Pelo que sabemos dos projectos de revisão da Constituição que já foram entregues e que o vão ser, apesar dos anúncios de reforço dos direitos fundamentais, surge latente uma vontade contraditória de os reduzir ou mesmo eliminar
Aos poucos, habituámo-nos (ou fizeram com que nos habituássemos) à conversa paternalista de que os direitos são sinónimo de privilégios ou de regalias. Sob o pretexto de sucessivas crises – primeiro, a financeira; depois, a sanitária; agora, a que decorre da guerra e da inflação –, pé ante pé, procuram ainda convencer-nos que o único caminho é o da redução de direitos da maioria de nós.
Amanhã, encerra-se o período fixado pela Constituição para a apresentação de propostas de revisão constitucional por qualquer Deputada/o.
Primeira nota de preocupação: pelo menos à luz do discurso no espaço público, os projetos de revisão constitucional tornaram-se propriedade dos diretórios partidários. São anunciados por dirigentes partidários, são encomendados a peritos externos ao parlamento, são estranhos à discussão efetiva no seio dos grupos parlamentares. A falta de autonomia daqueles que elegemos para o Parlamento face aos diretórios partidários é um claro sinal da degradação da vida pública e da incapacidade de recrutamento dos mais preparados para o exercício de cargos políticos. Mas também da falta de coragem individual de cada um/a desses/as Deputados/as.
Por alguma coisa a Constituição confere exclusivamente aos Deputados o poder de iniciativa de revisão (artigo 285.º, n.º 1). Os fundadores do regime democrático entenderam que a alteração da Lei Fundamental deveria estar blindada contra tentativas externas de a desvirtuar ou perverter, designadamente, de outros poderes, sejam eles o executivo, o económico, as magistraturas ou os grupos de interesses. O pior serviço que se lhe pode prestar é moldá-la, oportunisticamente, à vontade momentânea de quem governa e transformando-a num mero instrumento para solucão de problemas de intendência suscitados pelo calor do momento.
Ainda sem conhecer a fundo o teor concreto de todos os projetos (note-se que, até hoje, ainda só deu entrada no Parlamento aquele que deu início ao processo de revisão), mas fazendo fé nas notícias recentes sobre a intenção de os demais grupos parlamentares irem a jogo, pode extrair-se uma segunda conclusão: apesar dos anúncios de reforço dos direitos fundamentais, surge latente uma vontade contraditória de os reduzir ou mesmo eliminar.
Senão, veja-se.
Toldados pela espuma dos dias, os únicos dois partidos que podem verdadeiramente fazer aprovar uma revisão – uma vez, que ela requer maioria de dois terços (artigo 286.º) – aparentam pretender eliminar a proibição de privação da liberdade pessoal de portadores de doenças infetocontagiosas sem prévia autorização judicial (artigo 27.º, n.º 2) e eliminar a proibição de que meros serviços administrativos possam ter acesso aos nossos dados eletrónicos e telefónicos recolhidos durante a comunicação com terceiros (vulgo, metadados), sem que esteja pendente qualquer processo criminal e haja intervenção de autoridade judiciária (artigo 34.º, n.º 4). De modo ainda mais bizarro (e confrontacional com o modelo de sociedade que adotámos), o projeto inicial de revisão apresentado por um grupo de Deputados recém-eleitos vai ao ponto de:
- introduzir uma autorização constitucional para imposição de tratamentos químicos forçados a quem seja mero suspeito de prática futura de crimes sexuais (artigo 25.º, novo n.º 3);
- permitir a obtenção e utilização abusivas ou contrárias à dignidade da pessoa humana de informações sobre as pessoas e as famílias, quando se entenda estar em causa “razões de segurança pública” (artigo 26.º, n.º 2);
- extinguir a proibição de entrada no domicílio e de consulta de correspondência, também por essas “razões de segurança pública”, quando esteja em causa a suspeita de cometimento de crimes especialmente graves (artigo 34.º, n.º 1);
- reintroduzir a pena perpétua (artigo 30.º);
- proibir que cidadãos portugueses naturalizados possam exercer o cargo de Primeira/o-Ministra/o.
Sucede que, conforme ensinava Ronald Dworkin (talvez o mais reputado constitucionalista norteamericano), os direitos fundamentais são escudos que cada pessoa pode envergar contra a arbitrariedade e os excessos dos poderes públicos. Que alguns Deputados possam julgar admissível destruir ou confiscar esses escudos é algo só próprio de um tempo, nubloso e sombrio, de autoritarismo crescente.
Uma terceira nota vai para o aparente desconhecimento sobre os limites do poder de revisão constitucional: a própria Constituição proíbe, na alínea d) do seu artigo 288.º, a eliminação ou a redução substancial dos direitos, liberdades e garantias. É o que se apelida de limite material de revisão. Que, aliás, por se tratar de um limite transcendente, nem sequer poderia ser eliminado do texto constitucional, por via de uma dupla revisão. O entendimento maioritário entre os constitucionalistas tem ido no sentido de que, mesmo que fosse admissível uma redução do âmbito de proteção desses direitos (o que é altamente discutível), pelo menos, o seu conteúdo essencial teria sempre de ser protegido.
Curiosamente, quer a revisão constitucional de 1997 – com a introdução da possibilidade de detenção de suspeitos para identificação [atual alínea g) do n.º 3 do artigo 27.º] –, quer a revisão constitucional de 2001 – que introduziu a possibilidade de entrada no domicílio durante a noite, quando haja flagrante delito ou autorização judicial, em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada [atual artigo 34.º, n.º 3, in fine] –, já introduziram verdadeiras diminuições da esfera de proteção desses direitos fundamentais. Sem que se tivesse levantado especial clamor contra ela.
O problema é que o atual ambiente de restrição progressiva das liberdades individuais e a emergência de autoritarismos de todo o género obrigam a uma especial cautela, quando se avança para uma mudança tão profunda como a que implica a revisão da nossa Constituição.
Ora, muitas das propostas de revisão que hoje se conhecem procedem a uma flagrante eliminação ou redução desses direitos. O que faz surgir um risco sério de inconstitucionalidade da própria lei de revisão constitucional.
Na prática, não só um grupo de 23 Deputados pode requerer a sua fiscalização pelo Tribunal Constitucional, como cada concreta pessoa que vier a ser prejudicada pela aplicação das (eventuais) novas normas pode invocar essa inconstitucionalidade perante os tribunais. O que, decerto, gerará incerteza jurisprudencial e a confusão generalizada em inúmeros processos judiciais.
Para que as gerações futuras não digam que lhes deixámos um país (e um mundo) mais intolerante, mais agressivo e mais securitário – em que as liberdades individuais são apenas uma nota de pé de página, enquanto as exigências quotidianas de eficácia dos poderes públicos dão título à obra –, é imperioso que quem vai, nos próximos meses, exercer poder constituinte pense para além do dia-a-dia.
A Constituição tem limites.
E a paciência também.
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