Médio Oriente

“Todos os dias morria um de nós. Até que chegou a minha vez”: o regresso de Saleem a uma das piores prisões de Assad na Síria

Saleem Kassim lê os ficheiros deixados para trás pelos guardas que fugiram quando o regime caiu
Saleem Kassim lê os ficheiros deixados para trás pelos guardas que fugiram quando o regime caiu
ANA FRANÇA

Os métodos foram sempre muito imaginativos, a frequência diária. A tortura nas prisões de Bashar al-Assad está bem documentada, até porque o regime tinha fotógrafos que documentavam todos os casos, foi um deles que, sob o cognome Ceasar, mostrou pela primeira vez ao mundo o que tinha acontecido aos primeiros presos da revolução. Saleem Kassim foi um deles. Oito anos depois de ter saído de uma das piores prisões do regime, a chamada prisão Palestina, voltou com o Expresso para contar o que viveu e por que razão não procura vingança

“Todos os dias morria um de nós. Até que chegou a minha vez”: o regresso de Saleem a uma das piores prisões de Assad na Síria

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Saleem quase não cabe no carro, vai com a cabeça dobrada para o lado da janela e os joelhos quase a tocar na barriga. Pede autorização a quem vai atrás para empurrar mais um pouco o seu próprio banco. A folga de alguns centímetros permite-lhe escorregar ligeiramente no cabedal do assento e ter espaço para endireitar o pescoço. Vira-se para trás, passa a mão pela testa de forma teatral, como um mímico a manifestar alívio, e indica o caminho.

Esta é a estrada para a prisão Palestina, oficialmente secção 235 dos serviços secretos sírios. “Há uma discussão nacional sobre se é este o pior local da Síria, se é a prisão de Sednaya ou se é al-Khatib ou outra”, diz Saleem, ao chegar ao enorme complexo prisional. Não fossem algumas janelas partidas e cinco jovens soldados sentados em berrantes poltronas de veludo amarelo, de óculos de sol, abraçados às suas metralhadoras, este podia ser um edifício universitário brutalista doado pela União Soviética.

A fotografia do deposto Presidente da Síria, Bashar al-Assad, que estava por cima desta porta e por cima de todas as mais de 100 prisões de alta segurança que enraizaram o terror em todos os cantos do país, está rasgada, mas uma pintura do seu pai, Hafez al-Assad, na torre de vigia, está quase intacta, tem apenas uns riscos por cima. Pilhas de folhas e cadernos com informação sobre os presos, sobre os informadores, sobre os supostos crimes de quem aqui esteve encarcerado amontoam-se à entrada da prisão.

O pai de Bashar al-Assaf, Hafez, pintado numa torre de vigia da prisão Palestina

Há uma torneira aberta para lavar as escadas e ninguém parece querer saber que daqui a minutos, se a torneira não for fechada, toda esta informação, escrita a caneta, vai parecer uma aguarela. “Este livro aqui por exemplo, diz os nomes dos informadores, e contém alguma da correspondência entre os vários ramos locais dos serviços de informações. E aqui está um relatório de uma ordem dada pelos serviços secretos para alguém matar um sunita de forma a pôr a culpa num cristão. E este aqui fala da explosão de carros armadilhados no dia 23 de dezembro de 2011. O governo acusou a oposição na altura mas aparentemente foi planeado também”, vai lendo Saleem. Agora já pode dizer o nome verdadeiro sem medo: Saleem Kassim. Tem 37 anos. Durante os anos da revolução foi Tanish Tantaish. E aqui dentro foi “só 27, o número 27”.

Foi preso pela primeira vez a 2 de maio de 2011, na sede geral da segurança nacional em Damasco, onde passou 11 dias. Depois disso nunca mais voltou a ter paz. A 3 de julho veio para esta prisão pela primeira vez, durante três dias, dia 15 de abril de 2012 foi preso na secção 251, ou al-Khatib, no bairro de Muhajreen, onde passou quatro meses. No dia 22 de novembro de 2012 foi de novo preso e dessa vez passou um ano dentro da prisão Palestina. Em maio de 2014 voltou mais 11 dias aqui e dia 10 de março de 2016 foi de novo levado para a secção 251, de onde saiu quatro meses depois.

Depois de tudo isto, foi chamado para o exército oficial da Síria, e teve de se esconder em dezenas de casas por todo o país, até finalmente conseguir os cerca de oito mil dólares necessários para escapar ao exército. A sua empresa de publicidade e marketing está no nome do irmão porque quando o exército emite um pedido para que alguém saia da reserva, essa informação é pública e é proibido dar emprego a quem esteja a ser requisitado para o serviço militar.

Saleem Kassim foi libertado em 2016, mas não tinha ainda voltado a uma das piores prisões do regime de Bashar al-Assad
Ana França

Saleem suspira: “Allah”, “Allah”. Veem-se linhas negras na parede, marcas dos açoites que acertaram ao lado do alvo. Descemos umas escadas para a ala principal de celas. “Durante o tempo em que aqui estive tomei banho uma vez com água quente. Nessa altura estava numa cela pequena com quatro homens e fomos festejar o banho quente para a cela. Quando os guardas souberam tiraram-nos da cela no meio da noite e bateram-nos, não só a nós os quatro, a toda a gente, e quatro morreram nesse dia por causa de traumatismos de pontapés na cabeça.” É assim que começa a contar o que viveu aqui. Vai rezando, sussurrando, enquanto grava vídeos no telefone para explicar à mulher e um dia aos filhos, que já nasceram depois de 2016 mas são demasiado pequenos para perceber.

Na casa de banho, meros buracos no chão cheios de lixo, papel e dejetos, aponta para um cano de plástico verde, parece simplesmente uma parte de uma mangueira. Foi uma das principais armas de tortura dos guardas. “Este tubo é o senhor Brahimi, é o nome do tubo, porque em 2012 um diplomata argelino, Lakhdar Brahimi, tornou-se enviado das Nações Unidas para a paz na Síria e uma das missões dele era garantir o tratamento decente dos presos, então eles faziam-nos gritar por ele, a ver se ele nos ouvia e vinha ajudar”, conta Saleem.

Ao longo da parede que separa as casas de banho do corredor de celas ainda há alguns pratos de metal e sopeiras com restos bolorentos de arroz. Os presos comiam virados para a parede, de cócoras. “De manhã um ovo e uma fatia de pão, à noite uma maçã para quatro, e um copo de arroz para quatro, às vezes uma sopa. Pequeno-almoço às seis da manhã, jantar às seis da tarde”.

Parece lembrar-se de repente de um outro ritual prisional, que de caminho começa a encenar. Posiciona-se em sentido à porta da cela que ele mesmo ocupou, agora é um guarda. Conta alto, com voz de comando e queixo para cima: “Um, dois, três, quatro, cinco”. Depois corre para dentro da cela e sai da cela a correr outra vez com dois baldes invisíveis nas mãos em direção à casa de banho. Volta e põe-se de novo na posição do guarda: “Dez!”.

Em dez segundos, os presos tinham de despejar o balde de urina e encher um balde de água para beber e limpar a cela. “Não é possível, então começámos a combinar que um de nós, por turnos, iria garantir pelo menos uma garrafa de água cheia e por isso todos os dias cada um de nós se voluntariava para ser aquele que levava a água para a cela, para ser aquele que apanhava com o Brahimi por não ter conseguido despachar-se em 10 segundos”, conta Saleem. A pressa fazia a urina entornar e era ali que tinham de comer.

Saleem Kassim, prisioneiro em várias prisões diferentes do regime de Bashar al-Assad, aqui fotografado numa das piores, a prisão Palestina, no sul de Damasco
Ana França

De quinze em quinze dias, à hora do jantar, agachados nesta mesma parede, havia a tosquia, e o cabelo caía para cima do prato de comida. Mais um “Allah” suspirado sai-lhe do peito enquanto entramos numa parte ainda mais escura do labirinto de celas. Era aqui, numa esquina perto da porta para os andares de cima, que os guardas largavam os presos mortos, e faziam os presos vivos transportá-los para fora do edifício. “Todos os dias morria um de nós, pelo menos um. Um dia chegou a minha vez. Não conseguiram acordar-me e trouxeram-me para esta esquina. Avisaram a minha família e houve um protesto com fotografias minhas no meu bairro”.

“Um dia com 120 pessoas na cela era um luxo”

Há duas celas grandes, escuras, com roupa no chão, cobertores, um cheiro quase químico da concentração de urina que ainda está em baldes ao canto de uma das celas. Não há nem um fio de luz. É preciso ligar as lanternas dos telefones. Há roupas, cobertores, sapatos, colchões imundos, roupa interior. Os últimos sete meses de prisão de Saleem foram passados aqui. A cela tem cerca de seis metros quadrados. Chegou a conter 200 homens, 230 durante uns dias.

O chão é de quadrados de linóleo, cada quadrado com não mais de 15 centímetros por cada aresta. “O presidente da cela, normalmente a pessoa que está há mais tempo na prisão, ou é o mais velho, tem direito a quatro quadrados destes”, exemplifica Saleem posicionando-se depois num só quadrado, o espaço que era atribuído a cada um dos restantes prisioneiros. Os pés não cabem bem dentro das linhas, e isso era só mais um pretexto.

“As versões do Corão serviam para provar que éramos terroristas religiosos, eles traziam estas coisas que encontravam em nossa casa para as salas de interrogatório para nos questionar e torturar”

Quando os números chegavam perto dos 200 ocupantes, tinham de se sentar “em tesoura”. Mais uma vez Saleem exemplifica. Senta-se no chão com as pernas abertas. “À minha frente, também com as pernas abertas, sentava-se outro, e à frente dele outro, e sempre assim. Isto poupava muito espaço, mas por vezes era preciso colocar mais vinte ou trinta e então os guardas mandavam que um de nós se sentasse no fim da fila e, com os pés a pressionar a parede, fizesse força para trás, e assim os corpos ficavam ainda mais comprimidos e ninguém conseguia mexer-se”. Diz que era preciso ficar assim horas, às vezes um dia, até haver possibilidade de transferir alguns presos. “Um dia com 120 pessoas na cela era um luxo, agradecíamos a Deus e ao guarda, claro.”

Uma das muitas salas com papeis, livros de registos de entrada e saída dos prisioneiros e objetos pessoais das pessoas presas na prisão Palestina, em Damasco
Ana França

No fim de um corredor de celas idênticas a esta existe um quarto com estantes, luz natural e milhares de ficheiros e documentos, uma amálgama de dossiês de espessuras e cores diferentes, grandes cadernos de capa azul como a antiga contabilidade das mercearias, com informação escrita à mão sobre as pessoas que foram admitidas e libertadas, com data, breve descrição do caso, género, idade e a impressão digital do acusado ou acusada, centenas de fotografias e passaportes, uma prótese de uma perna, roupa, malas, versões miniatura do Corão, praticamente impossível de ler de tão minúsculo, e outras edições do livro sagrado do islão encadernadas a cabedal, com versos em baixo relevo, cassetes e dvds de filmes relacionados com o islão, fotocópias de duas notas de 100 dólares. “Ter dólares em casa era um dos maiores crimes, queria dizer que tínhamos relações com o estrangeiro”, esclarece Saleem. “Todas estas versões do Corão serviam para provar que éramos terroristas religiosos, eles traziam para aqui estas coisas que encontravam em nossa casa para as salas de interrogatório para nos questionar e torturar.”

Ainda há um andar abaixo deste, onde não é possível caminhar sem focos mais fortes que o telefone, por medo de esbarrar contra alguma porta ou pilar. Um dos soldados que está connosco, Hassan, traz uma luz de mineiro na testa, também quer ouvir a história de Saleem, ele não esteve preso e não estava de serviço de guarda à prisão nos primeiros dias da revolução, quando todos saíram, então ainda não tinha ouvido ninguém contar realmente o que se vivia aqui.

“Eu comia e chorava, comia mais um pedaço e chorava”

É nos calabouços que fica a principal sala de tortura, há vários pneus, para o método conhecido pelo mesmo nome, que consiste em argolar o corpo com um pneu, deixando as costas e as nádegas de fora de um lado e a cabeça, pernas e braços do outro. Desta forma é impossível uma pessoa mexer-se e, de alguma forma, ir escapando aos açoites. Também há várias cordas penduradas numa grande barra de metal e uma corrente de ferro com elos enormes, com a qual Saleem foi agredido muitas vezes. As cordas serviam para pendurar as pessoas de cabeça para baixo. No topo das grades da cela, que fazem um quadriculado, ainda estão os restos das cordas onde Saleem esteve pendurado em posição de crucificado, sem tocar com os pés no chão, “às vezes meia hora, às vezes meio dia”. A última vez que esteve preso foi em 2016 mas as marcas das cordas cavam sulcos nos seus pulsos fortes, como as marcas de meias demasiado apertadas.

“Um dia, aqui mesmo, um guarda partiu-me uma porta de madeira nas costas, não faço ideia porquê ou o que é que lhe deu para fazer aquilo”

Chegamos à cafetaria, por todo o lado há roupa, carteiras com diversas identificações ainda lá dentro, lençois, casacos. “Quando me trouxeram, diretamente da minha mercearia, roubaram também muita mercadoria para vender aqui e fazer dinheiro. Os presos com algum dinheiro podem vir aqui comprar alguma coisa extra para comer, e um dia comprei aqui a minha própria halva”, diz Saleem.

Halva é um doce com a consistência de areia molhada, feito com frutos secos transformados em pó que é depois prensado, e misturado com açúcar e óleo. “Imagina, comprar aos carrascos a minha própria halva, que eu fiz, comprar o sabor da minha vida lá fora, eu comia e chorava, comia mais um pedaço e chorava.” Chora mais uma vez. “Um dia, aqui mesmo, um guarda partiu-me uma porta de madeira nas costas, não faço ideia porquê ou o que é que lhe deu para fazer aquilo.” Vai-se lembrando destes episódios de tortura avulsa, e pára para contar sempre que uma memória, desencadeada por algum espaço ou algum cheiro, aflora.

“Não faço ideia onde ou quando fui torturado com as pernas para o ar e a levar pontapés na cabeça ou em que prisão me penduraram mais tempo pelos pulsos, não sei”

Poucos dias depois deste ataque de raiva, Saleem foi presente a tribunal. Um guarda da prisão foi com ele, entregou um papel ao juiz e o juiz não fez mais que ler o que já lá estava escrito. “Uma boa cena de teatro, bons atores”, brinca Saleem. E o que dizia? “Que eu ajudei os rebeldes, que lhes enviava medicamentos e outra ajuda humanitária, até encontraram em minha casa um daqueles bonecos que os médicos usam para treinar reanimação. Mas eu realmente fiz tudo aquilo de que sou acusado. Mas um miúdo de 16 anos que trouxeram para aqui em 2012 confessou ter um tanque em casa, essa história ficou famosa, bateram-lhe até ele dizer a coisa mais impossível, mais ridícula, só porque podiam fazer isso.”

Também Saleem disse os nomes de toda a gente que conseguiu lembrar-se, contou tudo sobre a organização das atividades da oposição na sua zona de Damasco, o bairro de Khaled ibn al Waleed, e denunciou os seus amigos revolucionários, só que quase todos eles tinham nomes falsos, associados a contas do Facebook que pareciam reais. “Não há heróis, eu disse muita coisa, mas nós não tínhamos nomes, tínhamos alcunhas, eu genuinamente não sei o nome de muitos dos homens e mulheres que estiveram comigo nos protestos, só sei os seus nomes falsos”, conta. “E de qualquer forma não faço ideia do que disse, quando a tortura é muito forte a tua cabeça fica completamente vazia, começas a adormecer, ou a morrer, dizes coisas mas não tens consciência. Não faço ideia onde ou quando fui torturado com as pernas para o ar e a levar pontapés na cabeça ou em que prisão me penduraram mais tempo pelos pulsos, não sei.”

O regime de Assad foi meticuloso na documentação da sua brutalidade. Em agosto de 2013, um desertor militar com o nome de código Caesar contrabandeou 53.275 fotografias para fora da Síria. O nível de horror destes ficheiros tem sido descrito por alguns investigadores como “sem precedentes”. Alguns dos corpos encontrados em morgues depois da queda de Bashar al-Assad mostram que as práticas que Caesar documentou (de 2011 a 2013) continuaram muito depois da sua fuga da Síria, e muito para lá dos tempos negros da guerra civil. Continuaram até dia 8 de dezembro de 2024.

Ainda não há um sistema coordenado de recolha de todo este material, uma falha que muitas famílias têm denunciado, porque sem uma equipa de análise e preservação de tudo isto, a preciosa informação sobre os desaparecidos pode perder-se para sempre. E quaisquer ligações entre o regime de Assad e governos estrangeiros como o dos EUA ou o Reino Unido, ambos acusados por organizações não-governamentais de beneficiarem da política de terceirização da tortura em vários países do Médio Oriente, incluindo a Síria.

Saleem Kassim, a demonstrar como é que os reclusos eram normalmente transportados entre as várias alas da prisão
Ana França

No caminho de regresso ao bairro, Saleem pede um desvio para nos mostrar uma outra prisão, a al-Khatib. É um prédio comum, com apartamentos transformados em prisões e outros transformados em escritórios para os administradores da prisão. Não fica isolado entre duas vias rápidas, como a secção Palestina, fica no meio de um pátio onde militares de 20 anos, se tanto, jogam à bola com miúdos dali. “Quando chegámos, um dos presos começou aos gritos, a ter um autêntico ataque de pânico, mesmo descontrolado, a dizer que não ia entrar, que não ia entrar. Um tipo que vinha a descer a escada pegou num tijolo solto do muro e matou o rapaz mesmo ali. Depois queriam que a ambulância viesse mas os paramédicos não queriam vir porque já sabiam que os serviços secretos iam dizer que ele estava vivo quando chegou a ambulância. Então um outro carrasco qualquer foi ao hospital, esperou que um médico saísse, raptou-o, ele veio aqui, assinou uma certidão a dizer que o prisioneiro tinha morrido ao bater com a cabeça depois de um desmaio e assunto resolvido”, conta Saleem.

"Eu perdoo toda a gente, só quero a minha Síria, agora tenho de volta o meu país, não preciso que ninguém seja preso, que ninguém seja mantido aqui como eu fui, não, não preciso, eles que fiquem onde quiserem e deixem a Síria para nós”

Em 2015, a ONU obrigou Bashar al-Assad a instalar câmaras nas prisões, mas aqui não havia câmaras, não era oficialmente uma prisão. “Neste sítio tudo podia acontecer”, diz Saleem, que nos leva à solitária onde passou quatro das últimas cinco semanas do seu tempo como preso do regime. É uma cela minúscula, chamam-lhe “o caixão”. Tem um teto normal, o teto do quarto e depois um outro teto mais baixo “para criar ainda mais pânico e stress e claustrofobia”.

“Neste espaço, neste corredor, era onde usavam os piores métodos, ninguém via, era aqui que nos batiam com mais força, pior do que na Palestina. Os cabos eram de aço entrelaçado. Aqui não se morre só de doenças, morre-se de ferimentos da tortura, perda de sangue, etc.” Na ala a seguir, a prisão das mulheres, há lenços, chinelos e roupa de criança. Saleem não sabe se houve violações, pensa que não, mas a tortura era igual à dos homens, com espancamentos consecutivos. “Os gritos faziam-nos chorar a todos, aos homens, nas celas.”

Segundo a Rede Síria para os Direitos Humanos (RSDH), mais de 112 mil sírios estão desaparecidos, possivelmente mortos. A base de dados do SNHR inclui registos de aproximadamente 136 mil indivíduos detidos ou desaparecidos à força durante o regime da família Assad. A organização documentou a libertação de cerca de 24.200 prisioneiros de centros de detenção em toda a Síria desde a queda do regime.

Quando perguntamos qual é a sua noção de justiça, Saleem diz que não quer saber o que acontece aos guardas das prisões ou aos diretores dos serviços de informações. “Os primeiros porque tinham tão pouca escolaridade que nem sei se podemos culpá-los, diziam-lhes que era para fazer isto ou aquilo em nome do Bashar, que só o Bashar os protegia, que sem ele iam ser mortos, e pronto, acreditavam. Os segundos porque não há justiça possível, então prefiro não pensar sequer onde eles estão. Eu perdoo toda a gente, só quero a minha Síria, agora tenho de volta o meu país, não preciso que ninguém seja preso, que ninguém seja mantido aqui como eu fui, não, não preciso, eles que fiquem onde quiserem e deixem a Síria para nós.”

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

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