Internacional

Cinco anos depois do fim da ETA, (quase) tudo mudou no País Basco

Polícia identifica armas entregues pelo grupo terrorista ETA numa aldeia do País Basco francês
Polícia identifica armas entregues pelo grupo terrorista ETA numa aldeia do País Basco francês
IROZ GAIZKA/AFP/Getty Images

Grupo terrorista anunciou o seu fim a 3 de maio de 2018, num lacónico comunicado. A entrega do arsenal sem exigir contrapartidas foi um passo relevante, mas há caminho a percorrer no reconhecimento do mal causado

Um dos passos mais difíceis de explicar no labirinto de horrores que a ETA provocou foi a sua decisão de iniciar um desarmamento unilateral e dissolver-se sem exigir contrapartida. O comunicado foi difundido a 3 de maio de 2018, quase sete anos depois de a organização terrorista ter anunciado o fim definitivo da luta armada. A vontade de entregar até à última bala do arsenal vinha a marinar há algum tempo.

Em abril de 2018, através do boletim informativo “Zutabe”, que a ETA editava para consumo interno de militantes e simpatizantes, a direção do grupo afirmava estar visto que “que os objetivos não se cumpriram”. Criada 60 anos antes, a ETA, que assassinava então há meio século, reconhecia a contragosto que a velha locomotiva da violência estava metida num beco sem saída e que era indispensável abrir a porta a uma renúncia “coordenada” a todas as espingardas, explosivos e pistolas que ainda detinha. “Para nós o dia chegou tarde, mas vivemo-lo com esperança e alegria”, conta ao Expresso Maixabel Lasa, viúva do político socialista Juan María Jauregui, assassinado pela ETA em 2000.

O problema era a quem entregar o arsenal. O Governo de Espanha, então presidido por Mariano Rajoy (Partido Popular, centro-direita), advertira que “o único lugar para isso é o primeiro quartel da Guarda Civil que encontrem pelo caminho”. Acabaram por preferir o Governo francês, num ato sem eco mediático em Espanha.

Só o Centro para o Diálogo Humanitário Henri Dunant, em Genebra, tentou conferir solenidade à declaração de desarmamento, difundindo a gravação de dois encapuzados, que se veio a saber serem o histórico dirigente Josu Urrutikoetxea ‘Josu Ternera’ e Soledad Iparragirre ‘Anboto’. “A ETA nasceu do povo e agora fundir-se-á com o povo”, foram as últimas palavras que proferiram.

No dia seguinte, realizou-se na localidade francesa de Cambo-les-Bains um ato simbólico encabeçado pelo mediador internacional dos conflitos da Irlanda do Norte e África do Sul, Brian Currin. O seu esforço não teve mais repercussão do que a recordação de todas as vítimas que as suas ações causaram durante 50 anos, a maior parte já no período da democracia.

“Se tivesse sido antes, o meu marido ainda estaria entre nós”

Maixabel Lasa viu regressar naquele dia a dor e a memória, como que numa espiral. “Se tivesse sido antes, o meu marido ainda estaria entre nós. Como muitos outros. Ainda assim, senti entusiasmo, porque tudo mudou. Deixei de ter necessidade de andar com escolta policial, com o que isso significa. Agora falta terem a coragem de nos contar o que sucedeu durante tantos anos.”

Anúncio do fim da atividade armada da ETA
Handout/Getty Images

Consuelo Ordóñez, presidente do Coletivo de Vítimas do Terrorismo (Covite) e irmã do dirigente do PP basco Gregorio Ordóñez, assassinado em 1995, faz uma avaliação mais contundente. Numa recente conferência sobre as dezenas de mortes ainda por esclarecer, assegurou que o anúncio da ETA foi a constatação do fracasso de uma estratégia que visava aniquilar a democracia. “A ETA não teve alternativa a resignar-se e aceitar o que nenhum grupo terrorista em retirada aceitara antes: entregar as armas à polícia, neste caso francesa, e dissolver-se sem mostrar arrependimento por tanto dano causado.”

Sabe-se hoje que a tentativa de maio de 2018 não foi a primeira. Houve outras, antes, para pôr fim ao pavoroso túnel de violência. Nenhuma singrou. A 8 de abril de 2017, por exemplo, houve uma entrega de armamento à polícia francesa, mas foi ridícula. Parte das armas tinham sido roubadas, outras já nem estavam sob o controlo da direção da ETA. Um caos.

Um filme que resgata a memória

Os jornalistas José María Izquierdo e Luis R. Aizpeolea são guardiães da memória, graças ao excecional documentário “O fim da ETA”, sobre os momentos decisivos que precipitaram a fase terminal do terrorismo. Apresentado no Festival de Cinema de San Sebastián, em 2016, o filme reúne as vozes de todos quantos participaram num processo de negociação cercado em todas as frentes, mas bem-sucedido no seu objetivo principal: que a ETA deixasse de matar.

Narrada pelos próprios protagonistas de forma encadeada — desde o socialista Jesús Eguiguren e o independentista Arnaldo Otegi até ao ex-ministro do Interior (já falecido) Alfredo Pérez Rubalcaba, e Martin Griffiths, discreto diretor do Centro Henri Dunant que fez de mediador em conversações já decorriam há dez anos numa aldeia da província basca de Guipúscoa —, o filme esboça a estratégia da antiga Batasuna (braço político da ETA) para afastar a direção armada de decisões que não envolvessem os presos, e a importância do desarmamento.

“Otegi sempre fez análises muito políticas, mas falta-lhe uma crítica moral e ética do uso das armas. É aí que, a meu ver, perde alguma sintonia, porque tanto a sociedade basca como a espanhola avançaram muitíssimo nesse terreno”, refletia Aizpeolea numa extensa entrevista.

É que o uso de pistolas tem números e letras em Espanha: 858 assassínios, milhares de feridos e centenas de extorquidos. Para muitos analistas, não basta despachar quase seis décadas de terrorismo indiscriminado num comunicado de “adeus às armas”, que demora dois minutos a ler, e sem menção da dor causada. É certo que, um mês antes, a ETA pediu “perdão”, mas de forma seletiva, só aos assassinados por engano, considerados pela organização um eufemístico “dano colateral”. As demais vítimas eram “parte do conflito”. O grupo não se retratou.

Restam 144 etarras presos

Desaparecida a ETA, todo o peso da estratégia passou para mãos da esquerda abertzale (patriótica, ou seja, independentista) e dos presos, que foram assumindo a legalidade penitenciária para poderem obter benesses como autorizações de saída. Dos 1605 reclusos que a ETA chegou a ter, permanecem atrás das grades 144.

Há dois anos, a gestão das três cadeias em solo basco foram transferidas do poder central espanhol para o governo autonómico do País Basco, cujo objetivo declarado foi facilitar a reinserção e aplicar a lei por igual a etarras e a delinquentes comuns. A maior parte dos presos por terrorismo (109) está hoje no “segundo grau” do regime penitenciário — aplicado à maioria dos presos em Espanha —, e sete deles saem diariamente da prisão para trabalhar. No “terceiro grau”, o mais favorável para o condenado, há 24 reclusos da ETA. Quatro estão por classificar.

Arnaldo Otegi, dirigente do partido independentista Bildu, sucessor legal da extinta Batasuna, que era braço político da ETA
H.Bilbao/Europa Press/Getty Images

Desde a transferência de competências sobre prisões, já houve 42 progressões para “terceiro grau”, nove das quais concedidas nos primeiros meses de 2023. É um número irrisório face aos 82 concedidos a presos de delito comum. Entre os condenados por crimes de terrorismo, foram revogadas 11 passagens ao “terceiro grau”.

Na região espanhola de Navarra e em França há cerca de 20 presos da ETA a cumprir pena. Desde o passado dia 23 de março deixou de se aplicar a política de dispersão dos presos da ETA, instaurada há 34 anos pelo Executivo socialista de Felipe González e mantida por todos os governos posteriores do PP e do PSOE. Visava impedir coordenação entre presos e obrigava familiares que quisessem visitar etarras presos a percorrer centenas de quilómetros.

A espinhosa questão da memória

A normalidade avança, mas o relato dos anos de chumbo no País Basco ainda não está resolvido a nível político. A prova é a tensão gerada pela abertura de sites municipais sobre a memória, pela mão da Sociedade de Ciências Aranzadi, segundo parâmetros de justiça recomendados pelo governo regional basco e o Instituto Gogora (Memória).

Algumas vítimas sentiram-se ofendidas ao ver nomes de etarras entre os moradores afetados pela violência política que abalou o País Basco durante meio século. Um dos presidentes de Câmara visados, o de Galdakao — Íñigo Arriandaga, do partido Euskal Herria Bildu (Unir o País Basco), sucessor legal do Batasuna —, falou de manipulação. Na sua opinião, os dois etarras mencionados na página web “cabem na classificação de outros factos derivados da violência política, concretamente a política penitenciária e a aplicação de leis excecionais”, pelo que “não há equiparação com as vítimas do terrorismo”.

Uma semana depois de a controvérsia por este incidente ter vindo a lume, todas essas páginas foram encerradas. O Governo central ameaçou que, caso contrário, instauraria processos judiciais contra os responsáveis. Em Espanha o delito de enaltecimento do terrorismo é severamente punido.

Entendimentos possíveis, mas questionados

Apesar de tudo, as relações entre o PSOE e o Bildu “são fluidas”, sobretudo em Navarra e no Congresso dos Deputados, onde os independentistas radicais bascos se tornaram sócios do Governo de Pedro Sánchez, acima do conservador Partido Nacionalista Basco (PNV), mais moderado na questão da independência. PSOE e Bildu já uniram votos para aprovar leis de grande relevância na atual legislatura, sobre pensões, habitação ou direitos das pessoas LGTBQI. A direita espanhola não deixa de criticar tais entendimentos, acusando o primeiro-ministro de depender de aliados do terrorismo.

No País Basco é diferente. PSOE e Bildu mantêm pactos isolados, mas os socialistas governam a região em coligação com o PNV. A dificuldade em forjar alianças mais profundas com o Bildu assenta “na relutância dos independentistas em condenar sem ambiguidades o passado terrorista da ETA e na suspeita de que possam iniciar uma cópia do processo separatista catalão [de 2017] em qualquer momento”, explica ao Expresso um deputado socialista no Parlamento basco.

O Bildu também não goza de paz interna. As mudanças de estratégia e aproximações políticas ao Governo de Espanha levaram ao surgimento de sectores críticos, sem grande uniformidade, mas que questionam seriamente a participação do partido no jogo democrático. Uma dezena de presos rompeu com a linha oficial, em busca de uma amnistia. O Bildu distancia-se deles, com o argumento de que já não fazem parte da esquerda abertzale. Partidos como o PNV ou o PP consideram que isso equivale a lavar as mãos à Pilatos.

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