Tudo em Hollywood ao mesmo tempo: será “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” o grande vencedor dos Óscares este domingo?

Há um vírus à solta no mundo do cinema: está a pôr toda a gente a votar num filme improvável e a fazer de 2023 um ano histórico
Há um vírus à solta no mundo do cinema: está a pôr toda a gente a votar num filme improvável e a fazer de 2023 um ano histórico
Crítico de Cinema
Se há três meses alguém dissesse que “Top Gun: Maverick” e “Avatar: O Caminho da Água” estariam na lista de nomeados a Melhor Filme ou que uma comédia maluca, como “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”, podia ser a fita mais oscarizada do ano, eu responderia que era impossível. Também pensei o mesmo quando Donald Trump se candidatou à Casa Branca, em 2016. A América não cessa de nos surpreender.
É certo que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas mudou bastante nos últimos anos, ao incorporar gente de muita origem e muito mundo para cortar com o perfil WASP (acrónimo que em inglês significa branco, anglo-saxónico e protestante) e o espírito tradicional que a caracterizavam. Mas também é necessário ter em conta o estado atual da indústria, as várias incertezas com que se debate, num panorama em que se navega à vista num mar de escolhos.
2022 foi o ano de todos os perigos. Saídos da pandemia, meio a medo, com a China ainda muito fechada, os humanos foram fazer muitas coisas, restringidas ou mesmo vedadas nos longos meses da ameaça sanitária, mas não correram para os cinemas. O confinamento fizera-os experimentar intensamente as plataformas de streaming, cortando hábitos de sala escura. Toda uma fileira da atividade cinematográfica estremeceu nos seus pilares. No campo da exibição, sucederam-se o fecho de salas, as falências, o abandono.
O sector só não teve mais colapsos porque houve dois filmes, em 2022, que puxaram quantidades massivas de espectadores (muito maioritariamente) jovens para os cinemas. O primeiro foi “Top Gun: Maverick”, protagonizado e produzido por Tom Cruise. Estreado em Cannes e logo a seguir em todo o mundo, o filme teve o seu período de grande força na primavera/verão e deixou nas bilheteiras quase 1500 milhões de dólares. “Você salvou o coiro de Hollywood”, disse Spielberg a Cruise, num vídeo privado gravado durante um evento há poucas semanas que se tornou viral. Fala quem sabe. Em dezembro foi o regresso de James Cameron com “Avatar: O Caminho da Água”, um delírio. Com uma rapidez fulgurante, o filme atraiu multidões, já está perto dos 2300 milhões de dólares e continua... É o terceiro filme que mais dinheiro faturou em todos os tempos. E no entanto, apesar destas vigorosas transfusões, o corpo da exibição cinematográfica continua frágil, ainda não recuperou a robustez de 2019.
Segundo reportou a “Variety”, logo em janeiro, o mercado mundial terá atingido 26 mil milhões de dólares em 2022, 35% menos do que a situação pré-pandémica. Pior: o filme médio para públicos adultos, não colhe. “Tár”, por exemplo, com um orçamento estimado em 35 milhões de dólares, granjeou nas bilheteiras pouco mais de 17, até agora… Além deste quadro, as dores de cabeça dos gestores da indústria agravam-se pelo facto de o território do streaming estar em guerra aberta pelo mercado, ninguém ver onde e quando param os prejuízos, galopantes. A paisagem audiovisual vista de Hollywood tem muitas nuvens negras. Este é o enquadramento em que a Academia celebra o cinema na cerimónia dos Óscares. Quem só conseguir ver o glamour e a passadeira vermelha estará a olhar para a espuma.
Foi Steven Spielberg, outra vez, quem, em declarações ao site de notícias “Deadline” se congratulou com o facto de “Top Gun: Maverick” e “Avatar: O Caminho da Água” estarem nomeados para Melhor Filme. O cineasta que, com “Tubarão”, esteve no cerne da ideia de blockbuster, é sensível ao que funciona bem na indústria. Para ele é justo celebrar os sucessos de bilheteira. De algum modo, põe-se de acordo com certos usos da Academia, recentemente esquecidos.
Quando, em 1960, “Ben-Hur” foi coberto de Óscares (11, nada menos), ou “Música no Coração”, em 1966, ou, mais perto, “O Senhor dos Anéis — O Regresso do Rei”, em 2004, era a grande máquina cinematográfica que se laureava. Só em anos próximos é que se começou a pensar numa quase categoria que seria específica para as estatuetas douradas, deixando de lado os filmes de maior aparato. De todo o modo, ninguém pensa que as duas citadas locomotivas tenham alguma probabilidade de triunfo. A Academia respeita-lhes a potência e a técnica, mas é só.
Este ano, além desses títulos que muito fizeram pela sobrevivência laboral das gentes do cinema, a lista para o possível Melhor Filme inclui um épico de base alemã no ninho da Netflix (“A Oeste Nada de Novo”), o filme autobiográfico de Spielberg que muito pouca gente quis ver (“Os Fabelmans”), um biopic de Elvis Presley (“Elvis”), o polémico e multinacional (10 países coproduzem!) vencedor de Cannes “Triângulo da Tristeza”, três títulos de exemplares ‘filmes dos Óscares’ — “Tár”, “Os Espíritos de Inisherin” e “A Voz das Mulheres” — e um elefante na sala, situação em que, como é sabido, a loiça fica toda em cacos: “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”.
É uma comédia sem rédea, pincelada de filme de ação, ficção científica, aventuras, tudo muito louco e com ar de ser uma produção independente (mas, atenção, com um orçamento estimado em 25 milhões de dólares), feita por gente cúmplice que se divertiu muito a fazê-lo. Em Portugal, ninguém lhe ligou peva, quando estreou em abril: no fim de semana de abertura (37 salas) teve resultados modestíssimos (2597 espectadores em 293 sessões, o que dá um rácio desastroso de menos de nove por sessão). O filme havia de ir sendo espremido até ao caroço e terminar carreira um pouco acima dos 17.500.
Nos Estados Unidos, todavia, a fita realizada por Daniel Kwan e Daniel Scheinert seria um grande êxito, à sua escala (73 milhões de dólares de box-office, a que se acrescentariam 31 da carreira internacional), no fundo um primo menos global que “Top Gun…” e “Avatar…”, mas, ainda assim, um tipo da família, a fazer pela vida e a chegar lá. Quando abriu a ‘temporada dos prémios’ começou a ser distinguido por diversos sectores da crítica, foi o filme do ano para o American Film Institute, conseguiu nomeações para os Globos de Ouro (e apenas uma vitória). Quando surgiram as nomeações académicas (na América e no Reino Unido), “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” apareceu nomeado em ambas na principal categoria, carregando ainda uma série de nomeações em outras. Ainda assim, ninguém pensava que tivesse grandes hipóteses.
Nos BAFTA só ganhou na Montagem, o que se considera razoável. Os votantes britânicos destacaram como Melhor Filme, o pacifismo de “A Oeste Nada de Novo” do alemão Edward Berger, o que também não deixa de ser surpreendente. Mas quando a Guilda dos Produtores premiou “Tudo em Todo o Lado…”, quando a Guilda dos Realizadores elegeu a dupla Daniel & Daniel e quando a Guilda dos Atores deu ao filme três dos cinco galardões em que podia vencer, percebeu-se que havia uma onda de fundo. As casas de apostas inverteram, por completo, os seus cálculos. Agora, tudo aponta para que “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” vá ganhar. Logo a seguir indicia-se “A Oeste Nada de Novo” como o segundo mais provável.
Mas… não é verdade que a Academia não costuma premiar comédias? É. Que o diga o grande Billy Wilder, um dos cineastas mais oscarizados de sempre (seis, boa conta) que só foi premiado, quer como realizador, quer como argumentista, pelos seus dramas (“Crepúsculo dos Deuses”, “Farrapo Humano”, “O Apartamento”), nunca pelas gargalhadas que nos fez soltar (e que merecidos seriam a escrita e a realização de “Quanto Mais Quente Melhor”). Das glórias imemoriais da História do Cinema — Buster Keaton, Chaplin, Lubitsch, Jerry Lewis, Tati — só Chaplin é que foi laureado… pela música que fez para “Luzes da Ribalta”. É bem possível que, no domingo à noite se contrarie esta estranha malapata que o riso encontra na Academia. Não serei eu quem lamente a quebra do enguiço, só que, na minha modesta opinião, o filme não merece. Antes o prémio fosse para “Os Fabelmans” ou, melhor ainda, para o vertiginoso “Tár”. Só que eu não tenho direito a voto.
Pela mesma bitola de razões, Daniel Kwan e Daniel Scheinert são favoritos para o Óscar da Melhor Realização (o BAFTA foi para Edward Berger), categoria em que todos os nomeados são estreantes nessa função, à exceção de Steven Spielberg (ganhou com “A Lista de Schindler”, em 1994, e “O Resgate do Soldado Ryan”, em 1999). Até ao fecho das urnas o meu voto estaria indeciso entre Todd Field (“Tár”) e Spielberg, com ligeira vantagem para o primeiro.
Nos filmes internacionais, o ano tem candidatos da Alemanha (“A Oeste Nada de Novo”), Irlanda (“A Quiet Girl”, de Colm Bairéad), Bélgica (“Close”, de Lukas Dhont), Argentina (“Argentina, 1985”, de Santiago Mitre) e Polónia (“EO”, de Jerzy Skolimowski), partindo o germânico em sonora dianteira. Deve ganhar. Pessoalmente preferiria o competidor argentino (que os jornalistas que votam nos Globos de Ouro elegeram), hábil reinvenção das ficções de esquerda que, em tempos, gente como Costa-Gavras, Francesco Rosi ou Elio Petri praticou.
Desenganado é o destino do prémio para a Melhor Longa-Metragem de Animação, onde “Pinóquio de Guillermo del Toro” é favorito absoluto. Ganhou nos BAFTA, nos prémios Annie (atribuídos pela ASIFA — International Animated Film Society), nos Globos de Ouro e na Guilda dos Produtores, ou seja, ganhou tudo o que havia para ganhar. O cineasta mexicano Guillermo del Toro vai lograr a difícil proeza de ter casa Óscares por filmes de ‘imagem real’ (“A Forma da Água”, Melhor Filme e Melhor Realização, em 2018) e, agora, de animação.
No capítulo do Óscar para Melhor Atriz, os fados fadaram Cate Blanchett logo em setembro, no Festival de Veneza, quando ganhou a Taça Volpi que premeia a Melhor Atriz, na competição. Assim ungida, ela percorreu a via gloriosa: Atriz do Ano, para a Associação Britânica dos Críticos de Cinema; Melhor Atriz, para a americana National Society of Film Critics; Globo de Ouro — Melhor Atriz Dramática; Melhor Atriz nos BAFTA… Eis senão quando, na Guilda dos Atores (SAG), o prémio foi para… Michelle Yeoh, em “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”. Espanto e confusão.
As casas de apostas que até então indicavam Blanchett como vencedora indiscutível do Óscar, entraram em modo matemático, recalcularam as probabilidades e, à beira das votações, puseram Michelle Yeoh como favorita, considerando que o peso dos votantes da SAG ia ser determinante. Todavia, consideraram mínima a vantagem sobre Blanchett. Fora de jogo, a grande distância das duas principais contendoras, ficam Andrea Riseborough, Michelle Williams e Ana de Armas. Curiosidade: todas as nomeadas são estreantes na função (salvo Cate Blanchett que já ganhou dois Óscares, além de cinco anteriores nomeações não galardoadas).
Moral da história: a poderosa quadriga conduzida pela atriz australiana pode não cruzar o arco do triunfo e ceder a vitória à sexagenária malaia que, um dia, nos assombrou em “O Tigre e o Dragão”, de Ang Lee, usando dotes de bailarina para combates de artes marciais, literalmente tecidos no céu. Contudo, sem nada a perder neste jogo de previsões, continuo a apostar que no colégio eleitoral da Academia deve sobrar alguma massa crítica que favoreça a protagonista de “Tár”.
Na categoria de Melhor Ator — e num ano em que todos os nomeados o são pela primeira vez — as coisas parecem ainda mais embrulhadas que no capítulo feminino. Em Veneza, Colin Farrell (“Os Espíritos de Inisherin”) suplantou Brendan Fraser (“A Baleia”); nos Globos de Ouro e nos BAFTA, a mimetização de Austin Butler em Elvis Presley, no “Elvis”, de Baz Luhrmann, fê-lo arrebatar os respetivos troféus, batendo Brendan Fraser, em ambas as compitas.
Então, porque é que nas bolsas de apostas Fraser aparece favorito, todavia apenas à distância de um pescoço de Butler, como se diz na gíria das corridas de cavalos? Porque foi o grande vencedor na Guilda dos Atores, cujas votações usualmente coincidem com as da Academia. Apostemos então em Brendan Fraser: o filme de Darren Aronofsky não é flor que se cheire, mas o trabalho do ator é retumbante.
Os Óscares para os intérpretes secundários são quase sempre dos mais difíceis de prever. Comecemos pelo gineceu. Este ano, a lista das nomeações conta com duas atrizes que já pertencem ao património do cinema americano — Jamie Lee Curtis e Angela Bassett — e tudo indica que uma delas levará a estatueta para casa. A protagonista de “Halloween” vem da casa grande de “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” e há um mês ninguém acreditava que tivesse a mínima hipótese.
De repente, ganhou na SAG e a roleta das probabilidades acabou a catapultá-la para uma posição elegível. Angela Basset é uma glória do cinema, da televisão e do teatro, e concorre com um papel num blockbuster da Marvel (“Black Panther: Wakanda Para Sempre”), coisa rara nas nomeações da Academia. Ganhou o Globo de Ouro. Nos BAFTA as decisões ficaram, por assim dizer, em casa, com o britânico “Os Espíritos de Inisherin” a levar ao pódio Kerry Condon — a minha preferida para o Óscar — como Melhor Atriz Secundária e Barry Keoghan no contraponto masculino.
As casas de apostas estão a dar ligeira vantagem a Angela Bassett, mas ninguém ficaria muito espantado se a grande Jamie Lee Curtis lhe passasse a perna mesmo à beira da meta.
Pelo lado do Melhor Ator Secundário é que não parece haver grandes dúvidas: Ke Huy Quan, em “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” vai mesmo levar a estatueta dourada. Venceu nos Globos de Ouro, voltou a vencer na Guilda dos Atores, não há que enganar. Pessoalmente, se votasse, iria mais na onda britânica, o papel de composição de Keoghan em “Os Espíritos de Inisherin” seria a minha escolha.
No campo dos prémios de argumento, há, como se sabe, duas vias, uma para Argumento Original, outra para Argumento Adaptado. Na primeira, há uma singularidade que vale a pena notar: Steven Spielberg nunca tinha sido nomeado como argumentista, é uma estreia absoluta. A escrita de “Os Fabelmans” (em parceria com Tony Kushner) põe em destaque uma faceta do seu talento que ele raramente exerce. Embora já tenha sido autor completo — escreveu, nomeadamente, “Encontros Imediatos do 3º Grau” — o mais comum é realizar filmes a partir de guiões elaborados por outros. Para o Óscar, está em competição com Martin McDonagh (“Os Espíritos de Inisherin”), Todd Field (“Tár”), Daniel Kwan & Daniel Scheinert (“Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”) e Ruben Östlund (“Triângulo da Tristeza”).
Nos Globos de Ouro, onde só há um prémio de argumento, independentemente da origem, Martin McDonagh venceu. Os BAFTA seguiram no rasto — e fizeram muito bem (é o meu eleito). O destino parecia anunciar o Óscar para o sagaz (também) dramaturgo britânico, confirmando o aforismo “às três, é de vez” (teve nomeações anteriores por “Em Bruges”, em 2009, e “Três Cartazes à Beira da Estrada”, em 2018). Afinal, não. Afinal, parece que o vírus continua a fazer contágios.
Depois das Guildas dos Produtores, dos Realizadores e dos Atores, foi a vez dos Argumentistas: na noite de domingo, Daniel Kwan e Daniel Scheinert (“Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”) subiram ao palco para receber o respetivo prémio, colocando-os, definitivamente, na frente da grelha de partida para o Óscar. Quanto ao prémio do Argumento Adaptado, os BAFTA escolheram Edward Berger, Lesley Paterson e Ian Stokell por “A Oeste Nada de Novo”, a partir do romance antibélico de Erich Maria Remarque que os nazis baniram em públicos autos de fé. A Guilda dos Argumentistas premiou Sarah Polley, com “A Voz das Mulheres”, escrito a partir de um livro de Miriam Toews, confirmando uma boa onda que se vinha espalhando e que a faz favorita nos prémios da Academia. Seria, também, a minha escolha.
Conclusão: se o maremoto se confirmar e até virar o barco no campo das atrizes, “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” pode ganhar seis dos principais Óscares — Melhor Filme, Realização, Argumento, Atriz Principal, Atriz Secundária, Ator Secundário — algo que nem “Ben-Hur”, “Titanic” ou “O Senhor dos Anéis — O Regresso do Rei” (os mais oscarizados filmes de sempre) conseguiram. O que mais se aproximou (“O Silêncio dos Inocentes”, de Jonathan Demme) ganhou cinco. 2023 é mesmo um ano louco em Hollywood.
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