Há algo de particularmente desconcertante e perverso no homem misticamente investido do poder do “caminho, da verdade e da vida” que o usa para abusar de crianças, adolescentes, rapazes, raparigas, homens ou mulheres. É o Mal, no sentido bíblico do termo.
É, também. uma violência que nasce do ascendente moral, é alimentada pela ingenuidade e depois mantida pelas culturas do medo e do silêncio; ironicamente, os executores são aqueles que votaram a vida à abstinência para cuidarem convenientemente do “rebanho”.
Só que estes homens - especificamente, os 848 que foram expulsos das igrejas nos últimos 15 anos - não são pastores, nem cães-pastores e nem os “lobos que devoram almas inocentes” do Papa Francisco.
São hienas. E só agora é que a Igreja está a confrontar-se com elas.
Está a acontecer à vista de todos, em streaming como num reality show, porque afinal de contas este é o século XXI, numa cimeira no Vaticano contra os abusos sexuais. Que arrancou ontem. Primeiro, com um pedido de “medidas concretas e eficazes” do Papa Francisco [foram muitas, embora vagas, e já lá irei], seguido de uma longa sessão com os presidentes das conferências episcopais à mesa e jornalistas na plateia.
A ideia é esta: mostrar os pecados, pedir desculpa, expiar os criminosos, evitar que os pecados se repitam.
O ponto principal foram os testemunhos das vítimas gravados em vídeo e, naquele momento, expôs-se parte da podridão do sistema. Uma mulher foi forçada a abortar três vezes por ter sido engravidada pelo mesmo padre, um abuso contínuo que começou quando tinha apenas 15 anos; de cada vez que se negava a ter relações, era agredida. Um padre foi violado por outro padre e um bispo encobriu o crime. Outro padre foi molestado centenas de vezes com o conhecimento da hierarquia que nada fez.
O cardeal Luis Antonio Tagle, das Filipinas, tido como um dos sucessores de Francisco, teve um discurso emocional balizado com as costumeiras referências bíblicas às ovelhas, suspirou, assumiu as culpas coletivas de uma instituição que vive da fé alheia e não soube proteger os seus crentes. Daí, as 21 medidas, que são apenas “um simples ponto partida”, como escreveu a Manuela Goucha Soares no Expresso Diário.
Como nota o New York Times, este guia falha no seu propósito ao não declarar, expressamente, a expulsão automática da Igreja dos padres que incorrerem nestes atos - a tal “tolerância-zero” ficou-se pela intolerância-mais-ou-menos, num documento por vezes vago e sobretudo didático, em que se pedem perfis e análises psicológicas mais rigorosos aos candidatos à Igreja.
O arcebispo Charles J. Scicluna, que liderou uma investigação a estes crimes, disse que não se podia correr o risco de generalizar, que cada caso seria um caso, e prometeu que os culpados seriam logo sinalizados publicamente.
Enquanto isso, lá fora, encostados aos muros, com fotografias e cartazes entre as mãos, outros homens e mulheres violentados relatavam as suas trágicas histórias, como conta o “Observador. Esperavam mais.
OUTRAS NOTÍCIAS
Mais uma da nossa banca tão peculiar: Tomás Correia, que achava ser intocável, foi condenado pelo Banco de Portugal a pagar 1,26 milhões de euros por irregularidades quando liderava o Montepio. Não foi só ele: os sete administradores e o próprio banco também levaram coimas que, no total, chegam quase aos €5 milhões. A lista de falhas é extensa, tal como é a do número de visados, pelo que o melhor é ler o João Vieira Pereira e a Isabel Vicente e a Sofia Miguel Rosa para não nos perdermos na contabilidade.
Falando em contas, Theresa May terá provavelmente de subtrair mais alguns nomes na lista de convidados para os jantares de protocolo: o Guardian escreve que há 25 membros do seu governo preparados para votar pelo adiamento do “Brexit” se a PM britânica não se chegar à frente com a saída da UE, mesmo sem acordo. Ora, isto obriga May a demitir os rebeldes,o que provocará outra crise no Executivo. Somando estes rebeldes aos insurretos do Labour e às três deputadas amotinadas do Tory, temos então um país político em pantanas.
Da pantanosa conjuntura venezuelana emerge esta história de contornos ambíguos: Hugo Carvajal, ex-chefe da contraespionagem de Hugo Chávez, reconheceu Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela. “Aqui está mais um soldado pelas suas causas da liberdade e da democracia”. O anúncio foi feito no Twitter, o quintal de Trump que o tem usado para exortar as chefias militares venezuelanas a pularem a cerca para o lado de Guaidó. O argumento favorito? Os EUA sabem onde eles têm o dinheiro. Nota: Carvajal está na “blacklist” do Departamento do Tesouro dos EUA por tráfico de drogas e branqueamento de capitais.
Entretanto, Nicolás Maduro ordenou que a fronteira com o Brasil fosse fechada e Guaidó contraordenou que fosse reaberta - seria por ali que chegaria a ajuda humanitária que Maduro garante ser inútil, porque tudo vai bem no país dele. Há duas notícias que o desmentem: na primeira, mais de 1.600 pessoas faleceram desde novembro “por falta de material médico e por cortes de eletricidade em unidades de saúde”; na segunda, há ajudas externas, sim, que chegou de Putin.
Agora, o desporto:
O Benfica está nos oitavos de final da Liga Europa e o Sporting não está. Os encarnados empataram em casa com o Galatasaray, resultado suficiente numa exibição q.b. que só acontece quando há confiança, como diz a Lídia Paralta Gomes; o Vasco Mendonça, de Um Azar do Kralj, garante ter visto outras coisas. Em Espanha, a equipa de Marcel Keizer marcou primeiro, pelo inevitável Bruno Fernandes, mas sofreu o golo aos 80’ que os deixou definitivamente fora da corrida. Para a história fica a expulsão de Jefferson. A crónica é do Tiago Oliveira e a contracrónica do Diogo Faro.
Hoje há sorteio da Liga Europa, ao meio-dia, e poderá acompanhá-lo na Tribuna Expresso, em direto e ao Benfica podem calhar adversários acessíveis, outros assim-assim, ou os indesejáveis Nápoles, Arsenal, Inter de Milão ou o Chelsea, treinado por este ex-bancário.
Depois, à tarde, a direção do Sporting dará uma conferência de imprensa, por volta das 18h, onde revelará parte de uma auditoria forense às contas do clube, bem como explicará por que motivo saíram Nani e Montero.
Deixo-vos, por fim, esta história rocambolesca de uma sapatilha que se rompeu, de um joelho que quase se rasgou e de uma promissora carreira que podia ter ficado no chão. Envolve muitos milhões, uma marca desportiva planetária e um rapaz que, dizem, será o próximo LeBron James.
As manchetes
Público: “VW avisa que reforço na Autoeuropa depende de ‘estabilidade’ no país”. Segundo a notícia, a construtora esteve “perto de mandar seis mil pessoas para casa” por causa da greve dos estivadores.
Jornal de Notícias: “Esgotos secam por falta de população no Interior”
Correio da Manhã: “Pinho e Mexia em Código Secreto - anotações de banqueiro”
I: “Os cancros da pele sempre existiram. As pessoas é que diziam ‘é uma verruga’” - a entrevista a António Poiares Baptista, professor de Dermatologia de Coimbra
Negócios: “Millenium BCP lucra 300 milhões e volta aos dividendos”
Jornal Económico: “Sampaio e Constâncio ignoraram alertas sobre a CGD em 2002”
FRASES
“Começamos a limpar o vosso desastre e não vamos parar”, Gretha Thunberg, a precoce ativista ambiental que foi a Bruxelas alertar as gentes graúdas
“O reino da Arábia Saudita persegue raparigas normais. Nós somos simplesmente jovens que estão à procura de uma nova vida longe da violência. Não queremos ser “boas raparigas” como eles pretendem” Reem e Rawan, nomes fictícios de uma história verídica
“Porque é que não te vais f***r, seu cérebro minúsculo. Idiota” Tucker Carlson, jornalista da FoxNews, num insulto refinado durante uma entrevista que nunca chegou a ir para o ar.
“Eles iam armar uma emboscada contra mim ou contra o meu filho” Cleuzemir Barbosa denunciou a corrupção no partido de Bolsonaro e teve de fugir para Portugal.
O QUE ANDO A LER
Há coisas inexplicáveis e o futebol de Sócrates Brasileiro era certamente uma delas. Este tipo de 1,93m, comprido, magro e de revolucionária barba guevariana liderou elegantemente o meio-campo da melhor seleção do mundo (e isso é indiscutível) a nunca ganhar nada - o mítico Brasil do Mundial de 1982. E é exatamente por aqui, no balneário após a derrota com a Itália, que começa o livro “Doctor Sócrates”, de Andrew Downie.
No meio das lágrimas e das frustrações, Sócrates, o xamã dessa equipa, levantar-se-á e discursará para os colegas, dizendo que aquilo era apenas um jogo de futebol, que ganhar ou perder era irrelevante, que o que todos levariam dali era a camaradagem. E, depois, levá-los-á a todos a um bar onde se entregarão às práticas que Sócrates mais gostava: “eu bebo, fumo e eu penso”.
A biografia de Sócrates, um ícone futebolístico mas também político, que inventou a Democracia Corinthiana e lutou publicamente contra as desigualdades de um país assimétrico, é a história de um talento desprendido, de um homem inteligente que se formou em medicina enquanto construiu a carreira nos relvados.
Sócrates contornou as regras dos patrões e dos presidentes e das federações, treinando pouco ou quase nada, alimentando-se como um indigente - que não era, pois a família era de classe média -, bebendo perigosamente e impondo a sua vontade aos treinadores, que não passavam sem o seu toque de bola, e aos colegas, que sabiam ter ali um atalho direto para a vitória. Que ele não procurava, pois a sua personalidade desprendida, quase trágica, levava-o a secundarizar a competição, encarando o futebol apenas como um hóbi; importava-lhe discutir, pensar, e as mulheres e a cerveja. Sócrates morreu alcoólico em 2011, com apenas 57 anos, e é um dos maiores mitos da cultura popular.
Por hoje é tudo. Tenha um bom dia com o Expresso, o Expresso Diário, a Tribuna, o Blitz e o Vida Extra.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: pmcandeias@expresso.impresa.pt