A Comissão Europeia anunciou esta quinta-feira a proposta de diretiva que irá regular o trabalho nas plataformas digitais como a Uber, Glovo e Bolt, com regras que poderão fazer com que milhares de trabalhadores precários em Portugal e nos 27 possam aceder a contratos de trabalho, baixas médias e dias de férias.
De acordo com o comunicado divulgado esta quinta-feira, a proposta de diretiva da Comissão irá fornecer critérios que ajudem os reguladores a definir se determinada plataforma é, ou não é, empregadora ou apenas contratante de serviços. "Se a plataforma satisfizer pelo menos dois desses critérios, presume-se legalmente que é um empregador", acrescenta a Comissão.
Ser um empregador faria com que milhares de trabalhadores atualmente precários passassem a usufruir de um outro enquadramento legal - o dos trabalhadores por conta de outrem. O que implicaria pagamento do salário mínimo, acesso a negociação coletiva, possibilidade de baixa médica paga, férias remuneradas, proteção contra acidentes de trabalho, subsídio em caso de desemprego e contribuições regulares ao sistema de pensões da Segurança Social.
"As plataformas terão o direito de contestar ou 'refutar' esta classificação, cabendo-lhes o ónus de provar que não existe qualquer relação laboral que as vincule", segundo o berço executivo da União Europeia. "Os critérios claros propostos pela Comissão permitirão aumentar a segurança jurídica das plataformas, reduzir os custos de contencioso e facilitar o planeamento empresarial", diz.
As plataformas de transporte e de estafetas estão há anos sob forte contestação em vários países devido às práticas laborais que tratam como profissionais independentes os motoristas que operam os serviços. As plataformas justificam-se até agora numa interpretação da relação de trabalho que descrevia os trabalhadores como meros parceiros, alegando que a flexibilidade otimiza os serviços (os trabalhadores, não tendo de cumprir horários, podem escolher trabalhar nas horas que lhes parecerem mais rentáveis) e os preços, que subiriam com a imposição de custos adicionais.
Entretanto, alegando que a relação entre as plataformas e o trabalhadores é de facto uma relação laboral - há a prestação de um serviço ao longo do tempo remunerada pela empresa, uma sucessão de decisões judiciais em toda a Europa têm derrubado os argumentos das plataformas, como no Reino Unido e em Espanha.
Os governos estão igualmente atentos, como o português - que, através da revisão da lei TVDE, iria regular este mercado e terminar com aquilo que muitos consideram ser a prática constante de abusos laborais que afetam, muitas vezes, faixas mais desprotegidas da população como os migrantes.
Algoritmo, acesso a dados e negociação coletiva
O algoritmo que se substitui ao ser humano na tomada de decisões laborais também é um alvo desta diretiva, dando uma palavra aos trabalhadores. "A diretiva aumenta a transparência na utilização de algoritmos pelas plataformas de trabalho digitais, assegura o acompanhamento humano do respeito das condições de trabalho e confere o direito de contestar decisões automatizadas", resume a Comissão.
A diretiva também versa uma das dificuldades dos Estados na regulação destas plataformas, alicerçando muitas vezes as suas operações em estruturas empresariais opacas sediadas em países fiscalmente mais apelativos, apesar de operarem consistentemente em múltiplos mercados.
"As autoridades nacionais têm frequentemente dificuldades em aceder aos dados das plataformas e das pessoas que trabalham através delas. Isto é ainda mais difícil quando as plataformas operam em vários Estados-Membros, o que torna pouco claro o local onde o trabalho das plataformas é realizado e por quem. A proposta da Comissão irá aumentar a transparência em torno das plataformas, clarificando as obrigações existentes em matéria de declaração de trabalho às autoridades nacionais e solicitando às plataformas que disponibilizem às autoridades nacionais informações essenciais sobre as suas atividades e as pessoas que trabalham através delas", segundo a Comissão.
A Comissão Europeia lançou igualmente uma consulta pública relativamente à possibilidade destes trabalhadores entrarem em processos de negociação coletiva. A consulta incidirá "sobre um projeto de orientações sobre a aplicação do direito da concorrência da União Europeia (UE) às convenções coletivas de trabalhadores independentes individuais, ou seja, pessoas que trabalham completamente por conta própria e não empregam outros".
"Este projeto de orientações pretende proporcionar segurança jurídica e assegurar que o direito da concorrência da UE não entrave os esforços de determinados trabalhadores individuais por conta própria para melhorar coletivamente as suas condições de trabalho, incluindo a remuneração, nos casos em que se encontrem numa posição relativamente fraca, por exemplo, quando se defrontam com um desequilíbrio significativo no poder de negociação e abrange tanto as situações em linha como presenciais", acrescenta Bruxelas.
As plataformas reagem
Entretanto, as associações do sector já reagiram às intenções da Comissão, oficializadas esta quinta-feira com o anúncio da proposta de diretiva.
A Move EU disse através de uma fonte oficial que apesar de "apoiar totalmente o objetivo da UE de melhorar as condições para os trabalhadores das plataformas".
Esta associação europeia das plataformas digitais fundada em novembro do ano passado pela Bolt, Free Now e Uber ressalva que "a grande maioria dos motoristas não quer ser empregado e estudos em toda a Europa mostram de forma consistente que estes não querem perder a flexibilidade e a receita adicional que obtêm por poder trabalhar em várias plataformas simultaneamente".
A associação sediada em Bruxelas acrescenta que "a reclassificação de motoristas não irá necessariamente aumentar os salários ou garantir oportunidades de rendimento e provavelmente levará à perda de oportunidades de rendimento".
Outra fonte oficial, desta feita da Delivery Platforms Europe, diz que o sector está "preocupado com o impacto que esta proposta pode ter nos consumidores, nos restaurantes e na economia da UE em geral".
A associação, criada em setembro de 2021 pelas plataformas de entrega UberEats, Delivery Hero, Glovo, Bolt e a Wolt, considera que "os resultados são claramente negativos para os próprios estafetas bem como para restaurantes e consumidores em países onde as regras facilitaram a reclassificação", apelando a que "o Parlamento e o Conselho garantam que as preocupações de estafetas e empresas como as nossas sejam tidas em consideração e que as propostas possam ser melhoradas”.
(Notícia atualizada às 19h31 com comentários das associações de plataformas digitais.)