Decidi desta vez trazer o relato de Helena.
Não conheço pessoalmente esta leitora, na casa dos cinquenta, a assumir-se “estruturalmente urbana”, que fez muita coisa nas últimas décadas na área da comunicação e da cultura, na grande metrópole.
Mas há seis anos, foi forçada a deixar Lisboa, onde morou boa parte da sua vida, pelo sufoco económico de tanta gente, por ser impossível continuar a pagar teto, e outras questões pessoais.
Quis partilhar esta história porque traz outra perspetiva a uma newsletter que assinei recentemente a que chamei, em homenagem ao Fausto, “Lembra-me um sonho lindo.”
E se, nessa dita prosa, eu dava conta do lado bom (e até inspirador) da fuga das grandes cidades, aqui reflito sobre o avesso do tema.
Porque obviamente muitas saídas da capital não são desejadas e nem tudo é positivo no interior do país. Há experiências que trazem outras importantes inquietações. Talvez se reconheçam nelas. Ou pasmem. Ou talvez não.
Uma fuga indesejada
Helena afastou-se da sua “Lisboa, Tejo e tudo” a contragosto, mas “com esperança”, por gostar de desafios e acreditar no potencial de progresso contido na mudança.
Partiu com cães, bagagens e fé. Primeiro para uma casa de família na Beira Litoral e depois para uma vila do Alto Alentejo, onde Helena encontrou uma casa à sua medida, a bom preço. Nunca antes tinha estado naquele lugarejo. Mas é lá que ainda hoje mora.
Esta leitora contou-me que se sustenta com um “teletrabalho intermitente” e lida como pode e sabe com o isolamento sério da interioridade portuguesa e alguma “hostilidade” da vizinhança local. Mas comecemos pela parte cativante na vida do campo:
“Há aqui muita fauna e flora para descobrir, o que continua a encantar-me. O custo de vida é mais comportável e o tempo escorre devagar, num ambiente mais tranquilo.”
O país esquecido no mapa
Ao mesmo tempo, Helena tem testemunhado o esquecimento a que esta região foi votada (como boa parte do interior do país), ao longo de séculos e, em particular, nos últimos quinze anos. É o país que é ainda margem e paisagem.
O que se traduz numa realidade sócio-económica, política e cultural ressentida, em que “machismo rima com alcoolismo” — desconfio que com racismo também — em que “a consanguinidade resultante do isolamento classista deixou marcas”.
Os acessos são limitados e a oferta é escassa, sem oportunidades que não estejam ligadas à agricultura (tomate, azeitona e cortiça) ou à restauração, que atraem mão-de-obra estrangeira pouco qualificada, tolerada por necessidade e comodismo, numa localidade com perspectivas curtas e uma inércia conservadora, que “tende a desconfiar de quem não nasceu cá.”
Está bonito o postal do interior ‘tuga’ alentejano, não está?
Má língua e mau beber
De acordo com o que me conta Helena, a segunda atividade local mais popular é “a maledicência”, logo a seguir à “embriaguez” - ambas evasivas. Ambas destrutivas.
As notícias locais são baseadas no tricotar de longas mantas e mangas da vida alheia, já que nada de relevante acontece nas imediações, para além dos eventos demográficos comuns: quase todas as semanas morre alguém, raramente nasce uma criança.
Felizmente os incêndios não chegaram a esta vila, como tantas outras do país, com uma população envelhecida, com 2300 habitantes, dos quais só cerca de metade são residentes (bastante habitação secundária, muitas casas devolutas, algum alojamento local).
Pelas palavras de Helena:
“A junta de freguesia sofre de apatia crónica, a farmácia e o multibanco são filhos únicos, o posto de saúde não tem médico, os dois mini-mercados conjugam o mínimo denominador comum, o talho resiste, o centro cultural passa apenas um filme por semana, com mais personagens no ecrã do que espectadores na sala.”
É uma vila remota portuguesa, com certeza.
Um infantário e uma escola seguram a pouca população infantil até ao segundo ciclo. O centro de saúde e os hipermercados situam-se na sede do concelho, a 45 km, o hospital mais próximo está a 100 km. Imagino o desafio e o risco que é para quem entra em trabalho de parto nestas localidades…
Mas por ali resiste ainda uma retrosaria corajosa que expõe alguns livros na montra graças ao generoso optimismo da sua responsável. Abençoado tricot literário.
Adjacente e encafuado a um canto desse pequeno vale, onde tem feito vida Helena, há ainda um bar com matraquilhos e uma esplanada, conhecido como 'Buraco', onde se enfia nalgumas noites a juventude.
Um descontentamento pintado de azul
Quis saber em que quadrado, ou buraco, esta população pensa colocar a cruz nas próximas eleições autárquicas. A resposta de Helena não surpreende, mas inquieta e preocupa bastante. É o retrato de um país que se pinta cada vez mais de azul:
“Multiplicam-se, na proporção do descontentamento, os eleitores que se inclinam para a extrema-direita. Para mim, que voto no centro-esquerda, trata-se de uma escolha superficial, pela negativa e politicamente impreparada, o que em nada abona.
Nas legislativas mais recentes, foi por um triz que o Chega não venceu, ficando logo atrás do PS, que ainda reina, mole, na freguesia e na sede de concelho;
mas receio que essa pequena margem desapareça na próxima votação e haja uma reviravolta, à conta dos imediatistas, instalados, remediados e aspirantes - todos sendo mais ou menos saudosistas.
A juventude daqui, maioritariamente sem cultura cívica nem política, vive desinteressada e incrédula na consulta popular, tanto ao nível local como nacional - que é como quem diz: prefere abster-se. Sobram, de entre os mais velhos, aqueles que ainda conservam a memória de meio-século de ditadura - assim tenham alguma saúde, ânimo e força motriz.”
O desamor aos animais
Ainda no plano 'civilizacional', Helena sublinhou um outro domínio em que a disrupção é particularmente expressiva - a forma como se tratam os chamados 'animais de estimação'.
São poucos aqueles a quem é reconhecida tal dignidade. A maioria dos bichos domésticos é tratada de forma ainda muito utilitária, ou pior do que isso:
“Alguns são cães portáteis ou quase, vários são destinados ao trabalho no pastoreio, outros são ‘de guarda’, de olhar apagado porque andam acorrentados em permanência (!), praticamente invisíveis. E há matilhas confinadas e geridas por caçadores.
Depois há outros cujos 'donos' os deixam circular em auto-gestão, sem socialização nem mínimos olímpicos de educação canina.
Existem ainda muitos gatos vadios que se alimentam nos contentores ou são alimentados pela compaixão de poucos, alguns têm morada em regime ambulatório ou de meia-pensão, que se reproduzem incessantemente numa freguesia negligente cuja sede de concelho insiste em não ter uma política de esterilização.”
Apesar do postal desalentado da aldeia, Helena afirma que desistiu do sonho lisboeta, e do regresso à cidade que a viu nascer. “Por ser incomportável arrendar.”
O sonho que não morre
Helena insiste em acreditar que poderá em breve reaproximar-se da sua cidade e dos seus afetos, quando encontrar uma nova casa, numa terra a uma distância máxima de 45 minutos de carro do destino abençoado pelo padroeiro Santo António.
O problema é que há cada vez mais pessoas a querer exatamente o mesmo. E começam a escassear esses tais ‘unicórnios’ a dois passos da “Lisboa, Tejo e tudo.”
Vai acontecer. Há desejos que são inevitáveis regressos ao futuro. Mas é tempo do interior do país estar nesse futuro.
“Quero recuperar o poder e prazer de escolher entrar numa livraria ou sentar-me numa sala de cinema; passear num jardim ou ver uma exposição; visitar amigos ou convidá-los para jantar em minha casa, ter oportunidade de participar em manifestações artísticas e cívicas, deliciar-me com um sushi ou assistir a um concerto de jazz; sentar-me à beira do Tejo a comer um pastel de Belém, soltar os meus cães para correrem, sem pôr em perigo galinhas ou ovelhas nem perturbar a territorialidade local.”
CONVERSEI EM PODCAST COM…ROMEU COSTA
É um ator conhecido da televisão, com várias participações no cinema, mas que se tem afirmado, acima de tudo, no teatro, distinguido com um prémio da SPA, em 2018.
Desde há cinco anos que Romeu Costa interpreta uma personagem fascista na peça de Tiago Rodrigues “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”, e, neste podcast, conta como uma história distópica se foi tornando cada vez mais próxima da atualidade política do país e como tem sentido em cena a fúria do público perante a sua personagem. “Estamos a dar passos atrás na democracia.”
A newsletter “A Beleza das Pequenas Coisas” termina por hoje. Se quiser dar-me o seu feedback, partilhar ideias, sugestões culturais e temas para tratar, envie-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com.
E deixo a minha página de Instagram: @bernardo_mendonca para seguir o que ando a fazer.
É tudo por agora. Temos encontro marcado no próximo sábado. Até lá, desejo uma boa semana, com muito do que gosta!
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