A Beleza das Pequenas Coisas

Lembra-me um sonho lindo

(*Para ler ao som de Fausto e de Elis)

Um casal amigo acaba de comprar uma casa pequena no campo, a bom preço. O valor que lhes saiu da conta dava para pagar pouco mais do que uma varanda de um apartamento mal-amanhado nos arredores de Lisboa.

O achado pipocou num desses sites de venda de imóveis e eles atiraram-se ao sonho antigo.

A pé não há café

A casa esteve fechada muitos anos, era dos pais do senhor de meia idade que lhes vendeu, está a precisar de obras, e fica numa localidade remota que, a poucos metros a pé, nos leva a café nenhum, a mercado nenhum, a loja nenhuma. Visto por outro prisma, um sossego.

Ali só se faz vida de carro e, por isso, compraram também um veículo em segunda mão para estas novas idas e vindas. Na cidade preferiam usar as aplicações para os TVDE e eram ‘taxicodependentes’, como eu.

O terreno da casa é um sonho, um verdadeiro luxo. Tem oliveiras até perder de vista, a prometer as melhores sombras contra o impiedoso calor. E estão por lá ainda umas ruínas, que já foram casotas de animais e antigos fornos.

Agosto a arder

Penso neles, e dou-me conta de que hoje em dia estes pedaços de terra espalhados pelo interior do país, que são o ganha-pão e a morada de tanta gente, estão em permanente risco.

Há quem tire férias em agosto, não porque goste de sair da capital neste mês, mas para proteger a casa do fogo.

É o caso de um colega meu que esteve várias noites em claro, numa aldeia cercada pelas chamas, a defender a sua casa à mangueirada, sem qualquer apoio de bombeiros ou de outras autoridades. A revolta e a fúria é inevitável.

Parece que não se aprendeu nada com as cinzas e as mortes do passado. Vive-se o pior ano de incêndios desde 2017. Como é que ainda não saímos disto?

Há lições que parecem ter sido levadas pelas labaredas, com tanta desorganização, colapso e medidas por aplicar.

O Governo não tem razões para celebrar, e a sua falta de estratégia, de noção, apoio e empatia para com o que o país está a passar, é uma queimadura irremediável neste ano e tal de governação.

Onde eu possa ficar do tamanho da paz

De volta ao sonho. De volta à casa cantada por Elis Regina, para onde os meus amigos estão a pensar seriamente mudar-se e plantar-se aos poucos, apenas com a certeza dos limites do corpo e nada mais.

Um futuro não muito distante, depois das obras feitas, para se sentarem à mesa de uma vida mais leve, mais calma, mais offline, fértil de tempo de tartaruga e de céu aberto aos mais belos pássaros, que lhes componham os silêncios.

Querem estar suficientemente distantes dos ruídos, do stress, da dispersão e da barafunda da cidade, que está de mal a pior. (Venham os debates e as eleições autárquicas, para as tão desejadas mudanças!)

Mas eles não estarão tão distantes que não possam vir a uma reunião, a um espetáculo ou a um jantar imperdível, numa hora e tal de viagem.

Insetos e aviões

Contaram-me que estão decididos a trocar o zumbido dos aviões de 3 em 3 minutos, que são as grandes moscas-varejeiras dos céus lisboetas, pelo som das cigarras, dos grilos, das corujas, das galinhas e do ladrar de um cão ou outro.

E vem-me à memória o poema “O Apanhador de Desperdícios”, de Manoel de Barros, lembrado pela escritora Madalena Sá Fernandes na conversa que tivemos, que às tantas, diz: “prezo insetos mais que aviões.”

Fiquei a admirá-los ainda mais quando soube que decidiram meter eles próprios mãos à obra na recuperação da habitação. Não sabiam nada sobre o assunto, mas decidiram fazê-lo quando se deram conta do balúrdio que teriam que despender para contratar uma equipa para a obra.

O YouTube dos trolhas

Ele ajeitava-se com o berbequim, ambos teriam pintado paredes, mas pouco ou nada sabiam sobre o universo da argamassa de cal.

Mas com ousadia, coragem e muitas horas passadas a verem vídeos no Instagram e YouTube de pessoas que reconstroem as próprias casas, foram ganhando fé e conhecimento.

Ela é investigadora, está a concluir um doutoramento numa área que nada tem a ver com o assunto, e tem um dos maiores predicados da vida. É abençoada por uma qualidade que aprecio muito nas pessoas, é curiosa e interessada em aprender coisas novas.

Por isso, vai agora três dias para um retiro longínquo para aprender mais sobre técnicas de construção tradicional e como usar a terra de forma autossustentável.

Ele anda encantado pelo facto de a sua nova morada ter a casa de banho fora da habitação, escondida nas traseiras, com vista para as oliveiras. Fazer as necessidades a olhar para o verde é outra loiça.

Branco mais branco não há

Foi precisamente nessa divisão onde eu lhes dei uma mão, ajudando com rolo e trincha a tornar as paredes azuis (cor de estrunfe quando foge) em paredes dignas de um WC grego, de uma ilha toda pipi, tipo Mykonos.

Já estive em ambos os lugares, posso assegurar que o resultado é semelhante. Minto. Mykonos não tem oliveiras deste calibre, nem tem este sossego bucólico, os turistas crescem nas árvores. Como em boa parte do mundo, aliás.

Uma casa que revela as rugas do tempo, fechada durante mais de uma década, dá trabalho. Mas estes meus amigos estão a dar conta do recado. E sabem que o romantismo da perfeição é coisa de filmes e de paredes falsas de pladur.

Também eles me ensinam a beleza do tosco, e quando algo corre mal, eles repetem e reparam a falha.

A parte da eletricidade será tratada por um familiar, a canalização existente está a funcionar, e os dois estão a tornar-se especialistas de massa de reboco e técnicas de recuperação com materiais tradicionais.

Os velhos móveis que lá tinham ficado estão a ficar um mimo, agora recuperados e branquinhos, como suspiros de pastelaria.

E as paredes também estão a acordar para uma nova vida, com o viço da cal branca. ‘Cal’ me by your name.

Há algo de muito poético na reconstrução de uma casa com o nosso próprio suor.

Escrevo esta última linha, enquanto ouço o zumbido ensurdecedor de mais um avião no céu, isto a somar ao cacarejar dos carros, o piar da porta da garagem da frente, o chilrear de um alarme que disparou e o ronco mal disposto de alguém nervoso com o trânsito.

É o fungágá da bicharada no mesmo bairro de Lisboa onde eles ainda vivem.

A crescente fuga da cidade

Ontem fui jantar à sua morada lisboeta o melhor caril de grão do mundo e, à mesa, entre partilhas de inquietações e feitos, contaram-me que recebem muitas mensagens privadas de pessoas que estão no mesmo movimento. Muitas mesmo. Estão a recuperar a casa na base do “do it yourself”, da maneira que sabem e podem.

Que tal como eles, há uma nova vaga de gente a sair de Lisboa para sítios mais baratos, seguros, tranquilos, com maior qualidade de vida.

Disseram que me imaginaram a mudar-me também para o campo. “Ainda te vou ver de botas e enxada!”

Ri-me como quem ouve um grande disparate. Eu sou um homem da cidade. Depois pensei, ando farto de me esgadanhar como se vivesse em fast forward.

E eles lembraram-me um sonho lindo. Quase acabado.

CONVERSEI EM PODCAST COM…MADALENA SÁ FERNANDES

A escritora Madalena Sá Fernandes retratada para o podcast "A Beleza das Pequenas Coisas"
Matilde Fieschi

Cresceu num ambiente de violência doméstica com um padrasto agressor, tema que atravessa o seu primeiro livro, “Leme”, editado em 2023, num registo de autoficção. Esse romance tornou-se um fenómeno de popularidade: já vai na 8ª edição, foi traduzido no Brasil e chegará também à Dinamarca e à Argentina.

Em 2024, Madalena Sá Fernandes publicou “Deriva”, uma compilação de crónicas, que lhe permitiu revelar um lado mais humorístico sobre o quotidiano.


Bastidor da gravação do podcast "A Beleza das Pequenas Coisas" com a escritora Madalena Sá Fernandes
Matilde Fieschi

De momento, a escritora está a terminar um mestrado, prepara um livro para crianças, motivada por ser mãe de duas meninas de 6 e 7 anos, e escreve um novo romance, que terá um lado ensaísta e autobiográfico, sobre a experiência da violência na pele enquanto mulher adulta.

“Tenho procurado transformar o que dói em linguagem, e encontrar aí sobrevivência e, idealmente, beleza.”

Ouçam-na aqui.

A newsletter “A Beleza das Pequenas Coisas” termina por hoje. Se quiser dar-me o seu feedback, partilhar ideias, sugestões culturais e temas para tratar, envie-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com.

E deixo a minha página de Instagram: @bernardo_mendonca para seguir o que ando a fazer.

É tudo por agora. Temos encontro marcado no próximo sábado. Até lá, desejo uma boa semana, com muito do que gosta!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com

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