A Constituição portuguesa garante as liberdades individuais mais inalienáveis: liberdade de pensamento (artigo 41.º), liberdade de autodeterminação (artigo 26.º) e liberdade de expressão (artigo 37.º). Mas não há verdadeira liberdade se, ao mesmo tempo, não estiverem garantidas as condições mínimas de dignidade humana: habitação, salário justo, segurança em caso de doença ou desemprego, acesso à saúde e à educação. Isso mesmo já foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional, quando, a propósito de uma tentativa de restrição do rendimento mínimo garantido, não deixou de frisar que “o princípio do respeito da dignidade humana, proclamado logo no artigo 1º da Constituição e decorrente, igualmente, da ideia de Estado de direito democrático [...] implica o reconhecimento do direito ou da garantia a um mínimo de subsistência condigna” (cfr. Acórdão n.º 509/2002).
Em suma, não há Liberdade sem Igualdade. Quem é desigual permanece prisioneiro. Cativo de si mesmo. Da sua condição de nascença, da sua fome, da sua ansiedade financeira, da sua doença, da sua falta de tempo para pensar, aprender, rir, usufruir da cultura e, até, para nada fazer.
Na verdade, também não existe verdadeira liberdade de iniciativa privada (artigo 61.º) ou sequer a possibilidade de deter propriedade privada (artigo 62.º) se não se garante essa igualdade de partida. Pode uma criança de um bairro social aspirar a ser senhoria? Ou a ser CEO de um unicórnio, quando não dispõe de capital de partida cedido por um familiar?
A propósito do recente debate sobre o plano do Governo sobre políticas de habitação, houve quem invocasse esse direito à propriedade privada (no caso, donos e senhorios de prédios), e esse outro direito à iniciativa privada (neste caso, agentes económicos dedicados ao alojamento local e à promoção imobiliária), como se quem não tem condições financeiras para adquirir ou arrendar uma casa não dispusesse desse mesmíssimo direito à propriedade privada, de modo ainda mais intenso, por estar dele privado. Estamos, hoje, confrontados perante uma situação em que, de um lado, temos aqueles que, por via de acumulação histórica de riqueza, dispõem de património imobiliário acima das suas reais necessidades de habitação, e, do outro lado, aqueles que, mesmo trabalhando arduamente e recebendo salário, jamais conseguirão adquirir ou sequer arrendar uma habitação condigna.
A ideia de que quem açambarcou património imobiliário o fez apenas pela força do seu mérito e do seu esforço pessoal é profundamente egoísta. Perigosa. E até insultuosa. Esquece que, se assim fosse, os que não dispõem de condições económicas para adquirir ou arrendar casa (nessa errada e perigosa perspetiva) apenas se encontrariam nessa situação porque, afinal, não teriam mérito, não se teriam esforçado ou não seriam dignos de uma vida igual aos demais. Como bem explica, Michael Sandel, Professor em Harvard, essa visão encerra uma verdadeira Tirania do Mérito, segundo o qual cada pessoa teria o sucesso (e o fracasso) que merece. Essa visão redutora e legitimadora da desigualdade é inaceitável numa democracia madura e respeitadora dos direitos sociais. Está mais do que certa a denúncia de Sandel, segundo o qual “A arrogância meritocrática (das elites) reflete a tendência de os vencedores se deixarem inebriar demasiado com o seu próprio sucesso e esquecerem a boa sorte e as circunstâncias favoráveis que os ajudaram ao longo do seu percurso” (p. 34), pelo que “O ideal meritocrático não é um remédio para a desigualdade, mas uma justificação da desigualdade” (p. 146).
Hoje, assiste-se a uma clivagem dramática entre as gerações que tudo tiveram e as novas gerações, que apenas podem ambicionar umas migalhas assistencialistas, do Estado, da família e dos empregadores.
Segundo o Livro Branco Mais e Melhor Emprego para os Jovens, publicado em 2022 mas reportado a dados de junho de 2021, 33,9% dos jovens até aos 25 anos apenas auferem o salário mínimo nacional. E a percentagem mantinha-se nuns preocupantes 25,8% quanto aos jovens entre os 25 e os 29 anos. Para além disso, o salário médio dos jovens entre os 25 e os 34 anos tinha estagnado em 2019, encontrando-se ao mesmo nível de 2010, depois de uma quebra abrupta entre 2010 e 2015 e uma recuperação significativa entre 2015 e 2019, até nova queda provocada pela pandemia de Covid-19. É ainda mais impressivo que tenha ocorrido uma queda preocupante do salário real, entre 2010 e 2019, de 4,6% para detentores do curso secundário, de 14,5% para os licenciados, de 5,1% para mestres e de 5,6% para doutorados.
Aliás, o prémio salarial para licenciados – isto é, a mais-valia financeira decorrente da subida da remuneração de quem tem habilitações académicas – tem vindo a diminuir, sistematicamente. Também segundo o referido Livro Branco, em 2010, um jovem licenciado auferia, respetivamente, mais 95% e mais 59% do que aqueles que apenas detivessem o ensino básico e secundário. Ora, em 2019, essa diferença baixou para, respetivamente, mais 60% e mais 42%. Significa que já começa a nem sequer compensar, à “mais preparada geração de sempre”, o aprofundamento de estudos e de formação académica. Quando comparados com trabalhadores e dirigentes de gerações mais velhas, vêem a sua progressão profissional barrada e estagnam, anos após anos.
Bem significativo da sociedade envelhecida e conformada em que nos tornámos, ninguém bradou – como bradam, agora, contra medidas corretivas das desigualdades que sofrem as gerações mais novas e aqueles que menos têm – contra a peregrina (e interesseira) solução introduzida, pelo Decreto-Lei n.º 6/2019. Aditando um novo artigo 294.º-A à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, permitiu que funcionários públicos – em regra, de topo como técnicos altamente especializados com funções de direção (professores, médicos, economistas, engenheiros) – pudessem continuar a trabalhar para lá dos 70 anos de idade, até aos 75 (!) anos. Que não haja enganos: é salutar e benéfico para o interesse geral poder continuar a contar com o saber de profissionais de excelência. Porém, sem prejuízo desse dever de promoção do envelhecimento ativo (que, no entanto, pode ser conseguido através de voluntariado, prestação de serviços à comunidade e de formação pós-profissional), é inaceitável que a lei não vede o exercício de cargos diretivos, de funções de coordenação e de comissões de serviço àqueles que já se encontram aposentados.
Aliás, face ao fechamento das estruturas diretivas das empresas e da administração pública – que impedem a progressão das gerações mais novas e a assunção de experiência diretiva – talvez seja mesmo chegada a hora de discutir a fixação de mecanismos corretivos dessa concentração etária. Por exemplo, através de:
- Proibição de renovação sucessiva de comissões de serviço;
- Estabelecimento de limites legais à manutenção de funções de coordenação e direção;
- Fixação de quotas etárias, que garantam uma representatividade adequada dos profissionais em início de carreira.
Evidentemente, não tem interessado falar dessas políticas públicas. Porque elas não rendem votos. Os eleitores mais novos abstêm-se sistematicamente e, por força da inversão da pirâmide demográfica, a faixa etária dos 60 aos 80 anos constitui uma decisiva força eleitoral, que acaba por decidir que partido ganha eleições. Por outro lado, são também essas classes etárias que dominam o mundo empresarial e que têm espaço na comunicação social, silenciando a voz dos mais novos.
Falo abertamente de realidades que conheço bem: um jovem assistente convidado universitário recebe cerca de 700 € líquidos para lecionar aulas, investigar, publicar obra científica, preparar aulas, avaliar alunos, colaborar com os professores mais antigos, participar nos órgãos de governo das faculdades, autoavaliar-se. Há inúmeros jovens advogados estagiários a não receber qualquer remuneração durante o estágio e jovens advogados que apenas subsistem à espera dos pagamentos de oficiosas. E há jovens jornalistas (e não tão jovens) com contratos a prazo sucessivamente renovados, a receber senhas de refeição ou a receber apoios de deslocação. Ao ponto de os próprios se terem organizado e recolhido informação anónima sobre os salários praticados nos principais órgãos de comunicação social, que pouco superam o valor líquido do salário mínimo nacional de 760 € e, mesmo em profissionais com vários anos de carreira e com funções de direção ou edição, raramente atingem os 1.600 € líquidos. Em todos estes casos, é-lhes imposto que usem os seus próprios recursos (computadores pessoais, telemóveis, dados móveis, telefonemas) para prestar o seu trabalho, na medida em que não lhes são fornecidos esses equipamentos essenciais à sua profissão.
De modo a preparar o presente artigo, tive o cuidado de auscultar pessoas em cada uma daquelas situações; todos eles, jovens em início de carreira. Os testemunhos são generalizados: não conseguiriam exercer as suas profissões se não dispusessem do apoio financeiro dos pais e de familiares próximos ou se não dividissem casa com amigos ou desconhecidos. Ora, 77% dos jovens que arrendam um quarto e/ou partilham casa consideram não dispor da privacidade que a Constituição lhes confere (artigo 26.º). Daí à impossibilidade de repouso efetivo, à incapacidade para estabelecer relações estáveis e satisfatórias e à impossibilidade de constituir família.
Chega-se, portanto, a uma conclusão preocupante: e quem não tem pais que possam ajudar? Evidentemente, esses – os pobres, os desvalidos, os que vêm de famílias desestruturadas – não têm direito sequer a ser. Quanto mais a ter. Não podem ser professores universitários, mesmo que tenham sido alunos de excelência. Não podem ser advogados estagiários, mesmo que essa seja a sua vocação. Não podem ser jornalistas, mesmo que tenham superado todas as provas e mantenham o brilho nos olhos, quando se fala de investigação livre. Porque ninguém sobrevive, sem ajuda, vivendo apenas de um salário mínimo e tendo que comprar livros, computadores, telemóveis e, por cima disto tudo, alimentar-se, pagar casa, transportes e sobreviver.
Pergunto, agora, eu: pode verdadeiramente ser-se livre nestas condições? Pode um professor e investigador universitário exercer plenamente a sua liberdade académica e de pensamento – se necessário, contrariando a opinião de quem o avalia – se não dispuser da independência económica para divergir? Pode uma advogada recusar agir contra a lei, seguindo instruções de cliente ou de advogado coordenador, se precisar de dinheiro ao final do mês para saldar as suas dívidas? Pode um jornalista investigar livre e independentente, mesmo indo contra os interesses dos acionistas ou dos patrocinadores do seu órgão de comunicação social, se vive receoso de ser despedido ou de não lhe renovarem o contrato, perdendo, assim, a capacidade de pagar a renda da casa ou de pagar as suas contas mensais? Pode recusar-se a escrever certas notícias ou a cobrir certos acontecimentos, quando contrários à ética jornalística?
Os direitos fundamentais não existem apenas no papel, envoltos pela beleza das divagações teóricas. Só haverá liberdade de ensinar e de aprender, liberdade de imprensa e liberdade de pensamento se houver condições objetivas e efetivas para a sua efetivação. Ninguém é livre com fome. Ou com medo de não ter como pagar a renda da casa. Ou quando vive num permanente estado de ansiedade financeira, por recear adoecer e não ter meios para cuidar de si e dos seus. Ainda assim, continua a haver forças sociais e económicas que querem as pessoas quebradas, para que não reajam.
Por tudo isto, não posso deixar de saudar aqueles que ontem se manifestaram em defesa de uma “Vida Justa”, pedindo, no fundo, que a Constituição de Mário Soares, de Sá Carneiro, de Jorge Miranda, de Sophia de Mello Breyner, de António Arnaut e de Emídio Guerreiro se concretize: que se assegure a tod@s uma vida condigna.
Com Paz, Pão, Habitação, Saúde, Educação, como canta o Sérgio Godinho.
Ser-se livre exige tudo isso.
Para que as (pretensas) liberdades económicas de uma minoria privilegiada não esmaguem a liberdade da maioria.
Liberdade para se ser feliz. Liberdade para se ser inteiro.