O projeto foi implementado há dois anos. Na sua origem está uma constatação evidente, mas sem uma solução definitiva à vista. A desertificação do interior é uma realidade demográfica complexa, fruto do desinvestimento, de uma população envelhecida, abandonada na mais profunda solidão e a precisar de cuidados de saúde. Foi assim que nasceu o projeto Aldeias Humanitar, um dos vencedores do Prémio BPI “la Caixa” Rural, que visa apoiar projetos de ação social em zonas rurais que promovam a interculturalidade e a coesão social (ver caixa).
“Uma das formas de combater o isolamento é desenvolvendo mecanismos de apoio domiciliário”, diz António Tavares, provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, para quem o modelo de institucionalização em lares e centros de dia não é solução. “São populações fragilizadas, com dificuldades de locomoção, que necessitam de programas de proximidade”, refere, exemplificando o trabalho que tem sido feito pela GNR. “Com o território tão desequilibrado, estas pessoas estão condenadas a ficarem sozinhas, daí a importância dos apoios domiciliários.”
É precisamente nesse terreno que o Aldeias Humanitar foca a sua atividade. Um projeto-piloto que surgiu para “despertar consciências” para a problemática do isolamento e combater as debilidades das populações mais isoladas, cujo perfil tem vários denominadores comuns: “Pessoas envelhecidas, com multimorbilidades, sozinhas ou a viver com o cônjuge, a necessitarem de cuidados do tipo continuados ou paliativos e sem qualquer acesso a esses cuidados. População em profundo sofrimento e desamparo humano.”
“Um dos grandes problemas do nosso país é a desigualdade que existe entre litoral e interior”, salienta Artur Santos Silva, presidente honorário do BPI. “Nestas economias rurais os problemas são mais agudos, assim como a desigualdade e a pobreza. São comunidades mais afastadas de nós”. E sublinha: “A maior parte dos beneficiários [do prémio Rural] são instituições que trabalham em zonas de economia de base rural.”
O prémio atribuído ao projeto Aldeias Humanitar irá servir para criar uma nova equipa de cuidados domiciliários no concelho de Tabuaço. Trata-se de “um conceito de organização comunitária que ambiciona a certificação de aldeias amigas do cidadão, com cuidados de saúde e sociais de proximidade, aldeias promotoras de inclusão social e valorizadoras da sustentabilidade territorial”, refere a nota descritiva do projeto, sediado em Viseu e que atua em todas as freguesias do concelho, apoiando um total de 30 beneficiários diretos.
Segundo dados de 2016, cerca de 40% da população portuguesa com mais de 65 anos vivem sozinhos durante oito horas ou mais por dia. Corresponde a quase um milhão de idosos em situação de solidão ou isolamento. Uma fatia considerável desta franja da população portuguesa vive no interior do país, onde os equipamentos públicos e privados, da saúde à economia, estão em desaparecimento progressivo. E onde o risco de pobreza é elevado. É por isso que as organizações da sociedade civil assumem um papel decisivo no acompanhamento e luta por melhores condições de vida para estas populações.
Sobre as discrepâncias entre litoral e interior, o professor universitário Carlos Farinha Rodrigues diz que o Estado “não pode ser desresponsabilizado. Estes prémios e o trabalho do terceiro sector não resolvem problemas estruturais. Permitem aliviar situações de alto nível de precariedade, mas não dispensam medidas efetivas que vão aos determinantes da pobreza que existe neste nível, porque temos esta desigualdade. É uma esfera da qual o Estado não pode ser desresponsabilizado. Têm de ser as políticas públicas a encetar processos que visem corrigir as imperfeiçoes na distribuição dos recursos”.
António Tavares lamenta que o Estado esteja a “fechar instituições” no interior do país, onde “ainda são necessárias. Mais uma vez é o sector social que está a cumprir estas funções. Hoje temos escolas primárias que são utilizadas com outro tipo de equipamentos, mas daqui a pouco não teremos pessoas para lá colocar. Há um problema estrutural que carece de uma política de fundo”. O problema, afirma, “é um ciclo vicioso”, porque o isolamento e a pobreza têm consequências na saúde dos mais idosos: “Têm condições cada vez mais debilitadas. Alguns mais isolados têm tendência a desenvolver depressões, doenças que degeneram em Alzheimer, hipertensão e diabetes ou outros problemas por falta de retaguarda, pelos poucos cuidados alimentares e pelo estilo de vida”, concluiu.
Desafios
Isolamento
O fim da atividade laboral costuma estar associado à inutilidade. Aliada à solidão, característica das populações mais isoladas do interior, a reforma nem sempre é encarada como uma nova etapa. Não se pense que é apenas característica de quem vive longe das grandes cidades. O Projeto Radar, parceria entre a CML e a Santa Casa da Misericórdia, identificou 4 mil idosos “em situação de isolamento”. Entre 15% a 20% não tinha médico de família.
Autonomia
É um dos problemas que mais afeta as populações idosas e em ambiente rural. Com pouca autonomia física e financeira, a tendência para o isolamento social aumenta exponencialmente. Por outro lado, o facto de viverem longe da família — a geração dos filhos emigrou para o litoral — reduz ainda mais o espectro do apoio e aumenta a solidão.
Saúde
O acesso aos cuidados de saúde no interior tem outros contornos: muitas das unidades de saúde familiar e de cuidados continuados fecharam as portas durante o período de resgate financeiro. É por isso que os especialistas defendem a urgência de criar redes de cuidados assistenciais no mundo rural, quer a nível social quer da saúde.
Valores sociais
45.516
foi o número de idosos sinalizados durante a operação da GNR “Censos Sénior 2017”. A solidão e o isolamento são as principais características desta população vulnerável. Muitos vivem em aldeias distantes, pouco povoadas e longe da família mais próxima
83
é a percentagem da riqueza produzida no litoral. A faixa costeira do país é também onde estão 89% dos alunos do ensino superior e 89% das dormidas turísticas
1
milhão foi o número de pessoas que o interior perdeu para o litoral desde 1960. No mesmo período de tempo, em pouco mais de 50 anos, o litoral ganhou 2,7 milhões de novos residentes
Prémio para quem apoia isolados
Foram distinguidos 22 projetos que atuam em áreas prioritárias como envelhecimento, incapacidade, pobreza e exclusão social, integração laboral e coesão social e saúde. A maioria dos projetos vencedores do Prémio BPI “la Caixa” Rural trabalham no interior do país, em zonas caracterizadas por um acentuado desequilíbrio demográfico, com populações muito envelhecidas e frágeis redes de apoio formais e informais. Foram atribuídos um total de €750 mil. Este ano foram cinco os Prémios BPI “la Caixa”, que se traduziram num apoio de €3,75 milhões para mais de 20 mil beneficiários de 120 projetos. Em média, foram recebidas 174 candidaturas por prémio. No total, foram recebidas 870 candidaturas de projetos de instituições privadas sem fins lucrativos.
Textos originalmente publicados no Expresso de 7 de dezembro de 2019