Longevidade

Um Radar em Lisboa: o projeto comunitário que funciona como “os olhos e os ouvidos da cidade”

Um Radar em Lisboa: o projeto comunitário que funciona como “os olhos e os ouvidos da cidade”
Ilustração Sara Tarita

Dinamizado pela Santa Casa em colaboração com vários parceiros, o Projeto Radar trabalha para a inclusão social dos maiores de 65 anos. Distingue-se pelo envolvimento dos cidadãos lisboetas, desde logo o comércio local, para aumentar a proximidade e solidariedade

Tudo começou em 2019, com a identificação da população com mais de 65 anos a viver sozinha ou acompanhada por outra pessoa da mesma faixa etária na cidade de Lisboa. Cerca de 29 mil entrevistas foram realizadas nas 24 juntas de freguesia e a informação recolhida ficou disponível numa plataforma acessível a 30 parceiros. Assim nasceu o Projeto Radar, que – liderado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa - assenta numa “parceria colaborativa” com entidades como a Câmara Municipal de Lisboa, a Polícia de Segurança Pública, o Instituto da Segurança Social ou a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo.

Quem o descreve é Mário Rui André, coordenador da Unidade de Missão Santa Casa para o programa “Lisboa, Cidade de Todas as Idades”, onde se integra o Projeto Radar. A covid-19 veio “dar-lhe visibilidade” e “uma grande dimensão”, conta o responsável ao Expresso. “Com a pandemia, de um momento para o outro houve necessidade de ir ao encontro das pessoas, principalmente das mais velhas, para se saber como é que elas se encontravam.”

Durante esse período, o projeto manteve contactos telefónicos com a população. “Muitas destas pessoas não sabiam, por exemplo, que as farmácias passaram a levar medicamentos ou que o comércio local levava comida a casa”, aponta Mário Rui André. Depois da pandemia, chegou-se à conclusão de que se estava perante uma “ferramenta forte para a cidade”, que pode ser “utilizada a qualquer altura” em que exista necessidade de “chegar rapidamente às pessoas” e acionar respostas.

Redes locais

Fundamental neste trabalho é o papel dos chamados radares comunitários, o que corresponde ao comércio local, como farmácias, cabeleireiros ou cafés. “São agentes locais identificadores de situações críticas que podem estar a acontecer nos bairros”, explica Mário Rui André. O objetivo é “envolver todos os cidadãos” na “preocupação de estar atento” àquilo que os rodeia.

Júlio da Silva é um exemplo: quando um cliente habitual não aparece há alguns dias ou não atende o telefone, dá “feedback da situação” à equipa do Radar. É essa a função da Mercearia do Pai Júlio, situada no Bairro Alto, enquanto radar comunitário – identificar “quem tem mais necessidades e está mais sozinho”. A mercearia acaba por ser um “ponto de encontro” para os clientes de uma “faixa etária mais elevada”. “É quase uma família.”

Pessoas sozinhas ou doentes, que muitas vezes vivem em andares elevados e não conseguem sair com frequência, estão entre as preocupações de Júlio, cuja mercearia já prestava apoio antes da integração no projeto, através de entregas ao domicílio. “Faltavam-nos conhecimentos. Há imensas situações que, por muito que queiramos ajudar, não conseguimos e o Radar vem colmatar esse trabalho. Está a ser magnífico”, realça.

Na base do modelo está a aproximação às pessoas e às respetivas necessidades. “É uma dinâmica de microredes locais para criar aquilo que poderíamos chamar os olhos e os ouvidos da cidade, com a preocupação da coesão social”, afirma Mário Rui André. “Se queremos sociedades de longevidade e onde queremos viver o maior tempo possível em nossas casas, ou criamos estas redes de solidariedade local, de proximidade, ou os serviços não vão ter capacidade de fazer isso.”

Porta a porta

Os 12 mediadores de proximidade, que trabalham pela inclusão social das pessoas com mais de 65 anos, são outra componente essencial do Projeto Radar. Em 2019, a assistente social Sara Ferreira ingressou na equipa. Depois de participar no levantamento feito na fase inicial, passou a mediadora responsável pelas freguesias da Misericórdia e Santo António.

Um dos acompanhamentos que realiza é feito através de contactos telefónicos, cuja periodicidade é variável, conforme a situação, com o intuito de prevenção. “O projeto não é só para quem precisa. O que queremos é que as pessoas continuem a ser autónomas, ajudá-las no que for preciso, tirar dúvidas”, enumera. Algo que parece simples, como marcar uma consulta médica, pode ser uma dificuldade para alguns, e é aqui que o Radar pode colaborar. “Queremos combater a solidão e tentar ajudar as pessoas a chegar aos serviços, que muitas vezes não conseguem.”

Com o trabalho no terreno e na sequência da pandemia, Sara Ferreira sente que muitas pessoas “ficaram com medo de sair de casa e perderam um pouco a mobilidade que tinham”. Nas freguesias que acompanha, uma das dificuldades são os prédios “muito velhos”, com escadas “muito íngremes” ou sem elevador.

“Tem sido muito complicado. E o facto de que temos prédios em que existe uma ou duas pessoas com mais de 65 anos em que os seus próprios vizinhos nem sequer as conhecem”, destaca. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística e da Pordata, em 2021 residiam em Lisboa 127.795 pessoas com mais de 65 anos. “As pessoas estão muito esquecidas destas pessoas mais velhas.”

O trabalho porta a porta, de entrevistar novas pessoas e divulgar o projeto com os vizinhos, também faz parte do dia a dia. Outras ações promovidas são o Café Radar, uma tertúlia que decorre num radar comunitário e onde são debatidos temas do interesse dos residentes, e a atividade “O que é que eu mudava no meu bairro?”, em que a população sugere melhorias no espaço público.

Sara Ferreira indica que um dos obstáculos nas funções que desenvolve é ainda existir “muita desconfiança”. A nova unidade móvel do projeto, em funcionamento desde outubro, deverá ajudar neste sentido. Para Mário Rui André, o equipamento onde serão dinamizadas atividades pelos mediadores de proximidade e radares comunitários, como rastreios, “facilita a aproximação às pessoas”.

Recentemente, Sara Ferreira organizou uma atividade com 16 seniores da zona da Misericórdia, em que foram lanchar e acabaram a cantar o fado. Algo que parece simples, mas que pode fazer toda a diferença, como lhe disse uma das participantes: “Obrigada por me ter tirado de casa.”

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: scbaptista@impresa.pt

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