Recentemente li um texto que me encanitou. Diria mesmo, que me perturbou e deixou nauseado.
Falo do ‘textículo’ (expressão brilhante que roubo ao escritor e editor Luiz Pacheco) aqui assinado pelo presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), Pedro Vaz Patto, com o título “Repor a Verdade”.
O que lá vai dentro é deslocado e cobarde. E está nos antípodas da empatia, que devia ser o requisito mínimo de quem desempenha as funções que aceitou neste organismo da Conferência Episcopal Portuguesa.
Aspas obscenas
É um convite a que certas vítimas se voltem a remeter ao silêncio. As poucas que têm coragem de falar em voz alta o que as ofende no processo de reparação financeira para os abusos sexuais que sofreram na Igreja.
Pedro Vaz Patto refere-se às vozes que se têm manifestado como “as vítimas”, por oposição às silenciosas vítimas, as obedientes, ou que sofrem com medo.
Ou seja, quem ousa expressar o seu desagrado é colocado entre aspas, numa sugestão subtil, indigna e cobarde de que talvez não sejam verdadeiras pessoas abusadas.
É obsceno e desrespeitoso, depois de abrir um canal de escuta e de apoio às pessoas violentadas pela Igreja, colocar em cima da cabeça de algumas a coroa de espinhos que são estas aspas. “As vítimas”. Aspas que pretendem retirar-lhes razão, voz, dignidade.
A reposição do silêncio?
Este juiz rotula essas tais pessoas, feridas e ofendidas, de mentirosas. Se assim não fosse, não escolhia a “reposição da verdade” para título do seu artigo.
E critica-as por terem a veleidade de se relacionarem com a comunicação social, como se apenas ele tivesse o direito de escrever artigos ou manifestar a sua opinião. Faz-se de “vítima”. Aqui sim, com aspas. E quer fazer-nos de parvos. Sem aspas.
Vaz Patto ofende-se e ofende os outros por se irritar com a comunicação social, a mesma sem a qual a igreja nunca teria tido pressão e vontade para abrir processos e acabar com uma cultura de silêncio sobre a pedofilia, que tinha as costas largas pelo mau uso da fé das pessoas.
Era tudo na paz do Senhor. Esta instituição durante décadas e séculos abafou e perpetuou violências sistémicas em todo o mundo, traindo a confiança de todos, permitindo que milhares de abusos a menores fossem continuamente cometidos.
O valor da pressão mediática
O encombrimento destes horrores inomináveis sobre crianças e jovens inocentes foi durante muitos anos um código sagrado.
E só a pressão mediática e social, alimentada por um sem fim de denúncias, investigações jornalísticas e do trabalho de comissões independentes, forçou os bispos a tomarem qualquer iniciativa.
E mesmo assim abriu uma fratura interna, entre a Igreja nova e a Igreja velha.
Pedro Vaz Patto não gosta que as vítimas se organizem e se representem umas às outras, porque sabe que a perpetuação do silêncio é mais fácil se a gestão individual for feita em detrimento de um mal que atingiu um grupo. Um grupo de crianças, que hoje são adultos com profundos traumas.
Patto não tolera que haja quem se sinta revitimizado por ter de contar tudo de novo, por ser colocado numa situação em que, em princípio, se assume que está a mentir como se o agressor não estivesse dentro da instituição que ele representa.
As vítimas “do bem”
Não percebe que cada uma destas pessoas abusadas se sinta forçada e violentada a revisitar espaços, dores, feridas. Impedidas de serem acompanhadas perante uma comissão, sentindo-se perdidas num processo que se arrasta, marcado por depoimentos e entrevistas sem retorno.
Patto só valoriza as vítimas que ele sente que lhe devem um “obrigado” por se sentirem supostamente “bem” depois de falarem com ele.
As outras, as que se sentem mal, e se queixam disso, são um incómodo.
Só as que se sentem mal, mas não têm força para falar, se portam bem segundo estes seus critérios.
Vítimas do bem, sem aspas, são as que não chateiam a instituição que as agrediu.
Só as que asseguram e reforçam que o seu trabalho é bem feito é que lhe interessam. As outras são mentirosas e obstáculos ao seu autoelogio. Jogue-se aspas nelas. Como pedras.
O presidente da CNJP difama as vítimas desagradadas, mas opta por omitir tudo o que não corre bem neste processo. Não se dispõe a entender que não faz tudo bem e que o trauma fragiliza e requer compreensão e diálogo.
Porque, para ele, isto não é sobre a reparação às vítimas, é sobre a confirmação do sucesso do modelo que montou.
Pedro Vaz Patto questiona a honestidade das vítimas, mas não questiona a sua competência. Apesar de confessar, neste artigo, que em vários anos como juiz nunca percebeu que um abuso em criança deixa marcas profundas para a vida toda. Saberá ele disso? Ou finge que não sabe?
Quem nunca percebeu isto em décadas de atividade profissional podia interrogar-se sobre se, de facto, tem perfil para julgar ou para avaliar o impacto do abuso cometido no seio de uma instituição que retraumatiza todos os dias pelo discurso moralista hipócrita.
O isco perverso
Patto constrói um argumento ardiloso e mesquinho para empurrar para o silêncio os que o ousam contrariar.
Diz que questionar o processo pode fazer com que outras vítimas se inibam de procurar a comissão.
Diz para se calarem no seu sofrimento, porque isso pode perpetuar o sofrimento de outros. Falso, perverso e calculista.
A crítica de uns deve fazê-lo questionar o esquema que montou e não ser usada como isco para o silêncio. Tente aproximar-se das preocupações e limpe os problemas, que isso também tranquilizará as vítimas.
Este juiz fala dos que lhe estão gratos e despreza os que não encontram conforto. Só refere os que confirmam o seu prazer. Os outros são um problema para a sua imagem. Isto é sobre ele, o seu ego e a boa imagem da instituição, e não sobre as vítimas.
Deve Patto repor a empatia ou demitir-se?
Pedro Vaz Patto não tem empatia.
Pedro Vaz Patto não pode estar nestas funções.
Pedro Vaz Patto critica e usa a comunicação social para isso, mas habituou-se a não ser criticado.
É intocável.
E, mais uma vez, a Igreja é cúmplice do ataque às vítimas. Essas mentirosas que afetam a sua reputação.
Exige-se bem mais de uma instituição que devia estar sempre do lado das vítimas, escutando-as, valorizando a sua voz, as suas críticas, o que as incomoda neste processo, num diálogo construtivo e humilde, com tolerância zero para mais abusos e abusadores.
O que disse o Papa Francisco
Recordo as palavras do Papa Francisco numa deslocação oficial feita à Bélgica, no final do ano passado:
“Atualmente, temos todos esta vergonha. É preciso enfrentar e resolver o problema. O meu pensamento vai para os santos inocentes do tempo do rei Herodes, mas agora é a própria Igreja que cometeu este crime e a Igreja tem de pedir perdão e resolver esta situação com humildade cristã e fazer tudo para que não volte a acontecer.”
O navio da nossa humanidade
Termino com outro tema da maior importância.
Há sete dias que a ativista Greta Thunberg e outras 11 pessoas partiram para Gaza a bordo de um navio humanitário da chamada "Coligação da Flotilha da Liberdade".
O grupo tem como objetivo quebrar o cerco em Gaza imposto por Israel e criar um corredor marítimo humanitário para o povo palestiniano, que está à sede e à fome, sob severos ataques do exército de Netanyahu.
Esta ação humanitária não está livre de riscos e os ativistas, como o brasileiro Thiago Ávila, têm reportado nas redes sociais as ameaças constantes que têm recebido de drones israelitas.
Os olhos do mundo estão nesta embarcação e missão, e talvez seja esse o seu maior colete de salvação de algum cobarde ataque. Mas nada está garantido.
Mesmo que aquele barco vá ao fundo, nunca morrerá a esperança da liberdade de um povo, o que estará mais perto do fim é a governação hedionda de Netanyahu.
Esperemos que todos cheguem vivos e a bom porto para finalmente se quebrar um cerco e um ciclo de matança, desumanidade e horror.
Neste momento, a entrega de alimentos em Gaza está suspensa.
O povo palestiniano, onde se incluem milhares de crianças, está a morrer à fome e à bomba. A fome a ser usada como clara arma de guerra e de matança. Os grandes poderes mundiais estão à espera do quê para travar este genocídio?
CONVERSEI EM PODCAST COM…MÁRIO CORDEIRO
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