A Beleza das Pequenas Coisas

A cidade nada maravilhosa dos invisíveis

Começo esta newsletter com uma faísca de esperança. O Presidente brasileiro Lula da Silva lançou na passada quinta-feira, em Brasília, o programa “Periferia Viva”, que prevê a urbanização das favelas das grandes cidades.

Uma política da maior importância e significado para a estrutura social brasileira, moldada por uma paisagem urbana onde impera a informalidade na posse da terra e de um teto para viver.

Basta dizer que no Brasil vivem 16 milhões de pessoas em bairros de lata. São Paulo e Rio de Janeiro lideram na quantidade de favelas.

A maioria dessas casas são barracas de cimento, tijolo ou madeira, com telhados de zinco, construídas em terrenos irregulares, encavalitadas umas em cima das outras, como num jogo de Tetris falhado, hiperpovoadas de gente, com condições bastante precárias. E de difícil acesso, entre ruas estreitas e íngremes.

O novo decreto do governo de Lula prevê um investimento de mais de mil milhões de euros (R$ 7 bilhões de reais brasileiros) e é um passo histórico.

Uma mão estendida e um foco raro dirigido às vidas de tantos milhões de brasileiros paupérrimos, esquecidos e marginalizados, que habitam nos morros das metrópoles e cujos dias são marcados pela opressão do narcotráfico, pela ameaça constante da violência policial e pelas limitações da pobreza, da violência e discriminação.

Este é o rosto de um certo país esquecido que só aparece nos jornais pelas piores razões.

É o Brasil fraturado dos que pouco ou nada têm, que sobrevivem de sandália no pé e sol na cabeça, e sofrem na pele, na barriga e no bolso o racismo e o classismo de um país historicamente marcado por profundos contrastes sociais.

O ‘planeta fome’ da favela

É o “planeta fome”, nome cunhado por Elza Soares, de uma fatia generosa de povo brasileiro que vive na pobreza, sem oportunidades e que só tem lugar na favela.

São os favelados, os que são tratados como lixo pela sociedade que vive no luxo dos condomínios.

E este “Periferia Viva” é um sinal importante de transformação social, um compromisso político de levar dignidade aos mais vulneráveis e estigmatizados.

Lula comoveu-se, a garganta secou, ao anunciar a medida. Chamou ao momento o “encontro dos invisíveis”, ao lançar um programa que visa urbanizar as favelas. E declarou que aquele era o dia em que “a periferia do seu país se tornara visível para o governo e para a sociedade.”

E mais disse, entre lágrimas travadas:

“Há uma coisa que temos que aprender, o Brasil tem gente que pode escolher a sua profissão. Mas tem outra parte da sociedade que fica com o que resta. Da mesma forma, há uma parte do povo que escolhe onde morar. A rua, o bairro, o centro, o condomínio.

E outros ficam com o que resta. Eu sei como é a vida daqueles que não têm o direito de escolher a sua profissão, o direito de escolher o seu bairro, a escolha difícil com o que sobra. E é o que chamo de brasileiros invisíveis. E a que nós estamos a tentar dar visibilidade. Vocês não serão mais invisíveis. Nós estaremos enxergando vocês.

Um Presidente que ‘enxerga’ os invisíveis

Certo é que o Brasil ter agora um Presidente que ‘enxerga’ a fatia da população que fica com o que resta na borda do prato diz muito do país que pode estar a reconstruir-se.

Na primeira vez que tomou posse como Presidente, em 2003, Lula da Silva conseguiu tirar o país do mapa da fome, e promete voltar a fazê-lo até 2026.

Estima-se que no Brasil existam atualmente 8,4 milhões de pessoas sem a certeza de quando será a sua próxima refeição.

Nesta sua intervenção, Lula mostrou-se chocado pelo facto de haver ainda no país que governa 4,5 milhões de brasileiros que não têm uma casa de banho na sua morada. “Inacreditável.”

Lula recordou com a voz embargada que viveu assim até aos 7 anos de idade, em Pernambuco. Quando o “banheiro” era a primeira moita que surgia. E que morou numa casa na Vila Carioca (São Paulo), com 27 pessoas, sem água canalizada, nem casa de banho ou frigorífico.

Olhares cínicos dirão que foi tudo teatro e encenação. E que as lágrimas foram de crocodilo. Mas Lula da Silva não é o tipo de político que chora para as câmaras, não é um Presidente com afetos postiços, não é um menino da lágrima a sacar votos e boa imprensa.

A ferida de Lula

Lula comoveu-se porque falou em cima da sua ferida, ou da cicatriz que carrega na memória. Lula cresceu mesmo entre os invisíveis. Ele já foi um dos invisíveis. E talvez o sonho brasileiro possa acontecer com ele.

Depois de altos e baixos, depois de ser o Presidente bestial, e o ex-Presidente besta, condenado e preso por corrupção, xingado, sobreviveu a um golpe que visava o seu assassinato, e regressou ao poder para vingar o nome. E, acredito, vingar a sua gente, os invisíveis.

E é incrível e uma justiça poética ver como Lula mostra novamente a capacidade de sonhar um país socialmente mais justo, depois de uma governação bolsonarista que deixou o Brasil de coração rachado, a revelar o lado mais horroroso do ser humano, com o povo de joelhos e cara no asfalto.

Metade do Brasil votou no homem que planeava um golpe para matar Lula, e a outra metade fez o L de Lula para políticas como o “Periferia Viva”.

Diria mesmo que o mundo, e Portugal em particular, poderia aprender com este exemplo brasileiro. Apesar das enormes diferenças sociais, económicas, políticas, geográficas e culturais entre os dois países.

Lula VS Montenegro

Lula da Silva quer garantir uma vida digna para os invisíveis no Brasil e Luís Montenegro o que quer fazer com as cidades invisíveis na periferia da nossa capital?

O nome “cidade invisível” foi criado por Brito Guterres para nomear os bairros desfavorecidos, os tais das Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS), como o Bairro do Zambujal tornado conhecido pelas razões mais tristes.

Montenegro apressou-se esta semana a apresentar ao país medidas e objetivos para reforçar a percepção de segurança da população.

Mas não apresentou estratégias que resgatem da margem e da exclusão uma grande fatia da população que ninguém quer saber, aquela que se levanta de madrugada para limpar casas ou erguer edifícios, e que vive acossada com a perseguição policial e a precariedade. É da miséria e do desespero, e de quem não tem nada a perder, que surgem as maiores tragédias e revoltas.

Bairros que são a borda do prato

Em vez da aposta nos despejos e mais do que um reforço de milhões nos veículos policiais (para melhorar a perceção de segurança do país), talvez o caminho para cuidar da nossa ferida social seja não polarizar, nem reforçar o ódio.

Por um lado dar melhores condições de vida a quem trabalha na polícia, dar-lhes formações para acautelarem comportamentos racistas (como se tem vindo a provar que existem) e, por outro lado, começar a olhar para os bairros que costumam estar longe da vista de quem governa, escutando as suas populações, garantindo-lhes um teto digno, oportunidades de trabalho e educação. Para que também essas pessoas se sintam seguras e parte da sociedade.

Julgando e condenando quem cometeu crimes, claro, mas acautelando a maioria dos moradores desses territórios ditos problemáticos, que pagam impostos, mas levam por tabela e são diariamente assediadas e estigmatizadas por viverem em bairros que são a borda do prato. Como os favelados no Brasil.

Caro Montenegro, tome Lula como exemplo. Se for dada mais voz, escuta, apoio, dignidade, humanidade, aos bairros que ninguém quer ver, nem coloca o pé, se houver mais vontade de integrar, haverá certamente mais lugar e futuro para a paz e segurança de todas as pessoas.

LI E GOSTEI

Quarto de Despejo - Diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus (ed. Ática)

Este é o diário de uma catadora de papel brasileira, Carolina Maria de Jesus, que retrata a vida dura de quem não tem amanhã e luta por ter comida no prato para alimentar os filhos. E perturbador é perceber que mesmo tendo sido escrito na década de 1950, este livro jamais perdeu a sua atualidade.

Um relato triste e cruel da vida na favela, com uma linguagem simples, mas contundente e original, a autora comove o leitor pelo realismo e pela sensibilidade na maneira de contar o que viu, viveu e sentiu durante anos na pele, enquanto morou na comunidade do Canindé, em São Paulo, com seus três filhos.

Transcrevo um excerto desta valiosa obra sobre a realidade ainda atual de muitos favelados no Brasil, e que reforça a importância destas políticas de Lula:

“Passei uma noite horrível. Sonhei que eu residia numa casa residível, tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que há muito ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar.

Sentei na mesa para comer. A toalha era alva ao lírio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens de Tietê. E com 9 cruzeiros apenas (…).”

De leitura obrigatória!

O Sol na Cabeça, de Geovani Martins, ed. Companhia das Letras

Li este livro de enfiada para entrevistar o seu autor, o escritor brasileiro Geovani Martins que cresceu numa favela do Rio de Janeiro. E, nessa ocasião, disse-me:

“O meu maior medo era passar a vida a servir alguém. Agora é ser preso. Moro numa favela, mas tenho medo é da polícia.” Isto muito, até sobre uma certa realidade em Portugal…

A obra “O Sol na Cabeça”, tem o sol do Rio de Janeiro a aquecer a prosa das histórias que compõem a textura da vida diária nas favelas.

Mas estas também são histórias de amizade, amor e alegria: o prazer dos banhos de mar, as brincadeiras de rua, a adrenalina das pinturas murais, os namoros fugazes.

Histórias de esperança e desespero, que dão rosto e alma aos invisíveis da Cidade Maravilhosa, que é também uma cidade partida. Um livro muito bem escrito, com muita poesia, economia e lucidez.

CONVERSEI EM PODCAST COM… ALEXANDRE VIDAL PORTO

Nuno Fox

O quarto romance do escritor e diplomata brasileiro Alexandre Vidal Porto, “Sodomita”, acaba de ser editado em Portugal e de vencer o prestigiado Prémio Machado de Assis 2024.

O autor revela aqui ter escrito o livro como reação ao “bolsonarismo”, uma obra de resistência e memória sobre uma das épocas mais feias da História.

Ouçam-no aqui.

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É tudo por agora. Temos encontro marcado aqui no próximo sábado. Bom fim de semana, boas escutas e boas leituras!


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