12 janeiro 2008 0:00
Luiz Pacheco morreu aos 82 anos. O enterro esteve ao nível das suas histórias. Cumpriu o sonho, como o próprio contava: foi quentinho, no caixão tapado com a bandeira do Partido Comunista.
12 janeiro 2008 0:00
"Não estamos aqui para brincar. A vida não é brincadeira nenhuma. Mas um pouco de sonho nunca fez mal. Principalmente a um velhadas de 73. Sonho ou desejo ou ambição. Talvez mesmo ou até: cagança. Sim, isso." Assim era Luiz Pacheco há nove anos. Escreveu-o no livro "Prazo de Validade". O seu prazo de validade, depois de tanta teima e tanta ameaça, chegou sábado passado ao fim. Vai-nos fazer falta.
Luiz Pacheco morreu aos 82 anos. O enterro esteve ao nível das suas histórias. Cumpriu o sonho, como o próprio contava: foi quentinho, no caixão tapado com a bandeira do Partido Comunista para o Alto de São João - um desejo que manifestou, por inveja confessa do funeral de Ary dos Santos, e que foi o motivo que o levou a filiar-se no PC em 1989. Valeu a pena.
Um mimoseador de episódios mirabulantes, alguns pornográficos outros simplesmente aviltantes, que ficam para a história em textos pequenos que o próprio escreveu e nas muitas entrevistas que foi dando. "Espectador de mim", foi como se descreveu no "Diário Remendado 1971-1975" da Don Quixote. Dava o espectáculo e era o seu melhor fã, o mais fiel, também o mais implacável. Nem a si próprio poupava da língua viperina, expondo as suas chagas, fraquezas, vilanias. E tudo o que aqui se escreve, sem palavras mansas, é para fazer justiça pachecal. Que ele não quereria outra coisa.
Escritor, editor, panfletário, abjeccionista e libertino (na andropausa, dizia que tinha tido a última relação sexual a 31 de Dezembro de 1974), adorador de telenovelas..., despedimo-nos de um raro representante de uma estirpe em vias de extinção: aqueles que pregam a vida que levam, e em que a sua obra se confunde com a história do que foram.
O que viveu só não deu mais livros porque ele se distraía na alegria libertina do próprio viver, leve de invejas ou pesos materiais, às vezes na miséria. Foi-se dando. Dava tudo, livros, de outros e seus, textos manuscritos, raridades, bombons, tapetes... Desfazia-se de tudo. Ao mesmo tempo que pedinchava. A vida inteira no cravanço. Para comer, para beber. Para viver.
Também se alheava da escrita quando as maleitas do corpo o ocupavam. Dizia que era asmático desde os três meses. Pensou que não passava dos 20 anos e daí para a frente foi sempre a dizer que estava para morrer.
Definiu-se como "um escriba de circunstância. Um tipo que queria ser escritor mas antes queria ser um homem livre" (no mesmo "Diário..."). Uma liberdade desbragada, género galhofeiro e inconveniente, repleto de safardanices e larachas, em artigalhada ou entrevistas que, muitas vezes, davam para o torto e geravam inimizades. Aquilo eram insultos, disparava em todas as direcções, até na sua. E, se fosse preciso, só para bater o pé, até elogiava. "Quando comecei a publicar no Público, alguém anunciou: o escritor e polemista Luiz Pacheco. Queriam que eu fosse para o jornal dar porrada. E eu, só para chatear, para contrariar, estive quase um ano a retrair as unhas. Porrada por encomenda não" - disse à Pública, a 28 de Março de 2004. Mas porrada, bem dada, pachecal, era com aldrabice, como me contou, em 1995, para o Blitz, referindo-se ao livro de José Saramago, "Ensaio sobre a cegueira", que ia criticar no Diário Económico: "Dei-lhe porrada, tem de ser tudo com aldrabice, mas a minha é uma aldrabice que ponho à mostra". Era assim mesmo, à descarada.
Em 2004, disse ao Diário de Notícias, sobre si, que "há muita lenda". Mas os textos que foi dando ou vendendo (alguns, os mesmos, mais do que duas vezes), mais os inéditos espalhados pelo país, prometem que a lenda pode ainda estar no começo. É uma vida feita de histórias, contadas por ele próprio. Uma fama danada. De que já não se livra. Ficam algumas, só para o recordar e sorrir com ele: "Com a minha primeira mulher, ainda uma menina, eu ia para o pinhal ler e ela fazia uma gracinha que era mandar uma pedrada no livro. Era um assédio sexual!" (à Pública, em Março de 2004, a propósito de ter sido condenado por estupro, e foi parar ao Limoeiro, por ter beijado uma rapariga de 14 anos quando tinha 18); contava que quando era estudante no liceu Camões teve a sua primeira experiência sexual com uma prostituta na Mouraria, que comia uma maçã durante o acto; a obra "Comunidade" é a sua história a viver numa cama com a jovem mulher, a Irene, dois filhos e dois familiares dela; "O Libertino..." é o relato do seu primeiro engate de um magala na rua... Só travava a língua com a história de ter sido abusado sexualmente na infância. Respondeu ao Independente (em Novembro de 2004): "Contem o que quiserem. Eu já não vou largar a lenda!"
Ao Expresso, em 1988, foi curto ao ser interpelado para imaginar o seu epitáfio: "Tá morto!" Depois, prosseguia: "Eu mal aguento o meu esqueleto".
Luiz Pacheco não precisa de mais nada. Talvez apenas mais isto: "Eu não sou um marginal, porra. Sou um senhor" (disse à Capital, em Julho de 2005). Basta o muito que é - o figurão, a personagem e o homem das letras.
Vestido de Pai Natal, em 1995, respondeu-me, sobre se tinha medo da morte: "Há uma coisa que quero que ponha aí: não ando a pedir desculpas a ninguém por estar vivo". Já não vai a tempo das prendas que pediu nessa altura, no seu riso desbragado, a enfiar o pompom do gorro vermelho na boca: "Para mim? Um pulmão novo, um coração novo, uma picha nova. Assim uns acessórios..." O folclore faz parte da sua história, foi ele que o criou, agora não há volta a dar-lhe, tinha razão, não se livra da lenda. Façamos-lhe o elogio que queria: "Tá Morto!"
Foi quentinho debaixo da bandeira do PC. Vai fazer falta ao país que anda morno. Mas continuará a rondar, e a rir-se, porque certamente lendas ainda estarão para surgir. Esperam-se ferroadas e safardanices ainda não conhecidas, como terá dito a Baptista-Bastos, em 1985, no Jornal de Letras: "Quanto a inéditos: aguardem as Obras Póstumas. Tralha não falta, direi mesmo mais: uma grande trapalhada." É só um até já.
"Um tipo tem que ser ingrato. Ficar a dever as coisas? Então mais vale ir para um cargo público onde tenha uma remuneração devida. Ingrato, quer dizer, de repente a pessoa chateia-me e eu corto." (revista Kapa, 1992)
"O que há nos meus livros é a formação de um indivíduo. Um indivíduo é dono e senhor do seu corpo, portanto dispõe desse corpo para ir para a cama com um homem, com uma mulher, com duas mulheres, com dois homens. Isso já é um bodadinho exagerado, mas cada indivíduo é dono do seu corpo até ao absurdo que é o aniquilamento. Temos que dar direito aos suicidas." (Kapa, 1992)
"O romance exige um ambiente calmo, disciplina e método de trabalho - suponho eu - exige tempo em continuidade, coisas que nunca tive na vida. (Expresso, 1988)
"Eu já nem me posso masturbar. Já tive um badagaio com mulheres, e se há maneiras estúpidas de morrer é um tipo morrer a masturbar-se ou a ter uma aventura e de repente terem de levá-lo para o hospital." (Expresso, 1988)
"Estou convencido que o meu melhor texto é o 'Teodolito'. (...) Há é um pormenor: o Teodolito tem um caralho na segunda linha que eu nunca tirei." (Capital, 2005)
"A 'Comunidade' era a contraposição a estes gajos que querem casa, frigorífico, a macaca toda." (Capital, 2005)
"Se ler certos textos meus, vai encontrar coisas que não são fáceis de serem ditas. Tenho em mim um gosto de estar atento. Estar atento é vermo-nos a nós prórprios como aos outros, de maneira certa. O que é muito difícil." (Pública, 2004)
"Lobo Antunes é um tipo um bocado sentimental, é um tipo um bocado rapazado." (Pública, 2004)
"Chocarreiro, com risado sentido do caricatural, falta-lhe qualquer coisa ou sobejam-lhe técnicas de promoção comercial." (sobre o Cardoso Pires, em "Textos de Guerrilha 2")
"Podia escrever a seguir uma lista de nomes. Tipos com quem me encarnicei, cortei relações. Travei bravas lutas ingénuas, ociosas, inúteis. E estou a escrever isto, uma velha mania minha, na vaga convicção, na suspeita aguda de que estarei ainda, uma vez mais, a ser parvo. A falar pró boneco." (em "Um Homem Dividido", no livro "Prazo de Validade")
"Eu de libertino tenho uma noção um pouquinho menos a atirar para a casa de banho, que é uma ânsia de contestação, de rebeldia, de liberdade." (Blitz, 1995)