Erdogan tem plano expansionista para a Síria? Para já “quer um papel influente e alargar o seu domínio junto à fronteira”
Sírios reentram no país pela fronteira com a Turquia, no final de 2024
Anadolu
A queda de Bashar al-Assad não consolidou apenas o declínio da influência iraniana na região; pode ter reavivado ambições de Ancara que até Israel - que, numa primeira fase, celebrou - terá motivos para temer
"A queda de Assad pode ser comparada ao fim do regime do Apartheid na África do Sul, em 1990, que levou às eleições em 1994 e à vitória de Nelson Mandela. No futuro, se as coisas correrem bem, Jolani [Abu Mohammed al-Jolani, líder do grupo HTS] poderá ser visto como o Mandela do Médio Oriente, com todos os seus prós e contras." É assim que Mehmet Ozkan, professor de Relações Internacionais na Universidade Turca de Defesa Nacional, em Istambul, estabelece, sobre a situação na Síria, um curioso paralelismo.
Sim, as transições são difíceis, sobretudo quando existe a necessidade de acomodar exigências provenientes de diferentes grupos. Mas, quando o analista turco Mehmet Ozkan olha para o futuro da Síria, o que vê é promessa. Vários investigadores têm insistido que o grupo rebelde Hayat Tahrir al-Sham (HTS) terá sido financiado pela Turquia e pelo Catar, para liderar a campanha contra o regime em Damasco. Os interesses israelitas em destronar o Irão na Síria - esta era a principal rota de abastecimento do Irão ao Hezbollah, no Líbano - unem Telavive a Ancara, apesar de ambas estarem longe de serem consideradas capitais amigas. Terá Erdogan planos mais vastos para o Médio Oriente, arriscando-se a sonhar com a ressurreição do califado otomano?
Os planos turcos: do passado ao presente
Desde o início da guerra civil, a Turquia tem apoiado as fações da oposição síria, ao contrário de outros países árabes, que abandonaram o apoio aos rebeldes e restabeleceram relações com o regime de Assad nos últimos anos. A Turquia, o primeiro país a reabrir a sua embaixada em Damasco, tem também uma presença militar no norte da Síria. Em 2012, Erdogan, o Presidente turco, afirmou que iria "rezar perto do túmulo de Saladino (um lendário líder e estratego militar que uniu as forças muçulmanas durante as Cruzadas) e rezar na Mesquita Umayyad" (localizada em Damasco, é o quarto lugar mais sagrado para os muçulmanos).
As autoridades turcas também foram as primeiras a visitar a nova administração em Damasco, e a companhia aérea nacional da Turquia, Turkish Airlines (THY), está prestes a retomar os voos para Damasco e Alepo (coração da economia síria). "Não creio que a Turquia anexe oficialmente o território, mas manterá a sua presença na Síria e quer oferecer-lhe treino militar se a nova liderança o solicitar", diz ao Expresso Wladimir van Wilgenburg, coautor do livro "Os Curdos do Norte da Síria: Governação, Diversidade e Conflitos".
Além de querer "devolver" à Síria mais de três milhões de refugiados em território turco, a Turquia também está investida, de acordo com o analista, em "eliminar a administração autónoma liderada pelos curdos no norte, tendo os rebeldes apoiados pela Turquia já tomado as cidades de Tal Rifaat e Manbij, na província de Alepo". Aqueles rebeldes do HTS estão atualmente a combater os grupos liderados pelos curdos perto da barragem de Tishrin, mas, até agora, os curdos conseguiram travar os avanços rebeldes. Os EUA têm tentado parar os combates, pressionando para um cessar-fogo, mas a trégua não é implementada no terreno. "Muito provavelmente, a Turquia está à espera da nova administração Trump, que iniciará o seu trabalho em janeiro e fará lóbi para que os EUA se retirem da Síria [há tropas americanas no norte do país do Levante]", antevê Wladimir van Wilgenburg.
Erdogan sempre almejou acabar com a ideia de uma região autónoma curda no norte da Síria, que encara como uma ameaça direta à Turquia, já que no seu próprio país tem de gerir as pressões separatistas curdas. Por isso, a Turquia poderá tentar esmagar as Forças Democráticas Sírias (FDS), dominadas pelos curdos. Com o Presidente eleito Trump a sugerir querer retirar as tropas norte-americanas do norte da Síria, as FDS perderão preciosos aliados. No passado, essa aliança permitiu a destruição do califado do Estado Islâmico na Síria. Mas, sendo forçadas a lutarem contra a Turquia pela sua própria sobrevivência, poderão não ter capacidade contra o autointitulado Estado Islâmico (Daesh), que ameaça ressurgir. As autoridades turcas têm exercido pressão junto dos rebeldes islâmicos para que não estabeleçam relações com as Forças Democráticas da Síria (FDS), que se encontram bastante isoladas. "O seu futuro depende de uma presença contínua dos EUA na Síria", reflete van Wilgenburg. "Os países ocidentais também temem que, se a Turquia ou os rebeldes por ela apoiados atacarem os curdos, milhares de prisioneiros e famílias do Daesh possam escapar."
Reconstruir o país
Ancara anunciou, na sexta-feira, que pretende fornecer eletricidade à Síria e reforçar a sua infraestrutura energética. O compromisso foi estabelecido pelo ministro da Energia e dos Recursos Naturais, Alparslan Bayraktar. O governante garantiu que a Turquia poderá trabalhar com a nova liderança da Síria na exploração do petróleo e gás natural. As empresas de construção turcas também já se mostraram preparadas para avançar, transferindo fábricas para o outro lado da fronteira e criando empregos, de que os sírios estão muito necessitados. O Ministério dos Transportes turco compreende, no entanto, que, sem um plano de ação para reparar as estradas, caminhos-de-ferro, pontes e aeroportos da Síria, as condições seriam inóspitas. A equipa turca que inspecionou os aeroportos sírios descobriu que apenas dois em cinco estavam a funcionar, e mesmo os operacionais precisariam de grandes melhorias. Para a reconstrução, as autoridades turcas estão a tentar convencer a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos a investir.
A Turquia é hoje o principal protagonista internacional na Síria, acreditam os analistas. "Deu luz verde à ofensiva rebelde, e acompanhará de perto os desenvolvimentos, procurando desempenhar um papel influente ao mesmo tempo que consolida e alarga o seu domínio nas áreas adjacentes à sua fronteira - já detém 8% do território sírio -, o que inclui atacar as áreas curdas", salienta Bruce Maddy-Weitzman, perito em estudos do Médio Oriente na Universidade de Telavive, em declarações ao Expresso. "Uma iniciativa internacional para ajudar a estabilizar e reconstruir a Síria é certamente uma possibilidade, se as fações dentro da Síria conseguirem apresentar uma frente unida. Uma grande questão que se mantém é o destino final da região dominada pelos alauitas no noroeste da Síria."
O primeiro objetivo da Turquia e de outros Estados como Israel e os Estados Unidos é alcançar uma solução política baseada na Resolução 2254 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, segundo a qual, no prazo de 18 meses após o cessar-fogo, seriam realizadas eleições livres e justas sob a supervisão da ONU. A transição política seria liderada pela Síria. A Turquia ganhou, com esta derrota iraniana, uma influência significativa na frente diplomática, podendo aproveitar a situação atual na Síria para negociar de forma mais eficaz com Moscovo e Teerão, à boleia de um potencial acordo com a próxima administração americana, de Donald Trump. Se quiserem retirar-se da Síria, o Presidente eleito Trump e a sua equipa deverão colaborar com a Turquia, que conseguiu reverter anos de investimentos iranianos na Síria em apenas quatro dias.
A Turquia, que partilha uma fronteira de 900 quilómetros com a Síria, tem sido um dos principais apoiantes dos grupos de oposição que pretendem derrubar Assad desde o início da guerra civil, em 2011. A queda de Bashar al-Assad permitiu à Turquia, através do seu representante sírio, o Exército Nacional Sírio, reagir às forças curdas naquele país, aliadas do seu inimigo, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). As autoridades turcas pensam evitar assim uma região autónoma controlada pelos curdos na sua fronteira ou um novo êxodo de refugiados espoletado pela instabilidade. Apesar de definir o HTS como um grupo terrorista, os analistas consideram que, sem a ajuda de Ancara, as operações militares que ditaram o fim do regime não se concretizaria. Desde 2016, a Turquia conduziu várias incursões na Síria, com o objetivo de repelir o Daesh ou militantes curdos, e criar uma zona tampão ao longo da sua fronteira - o que conseguiu, ficando a controlar uma faixa no norte da Síria. Procurará assim a Turquia manter ou reforçar a sua influência no restante território sírio?
Mustafa Kibaroğlu, do Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade MEF, em Istambul, que ministra cursos sobre a política externa turca há décadas, nega, contudo, que existam "aspirações otomanas" que possam ser atribuídas aos principais decisores políticos da Turquia. "Tais impressões podem surgir internacionalmente, dado o contexto histórico da Turquia como sucessora do Império Otomano, que se dissolveu após a Guerra de Libertação liderada por Mustafa Kemal Atatürk, culminando com o estabelecimento da República da Turquia, em 1923; hoje, a Turquia é um Estado secular e democrático." Mas Erdogan tem contrariado essa secularidade, chegando a condenar os esforços para separar a identidade turca das suas raízes históricas e culturais islâmicas, e descrevendo-os como tentativas para "colocar a nação turca num museu". O seu partido, AKP, tem origens islâmicas. Muitos dos críticos de Erdogan referem os seus tiques autocráticos, alegando que o líder turco se comporta mais como um sultão do Império Otomano do que como um democrata. Em julho de 2020, o Presidente turco supervisionou a conversão da histórica Hagia Sophia, de Istambul, em mesquita, irritando muitos cristãos. Construída há 1500 anos, a catedral foi transformada em mesquita pelos turcos otomanos, mas Ataturk transformou-a num museu, garantindo tratar-se de um símbolo do novo Estado secular.
De acordo com o analista Mustafa Kibaroğlu, os altos funcionários turcos têm enfatizado consistentemente o respeito da Turquia pela integridade territorial e política da Síria, apelando a outras potências regionais para defenderem o mesmo princípio. Assim sendo, as operações militares temporárias da Turquia na Síria não poderão ser equiparadas a uma tentativa de absorver território, defende, em declarações ao Expresso. "A limitada presença militar da Turquia no norte da Síria decorre da necessidade de enfrentar as ameaças terroristas e de gerir o fluxo de milhões de sírios que procuram refúgio devido à guerra civil", advoga. "Durante mais de uma década, a Turquia prestou cuidados a quase quatro milhões de sírios - um esforço humanitário sem paralelo, reconhecido e certificado por organizações governamentais e não governamentais internacionais."
A situação dos refugiados na Turquia tornou-se uma questão política interna significativa, influenciando o comportamento eleitoral. Os turcos veem uma oportunidade promissora nesta nova fase da vida política síria. Mustafa Kibaroğlu reconhece que Ancara tem outros grandes interesses na Síria, entre os quais o contra-terrorismo. O Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Hakan Fidan, têm afirmado consistentemente que o grupo YPG, considerado por Ancara como uma ramificação da organização "terrorista" PKK, deve abandonar a Síria. A Turquia sustenta que estes grupos não deveriam ter qualquer papel numa nova Síria, a menos que se desarmassem e passassem por uma transformação fundamental. "A Síria tem sido um terreno fértil para o terrorismo há mais de meio século", aponta Mustafa Kibaroğlu. "Nas décadas de 1970 e 1980, apoiou grupos como o Exército Secreto Arménio para a Libertação da Arménia (ASALA), responsável pelo assassinato de 58 diplomatas turcos e das suas famílias. A partir da década de 1980, Damasco tornou-se a sede da organização terrorista PKK, que causou mais de 40 mil mortes na Turquia, principalmente civis e autoridades de segurança. A eliminação de tais ameaças é de importância primordial para a Turquia."
A estabilidade regional, e subsequente cooperação económica, também serão prioritárias para Ancara. "Uma Síria estável e moderna, envolvida em relações de boa vizinhança com os seus parceiros regionais, é uma grande promessa para a Turquia, enquanto parceiro comercial e empresarial", reforça o professor turco. "As agências governamentais turcas e as empresas privadas estão bem posicionadas para desempenhar um papel significativo nos esforços de reconstrução." Na perspetiva do analista, faltam ainda resolver litígios bilaterais, questões de longa data, como a "recusa da Síria em reconhecer a anexação de Hatay pela Turquia, através de um referendo em 1939, e as divergências quanto à utilização equitativa dos rios Eufrates e Tigre", que poderão ser solucionadas através de negociações assim que a estabilidade for estabelecida. E o passo seguinte deverá ser a integração da Síria em acordos do Mediterrâneo Oriental: "A Turquia beneficiará estratégica e economicamente da negociação da jurisdição marítima e das zonas económicas exclusivas no Mediterrâneo Oriental".
Daí à presunção de que a Turquia pretende formar um império neo-otomano vai uma grande distância, assegura Mustafa Kibaroğlu. "Existem outros grupos rebeldes ambiciosos na Síria, para além do grupo apoiado pela Turquia que tomou o poder", destaca, em declarações ao Expresso, a analista iraniana Haleh Esfandiari, antiga diretora do Departamento de Estudos do Médio Oriente no Wilson Center. "O país está gravemente dividido em termos étnicos e religiosos. Não só a Turquia, mas também os Estados Unidos, Israel e a Rússia têm interesses importantes na Síria. Embora o líder do novo regime sírio tenha mostrado sinais de moderação, as políticas que o seu governo adotará internamente em matéria de islamização, liberdades civis e tolerância política e religiosa, e externamente em relação a Israel, aos Estados árabes e às grandes potências são todas desconhecidas. Temos de esperar para ver."
Em Idlib, na Síria, o HTS, liderado por Jolani, governou 4,5 milhões de pessoas nos últimos cinco anos. Ou seja, havia uma entidade dentro do país que era governada de forma diferente. Era um estado dentro do Estado. Esta governação poderá alargar-se a toda a Síria. Mas o grupo de rebeldes que Ancara ainda considera ser de terroristas tem laços estreitos com o Catar e com grupos jiadistas sunitas na região, incluindo o Hamas e a Jihad Islâmica, que podem agora gravitar ainda mais em torno de Ancara à medida que a influência do Irão se esmorece. Se isso acontecer, a crescente ascendência turca constituirá uma ameaça para Israel e alguns dos países árabes.