Guerra na Ucrânia

Analista da "Economist": "A Rússia já não fala do aumento da NATO, mas de conquistar território. Se estivesse no Cazaquistão, preocupava-me"

Kassym-Jomart Tokayev, presidente do Cazaquistão, e Vladimir Putin, chefe de Estado russo
Kassym-Jomart Tokayev, presidente do Cazaquistão, e Vladimir Putin, chefe de Estado russo
Mikhail Svetlov

Tim Judah, jornalista e autor de “In Wartime: Stories from Ukraine”, assistiu aos primeiros meses da guerra em território ucraniano. De janeiro a abril, viu repetir-se um cenário que se tornou familiar: o conflito armado no leste da Europa. Em entrevista com o Expresso, o analista político da publicação britânica “The Economist” admite que a história de acalmia nos Balcãs poderia ter sido outra se Kiev tivesse sido tomada pelos russos nos primeiros dias da invasão

Em janeiro deste ano, Tim Judah, repórter de guerra da publicação “The Economist” e analista político, partiu para a Ucrânia, certo de uma guerra estava prestes a eclodir. A experiência nos Balcãs, mas também em países como o Sudão, o Afeganistão, Iraque, Coreia do Norte, a região do Darfur, o Haiti e a Arménia, deram ao autor o arcabouço necessário para antever e analisar conflitos. Entre 1990 e 1991, fez morada em Bucareste, procurando reportar as consequências que tinha tido o comunismo na Bulgária e na Roménia. Foi, depois, para Belgrado e fez a cobertura da guerra da Jugoslávia. Voltou para Londres em 1995, mas nunca se desligou da região dos Balcãs e da Europa de leste. Em “In Wartime: Stories from Ukraine”, obra de 2016, Tim Judah explicava como a Ucrânia, entorpecida por um conflito limitado geograficamente, também se via obrigada a reforçar a sua identidade. Nesta entrevista com o Expresso, o também presidente do Conselho da Balkan Investigative Reporting Network revela que é fácil saber o que fazer quando se está no terreno com as credenciais de jornalista ao pescoço, e faz uma radiografia dos Estados satélite da antiga URSS e da estabilidade política na Europa.

Que ambiente se vivia na Ucrânia, após 2014, com a invasão da Crimeia, e antes da guerra?

Era uma espécie de guerra de baixa intensidade desde 2000, voluntária na área das bases ao longo das linhas da frente. Havia pessoas a morrer, mas foram menos de cem em 2021. Comparativamente com a guerra, não são muitas pessoas. Era um conflito contínuo, mas quase não afetou o resto do país.

Em 2014, muita gente foi para a luta, houve uma adesão muito alta, e o Exército ucraniano, que se reorganizou desde essa data, aprendeu muito com o conflito. Estava mais bem preparado para lutar contra os russos quando esta invasão começou.

O que é triste, mas que devo dizer, porém, é que, em termos gerais, a Ucrânia caiu numa negação, acreditando que o que aconteceu a 24 de fevereiro não aconteceria. A grande maioria das pessoas não acreditava que haveria um novo conflito. Eu cheguei à Ucrânia três semanas antes, mais ou menos, a 27 de janeiro.

" Os serviços secretos da Ucrânia sabiam que algo estava por vir, mas, como a maioria das pessoas, não acreditavam que seria um ataque tão massivo em todo o país. Achavam que seria uma operação no Donbas."

Foi para a Ucrânia em janeiro porque acreditava que a guerra iria acontecer?

Bem, era bastante óbvio que algo ia acontecer, não para os ucranianos, mas, para mim, era óbvio que iria haver um conflito. Também fiz a cobertura do período de 2014.

Mas, no início deste ano, passei uma semana em Lviv, outra em Odessa, fui para Kiev... E, onde quer que eu fosse, perguntava às pessoas se estavam preocupadas com a possibilidade de uma guerra acontecer. A grande maioria das pessoas disse que não, que não ia acontecer. Acho que não é assim tão incomum, em termos de política externa. Em 1992, a maior parte das pessoas na Bósnia dizia que não iria haver uma guerra, apesar de ter havido uma guerra na Croácia e apesar de estarem a ocorrer preparativos para um conflito. Esta negação não é assim tão incomum, mas foi muito marcante para mim.

Não estavam cientes das ameaças, mesmo depois de os serviços secretos dos Estados Unidos e do Reino Unido terem alertado, em dezembro, para a iminência da eclosão da guerra?

O povo ucraniano não acreditou nessas alegações. A maioria das pessoas ouviu dizer, mas o Ministério dos Negócios russo dizia que não haveria uma guerra, que isso era um absurdo, uma histeria. Os ucranianos também estavam a tentar negá-lo. Os serviços secretos da Ucrânia sabiam que algo estava por vir, mas, como a maioria das pessoas, não acreditavam que seria um ataque tão massivo em todo o país. Achavam que seria uma operação no Donbas. Se o Governo não dizia abertamente que ia acontecer, as pessoas não tinham motivos para acreditar.

Tim Judah

Mas, quando uma guerra começa, tudo muda de repente... Para cada jornalista a experiência é diferente. Como foi para si?

É um pouco difícil de descrever. Eu fazia parte de uma equipa com dois fotógrafos, tinha um tradutor e um carro. Em tempos como este, jornalisticamente é muito fácil, nós sabemos o que temos de fazer ali. Não é muito difícil saber o que fazer.

Hoje a Ucrânia é um Estado seguro de si e da sua identidade? Essa identidade sairá reforçada ou enfraquecida pela guerra?

Penso que isso já aconteceu, depois de 2014. Antes de 2014, não era muito importante se uma pessoa era russa ou ucraniana. Mas, em 2014, as pessoas tiveram de decidir. Passou a ser relevante. A maioria das pessoas decidiu que era ucraniana.O que não é importante é a língua que cada um fala. Os russos conseguem ser muito conservadores. Acreditam que, se alguém fala russo, é russo. Isso é uma estupidez. É o mesmo que dizer que, se em Angola se falar português, as pessoas não são angolanas, e, sim, portuguesas. É algo muito estúpido de se dizer. A Rússia está a ter dificuldades para se ajustar a esse facto.

"Devemos estar atentos ao que acontece no Cazaquistão, por tudo aquilo que têm dito os representantes russos. Se eu estivesse no Cazaquistão, estaria preocupado."

A primeira-ministra da Moldávia voltou a manifestar temores relativamente aos próximos passos de Vladimir Putin. De vez em quando, os Estados pós-soviéticos vêm expressar esse medo. Ainda é uma ameaça real, face à visão imperialista de Putin?

Claro que sim, especialmente agora. Os representantes russos já não estão a falar da expansão da NATO, já falam abertamente sobre conquistar território. Já ficou claro que o objetivo é conquistar território e destruir a Ucrânia, por isso, com certeza, todos os outros países têm de estar realmente preocupados. Podemos falar da Geórgia, por exemplo, que já perdeu partes do seu território. Também devemos estar atentos ao que acontece no Cazaquistão, por tudo aquilo que têm dito os representantes russos. Se eu estivesse no Cazaquistão, estaria preocupado. Ficaria menos preocupado se me encontrasse em algum Estado báltico, porque esses são membros da NATO. É muito difícil prever o que Putin fará a seguir e de que forma escolherá acelerar acontecimentos.

Os analistas prevêem uma guerra longa. Com o conhecimento que tem acerca da História destes países que foram satélites da Rússia, acredita que a alternância entre períodos de guerra quente e conflitos congelados é uma espécie de destino desta região que ainda será mantido ao longo dos próximos anos?

Neste momento, seria como dizer, em janeiro de 1939, o que aconteceria na Segunda Guerra Mundial. Mas não nos esqueçamos de que a maior parte das previsões acerca da Ucrânia revelaram-se erradas. Não ia acontecer uma guerra, mas depois os serviços secretos dos EUA e britânicos disseram que haveria. E, ainda depois disso, todas as previsões sobre a Ucrânia desmoronaram muito rapidamente: a Ucrânia não capitulou imediatamente, nem o Exército russo é tão incrivelmente forte que tenha conseguido chegar a Kiev em dois dias.

Não quero fazer nenhuma previsão, porque provavelmente estarei errado. Eu saí em abril, e, desde então, os russos realmente não conseguiram avançar muito. Conseguiram dominar grande parte de Luhansk, que é uma região praticamente vazia, e uma parte do Donbas, mas realmente não fizeram avanços significativos. Os serviços secretos britânicos têm dito que os russos estão a perder força, que os avanços são muito lentos. E provavelmente será pior nas próximas semanas. Todos os dias os ucranianos recebem armas ocidentais mais sofisticadas.

"Se os russos chegassem a Kiev em 48 horas, e se tivessem sido bem-sucedidos, estaríamos a contar uma história completamente diferente. Mas o insucesso da Rússia foi um freio para esta região dos Balcãs."

Mas há outros grupos separatistas em países próximos da Rússia e da Ucrânia. Teme que possam reagrupar-se, sendo influenciados por esta guerra para reiniciar conflitos?

Se olharmos para os Balcãs, devemos prestar atenção ao que acontece na Bósnia-Herzegovina, e Milorad Dodik, líder da Bósnia e dos sérvios, tem falado na sucessão há anos.

Os sérvios estão a debater a sucessão na Bósnia-Herzegovina há anos. No ano passado, ele deu um passo concreto para recuperar os poderes do Estado central, e isso criou a maior crise política desde o final da guerra, em 1995. Até ao final de 2021, ele zombava dos países ocidentais, dizendo que não havia forma de militarmente travarem o que ele estava a fazer e que esperavam a ajuda dos seus amigos. Então, vamos olhar para o que aconteceu este ano: é exatamente o inverso. Esperaríamos que a Rússia encorajasse este processo, de forma a dividir ainda mais as atenções ocidentais, mas os sérvios e bósnios suspenderam as movimentações para retirar os poderes de Sarajevo. Também disseram que gostariam de ter a força militar da UE na Bósnia, que duplicou o seu tamanho, para um total de 1100 soldados. Foi assumido que pediriam à Rússia que vetasse esta permanência, mas agora são os próprios a quererem que as tropas fiquem.

Por isso, na verdade, no lugar-chave nos Balcãs onde esperaríamos ver isso, está a acontecer exatamente o oposto. Se os russos chegassem a Kiev em 48 horas, e se tivessem sido bem-sucedidos, estaríamos a contar uma história completamente diferente. Mas o insucesso da Rússia foi um freio para esta região dos Balcãs.

Depois da anexação da Crimeia, foi reportado que outros processos semelhantes estarão nos planos da Rússia, fragmentando ainda mais a Ucrânia. Num contexto de guerra de larga escala, como a que viu, receia que isto seja realizado com grande violência e mais situações de abuso arbitrário?

O que eles estão a planear é uma farsa: um referendo falso a ser realizado em Kherson ou Zaporíjia. Eles podem dizer o que quiserem, e têm-no dito há já vários meses. Preparam um referendo falso para declararem que qualquer região faz parte da Rússia, tal como fizeram na Crimeia. Mas essas coisas não são irreversíveis.

No início das Guerras nos Balcãs, um terço da Croácia foi ocupado por um dissidente separatista de uma república, e as pessoas acreditavam que esse território não voltaria a ser controlado pela Croácia, mas, alguns anos depois, essa história foi apagada do mapa pelo Exército croata.

Como vê, por exemplo, a posição da Turquia, que parece estar próxima da Rússia, mas, ao mesmo tempo, tem objetivos europeus e é um país da NATO? É uma forma de equilíbrio que pode desequilibrar a Europa?

A Turquia é apenas um entre vários países que estão a tentar aproveitar-se do conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Alguns dos ataques mais devastadores e bem-sucedidos contra os russos foram conduzidos por drones dados pela Turquia, que têm sido um componente-chave das forças ucranianas. A Turquia está a jogar de ambos os lados da ofensiva.

"As sanções têm efeitos ao longo dos anos, e foi o que aconteceu nos Balcãs. Digo-o com base na minha experiência. Vivi esse período com atenção, e sei que os efeitos foram sendo sentidos ao longo dos anos, e são devastadores."

A Rússia pode sair desta guerra mais forte do que o que o Ocidente pensa?

Penso que não. A Rússia foi completamente isolada do Ocidente, apesar de, no curto prazo, as sanções não terem produzido grandes efeitos. As pessoas que pensam que os efeitos são sentidos da noite para o dia estão enganadas. As sanções têm efeitos ao longo dos anos, e foi o que aconteceu nos Balcãs. Digo-o com base na minha experiência. Vivi esse período com atenção, e sei que os efeitos foram sendo sentidos ao longo dos anos, e são devastadores. Terão um impacto devastador na economia russa.

Não imagino como a Rússia se possa fortalecer agora. Milhares de pessoas, de tropas russas, estão a morrer. A imagem da Rússia, na maioria dos lugares do mundo, foi muito afetada.

China, Irão, alguns países africanos, Turquia, Índia, até o Brasil, são países que não endureceram a sua narrativa em relação à Rússia.

Quer dizer, há países que não apoiam os EUA e o Ocidente, e que até podem apoiar a conquista russa e a tentativa de destruir a Ucrânia. Mas, a longo prazo, isso não vai fortalecer a Rússia no plano da geopolítica mundial.

Pelo que perceciona da imprensa internacional, das sondagens e da opinião pública, vê a solidariedade com o povo ucraniano a enfraquecer? Isso será um problema para os líderes mundiais?

Para já, ainda não. Suponho que, à medida que o tempo for passando e se a guerra se mantiver, a política mundial ver-se-á enfraquecida. Em termos gerais, acho que a solidariedade mantém-se bastante forte, mas, por exemplo, Portugal começou a questionar por que deve reduzir o consumo energético em 15%, quando, na verdade, os alemães é que são dependentes do gás russo, e Portugal não. Esses comentários vão, claro, emergir. Tenho a certeza de que vai acontecer.

É muito difícil fazer previsões, mas o que se pode esperar para os próximos meses em todo o mundo? Que cenários vê surgirem?

Manter-se-á tudo na mesma, exceto se acontecer um grande imprevisto, especialmente no sul da Ucrânia. Mas, em 1939, ninguém acreditava que haveria uma Guerra Mundial. Hoje também não acreditamos que possa haver, mas também vão surgir erros. Os russos e os países ocidentais não podem correr riscos e sabem-no.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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