“Ainda há muito por saber”: investigação estuda como desigualdades afetam percurso e qualidade de vida de pessoas com demência e cuidadores
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As desigualdades têm impacto na “trajetória” das pessoas com demência – em Portugal, a estimativa aponta para cerca de 200 mil –, mas também de quem a acompanha. No entanto, a influência das características do local onde se vive ainda não foi estudada de forma aprofundada. É esse retrato que o projeto SINDIA, coordenado pela Universidade de Coimbra, está a desenvolver
Qual o papel das desigualdades socioespaciais nas vidas das pessoas com demência e respetivos cuidadores informais? O projeto SINDIA, liderado pelo Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Coimbra (UC), está a procurar compreender esta relação, numa investigação iniciada no ano passado e que durará até 2026.
As desigualdades socioespaciais abrangem fatores sociais, como o rendimento ou a diferença de género, e também espaciais, “no sentido em que, em função do local onde vivemos, as nossas hipóteses não são as mesmas”, explica ao Expresso o coordenador do projeto, Miguel Padeiro.
O objetivo é analisar as diferenças “entre os espaços urbanos, suburbanos, rurais e também entre regiões, entre interior e litoral”. “Mas também, dentro de uma região, ver se há diferenças ao nível da qualidade de vida, em termos de caracterização do local de residência, ou seja, se a pessoa está a viver num local que tem muitos serviços à porta ou não, se há muito ruído, se há ou não áreas verdes”, acrescenta o professor e investigador da UC.
Neste trabalho – que conta com parceiros como o CINTESIS, a Escola Nacional de Saúde Pública ou a Associação Alzheimer Portugal – procura-se estudar a “trajetória” da quem tem demência: de que forma é que “estas desigualdades, a localização residencial e a posição social afetam a qualidade de vida e a progressão da doença” e, no caso do cuidador informal, o impacto em termos dos sentimentos de solidão e sobrecarga.
Em causa está uma área em que “ainda há muito por saber”, retrata Miguel Padeiro. Ainda assim, “já se conseguem associar as condições ambientais ao surgimento da demência”. Por exemplo, para alguém que “vive num ambiente muito poluído”, sabe-se que há um “aumento da probabilidade” de ter a doença. Ao mesmo tempo, “uma pessoa mais pobre ou que vive sozinha vai ter uma maior probabilidade de desenvolver uma doença mais rápida, porque não vai ter apoio e informação”.
Ou seja, sabe-se que “as desigualdades existem e que afetam a trajetória das pessoas com demência”, mas não se sabe exatamente como: conhecem-se os “fatores principais”, mas não é possível distinguir “o que é mais importante, o que influencia mais”. “Há muito pouco feito em Portugal sobre isto”, enquadra o geógrafo. A falta de um retrato da realidade “impede depois de poder tomar decisões a nível de políticas públicas”.
O projeto está organizado em três etapas. A primeira está já a decorrer e envolve as estruturas residenciais para idosos, cujos responsáveis estão a responder a um inquérito sobre o “cuidado prestado” às pessoas com demência. O propósito é compreender se existe “uma abordagem em termos de cuidados centrados” no indivíduo, assim como perceber “se há diferenças significativas entre lares de idosos no interior e no litoral, entre lares de idosos em função do nível de preço que cobram” e também “se têm espaços exteriores e se os usam”. Em cerca de três meses, deverá ser possível à equipa começar a analisar os dados recolhidos.
Segue-se o “inquérito central” do projeto, que deverá estar pronto a lançar nas próximas semanas, dirigido a pessoas com demência e cuidadores informais. O intuito é “saber como é que é a sua vida e como é que estão a percecionar a evolução da doença”. Já em 2025 irão decorrer entrevistas “mais aprofundadas”. “A ideia será fazer a entrevista enquanto estamos a caminhar no local de residência, em que vamos passear com as pessoas no seu ambiente, no bairro. Vamos entrevistá-las sobre como é que se sentem e tentar perceber, no seu espaço, o que é que as afeta.”
Miguel Padeiro explica a relevância assumida pelas memórias no local em que se reside. “A questão do apego ao lugar é muito importante porque uma pessoa que se sente bem no lugar onde vive, isso traz algum alento e é sempre um sítio que pode favorecer uma progressão menos rápida da doença.”
E as próprias condições do local podem fazer a diferença no dia a dia. “Quando se sai e só há carros estacionados por todo o lado, em cima do passeio, não dá vontade de ir à rua. São pessoas que vão acabar por ficar mais fechadas em casa e não usufruem do espaço público, não caminham. Limita também as interações sociais. Isto pode ser um fator que vai favorecer uma progressão mais rápida da doença”, exemplifica.
Envolver as pessoas na investigação é “muito importante”, por vários motivos. Desde logo para “sensibilizar” quem não tem a doença, mostrando que quem tem “pode responder e pode participar”. “Porque há muito aquele estigma de que uma pessoa com demência já não pode fazer nada. Isso não é verdade”, alerta o docente. Depois, porque “nada como a experiência em primeira mão para perceber o que é que é importante”, e também pela sensação de “empoderamento” que se gera, sentindo que “têm um papel na sociedade”.
No final da investigação, o objetivo é “poder tecer um conjunto de recomendações” em termos de “políticas públicas a nível nacional e local”, que “visem reduzir as desigualdades” e aumentar o apoio a quem vive com demência e aos cuidadores informais, que “ainda são uma parte um pouco esquecida da sociedade”.
Lançado em 2022, Longevidade é um projeto do Expresso – com o apoio da Novartis – com a ambição de olhar para as políticas públicas na longevidade, discutindo os nossos comportamentos individuais e sociais com um objetivo: podermos todos viver melhor e por mais tempo.
Este projeto é apoiado por patrocinadores, sendo todo o conteúdo criado, editado e produzido pelo Expresso (ver Código de Conduta), sem interferência externa.