretamente omite – talvez por entender que algumas amnistias serão idóneas e outras nem tanto. Mas esta não foi um perdão magnânimo: foi um pacto de silêncio imposto às vítimas do franquismo, um biombo jurídico que consolidou a impunidade dos crimes da ditadura. Espanha optou por virar a página sem ler o último parágrafo e ignorar essa realidade é mistificar a história com um verniz que jamais resistiria a um escrutínio isento. O perdão cabe ao ofendido – e há muitos ofendidos que pagaram por um crime que não perpetraram.
Não surpreende, portanto, que o mesmo padrão de negação ressurja quando o autor acusa José Luís Rodríguez Zapatero e a Lei da Memória Histórica de um “exercício divisionista de reescrita da história”. Essa acusação revela não só uma alergia à justiça, mas também uma adesão cega à ideia de que a memória coletiva deve ser um terreno de esquecimento – desde que esse esquecimento favoreça os vencedores de ontem. Revisitar a história, desenterrar cadáveres, remover estátuas, destituir os vestígios simbólicos do autoritarismo: tudo isto não é capricho ideológico, mas um imperativo moral. A memória é o lugar onde guardamos o que fomos para podermos ser o que somos – só a memória torna possível a verdadeira justiça.
É a democracia a reclamar a verdade que o pacto da Transição ocultou sob o manto do silêncio. Chamar-lhe “revisionismo” é uma inversão aberrante de responsabilidades: revisionismo foi, isso sim, o que o franquismo praticou durante quarenta anos, reescrevendo o que aconteceu ao sabor da sua vitória militar. A manipulação do passado é a manipulação do presente.
A obsessão pela “divisão” expõe também um equívoco sobre a natureza da democracia. Uma democracia não se alimenta da unidade forçada, nem da paz podre que evita confrontar os seus próprios fantasmas. Alimenta-se, pelo contrário, do conflito civilizado, do debate crítico, da memória aberta e plural. É esta dinâmica que verdadeiramente está em causa: Sánchez, ao retomar o debate sobre Franco, não ameaça a coesão nacional. Ameaça, sim, o conforto das elites herdeiras da Transição – recordar que a Aliança Popular, antecessor do atual Partido Popular, foi fundada por seis ex-ministros de Franco: Manuel Fraga Iribarne, Cruz Martínez Esteruelas, Federico Silva Muñoz, Laureano López Rodó, Gonzalo Fernández de la Mora e Licinio de la Fuente — que prefeririam continuar a fingir que a democracia espanhola nasceu sem mácula.
Insinuar que mexer na memória histórica equivale a reabrir feridas é, portanto, inaceitável. As feridas nunca sararam porque nunca foram tratadas – foram apenas escondidas. Recicla-se assim a narrativa habitual da direita espanhola: o PSOE instrumentaliza Franco para disfarçar as suas fraquezas, como se o espectro do ditador fosse um truque barato de prestidigitação política. Mas este raciocínio, para lá de simplista, é sobretudo indigno. A democracia não se reforça pela amnésia. Refaz-se, sim, pelo trabalho paciente de identificar, conhecer e julgar simbolicamente os responsáveis pela opressão. A questão não é Sánchez ou Zapatero: é saber se um Estado democrático deve tolerar a celebração de um ditador sem comprometer a sua própria legitimidade.
Perante esta questão maior, o autor prefere desviar-se para o comentário miúdo: que Sánchez recorre a Franco quando a justiça lhe bate à porta. Estratégia, no mínimo, curiosa. Se o problema é a corrupção, que se julgue. Se o problema é a memória, que se discuta. A mistura das duas serve apenas quem não quer enfrentar nenhuma delas — e nem o autor nem o Partido Popular quererão certamente falar dos mais de trinta casos judiciais pendentes ou da mais recente investigação sobre Cristóbal Montoro, ministro das Finanças de Mariano Rajoy.
Ainda mais frágil se revela a evocação do “milagre económico espanhol”, que sugere que o crescimento económico compensa a ausência de liberdade. O autor desfila números de crescimento, de turismo, de urbanidade emergente, como se o Produto Interno Bruto (PIB) tivesse o poder de lavar a repressão, a tortura, os fuzilamentos, a censura, a castração cultural. Mas de que vale a uma sociedade crescer economicamente se permanece aprisionada politicamente?
Convém lembrar que a liberdade não se mede em percentagens do PIB. Confundir desenvolvimento económico com progresso social continua a ser o velho embuste tecnocrático de todas as ditaduras: a receita de Pinochet, de Salazar, de Franco. Sempre o mesmo logro com prazo de validade: modernização sem liberdade é um castelo de areia, ideia que Felipe González – que o autor tanto elogia – sem dúvida defenderá.
Neste ponto, não menos criticável é a tentativa de transformar Franco num estadista prudente que, face aos apelos do Presidente Gerald Ford, teria recusado intervir em Portugal para não agitar a nossa revolução. Aqui o autor roça a hagiografia, pintando o velho caudilho como mestre da prudência geopolítica, quando Franco já não tinha saúde, nem apoio interno, nem condições internacionais para aventuras militares. O povo português, longe de ser um elemento de esperança para Franco, era apenas mais um pretexto para justificar a própria paralisia. A história, já devíamos saber, não se deve escrever com indulgências póstumas.
Em vez de celebrarmos sonambulamente o pacto de silêncio, deveríamos discutir como pode uma democracia europeia continuar a tolerar a glorificação encapotada de um ditador, como se a sua memória fosse apenas uma peça de museu e não um cadáver mal enterrado. É isso que Sánchez, com todos os seus defeitos – que são muitos, desde não se ter sabido rodear até ter pactuado com os herdeiros do braço político da ETA – se propõe fazer: lembrar aos espanhóis que a democracia não se constrói a partir do esquecimento.
E, no entanto, o autor que tão dramáticamente denuncia a “espiral divisionista” de Sánchez, não perde sequer tempo a mencionar o VOX. O regresso sem disfarce do franquismo político, que defende no Congresso e nas ruas o breviário da Falange com um sorriso. Fala-se de Franco, acusa-se Sánchez de necromancia política, mas esquece-se, convenientemente, que o cadáver nunca foi exumado – porque tem sucessores vivos, organizados, com votos, influência e poder. Confirma-se, portanto, a máxima de que não é preciso muito para dizer pouco: basta omitir o essencial. O essencial é que o inimigo da democracia espanhola não precisa de ser ressuscitado pelo PSOE – já cá está, legitimado por coligações regionais com o Partido Popular, que o autor também se abstém de mencionar ou censurar.
Nunca é tarde para corrigir a história. Mesmo que doa, mesmo que incomode, mesmo que obrigue a recontar o passado – porque o esquecimento é das formas mais cruéis de vingança e o revisionismo um dos seus instrumentos. A história de Espanha não começou em 1978, nem terminou com a morte de Franco. Quem confunde a serenidade democrática com a anestesia histórica ou não percebe o que é a democracia, ou teme o seu verdadeiro significado – e ambos os casos são igualmente perigosos.
Porque um país que não enfrenta os seus mortos acaba governado pelos seus fantasmas.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt