
A homenagem de Diogo Ramada Curto, diretor da Biblioteca Nacional de Portugal, a Mário Pilar, o homem que criou o “B'Artis”, um dos bares que mudaram a noite no Bairro Alto
A homenagem de Diogo Ramada Curto, diretor da Biblioteca Nacional de Portugal, a Mário Pilar, o homem que criou o “B'Artis”, um dos bares que mudaram a noite no Bairro Alto
Historiador, diretor da Biblioteca Nacional
Foi ontem cremado o Mário Pilar, mais conhecido pelo Mário do B’artis ou simplesmente do Artis. Não era um espelho de virtudes, não lhe conheci nenhum talento especial, nem o seu perfil pode suscitar uma evocação capaz de transformar a sua vida num modelo a adotar. Pelo contrário, existem demasiados buracos na vida do Mário, bem como uma fase de consumo de álcool, que não pode ser elogiada. A sua proverbial dureza e cara de poucos amigos só, lá no fundo, contrastavam com uma doçura de carácter. Mas o facto é que fiz com ele uma amizade sólida. Neste momento de evidente tristeza, só pretendo juntar-me ao coro dos amigos que o acompanharam até ao fim e que guardarão dele a memória das noites inesquecíveis que nos proporcionou.
O antropólogo José Teixeira, do grupo dos Olivais, já escreveu um merecido obituário, onde foi capaz de explicar muita coisa, incluindo o lugar do Artis no Bairro Alto das décadas de 1980 e 1990. Sigo nos seus calcanhares, para acrescentar apenas algumas notas biográficas e de conhecimento pessoal.
Antes de mais, recordo-me que, ainda antes de ter aberto o seu bar, o Mário desempenhou um papel ativo na comissão de trabalhadores da TAP. Foram os anos da revolução, a que se seguiu uma espécie de ressaca onde muita coisa aconteceu. Noutro lugar, já defendi ter sido ao longo da década de 1980 que, em Lisboa, uma certa liberdade foi inventada, durante a noite. Acrescento, agora, que o Mário, saído da TAP e das lutas dos trabalhadores, fez parte dessa invenção que teve no Bairro Alto um dos seus principais focos.
Foi no Barbarela que o vi pela primeira vez, com a sua cara marcada e queimada pelo sol. Ali se reunia o grupo que, pelas tardes, parava na pastelaria chamada Coche Real, que ficava mais abaixo, na Rua do Loreto. Era uma malta que vivia do expediente e do que aparecia. Alguns trabalhavam de noite nas tipografias, outros nas vendas e, nas suas margens, estavam alguns profissionais do gadanho. Muitos deles eram filhos do Bairro, que se tomavam por uns sem-família, com uma enorme consciência dos limites da zona em que viviam. A este respeito, acredite-se ou não, quando a Nova Rede abriu já nessa outra fronteira do Bairro que era o Largo Camões, passou a ser voz corrente que com trinta contos davam trezentos. Isto é, não houve mangas do Bairro que lá não fosse munir-se de um cartão para usufruir do crédito e que o pagasse quem servira de pato.
Mas o mais importante, pelo menos para mim, que vinha de um mundo de privilégios, do outro lado da Rua Misericórdia, foi o Hernâni Miguel, meu companheiro de escola, ter-me levado ao Barbarela pela primeira vez. Por essa altura, o Mário já andava em negociações para abrir o seu próprio bar. Na base da sua educação, estivera a Casa Pia, onde beneficiara de um estatuto especial, pois era filho adotivo do seu regedor e da mulher. Só por isso, pude conhecer muita gente boa, em especial casapianos que frequentavam o Artis, e mais tarde abriram as portas à criação das Noites Longas, no edifício quinhentista da Rua de S. Paulo, alugado pela associação dos seus Antigos Alunos.
No Artis, como tantos outros, aprendi a viver de noite. Tantas vezes, os amigos me diziam que aquilo não era bem sair; era só pôr a mão no balcão para fugir da solidão e do trabalho diurno. Noites memoráveis essas, em que acompanhava com alguns amigos que já se tinham libertado das drogas e não bebiam, até que um dia o Mário também se passou para a cerveja sem álcool. Tinha chegado a uma grade de cervejas por noite... Ali, dançávamos num espaço minúsculo, antes de existirem “play lists” e coisas do género.
Aliás, foi também no Artis que ouvi, pela primeira vez, o Camané, muito jovem, a cantar, num ciclo variado de espetáculos. Noutra sessão do mesmo ciclo inventado pelo Mário, um conhecido travesti cantou e bamboleou-se entre mesas com uma jiboia enrolada ao pescoço. Mas bastava estarmos à volta da mesa – entre Sagres, Favaios e as famosas tostas mistas para ensopar – para que as conversas tomassem rumo. É que o Mário gostava de fazer a diferença, mostrando a sua generosidade e educando a nossa cultura, enquanto suscitava o sentido de comunidade, inspirado pela matriz da sua Casa Pia.
Com tudo isso – que não era pouco, uma mistura de espetáculos, encontros e conversas – o Artis funcionou como um autêntico laboratório de experiências sociais e fez escola. Mais do que a estética e a arte de ser visto, como passou a suceder noutros lugares, foram as conversas cruzadas que se constituíram – se quisesse falar caro e de forma pretensiosamente foleira – em padrão de civilização.
A generosidade do Mário, creio, foi também a sua forma de retribuir o que acumulou e lhe permitiu usufruir de uma vida folgada. Para o conseguir, nunca alinhou nas pressões dos que procuravam extorquir dinheiro aos donos dos bares. Quando tal acontecia, como testemunhei mais do que uma vez, não hesitava em vir até à rua, de peito feito, para mostrar um grande saca-rolhas aberto e a sua cara tesa de poucos amigos. Com ele, não: que ninguém ousasse fazer farinha, quando estava em causa a defesa do seu bar.
Pela mesma razão, também se mostrou cuidadoso na escolha das suas colaboradoras, umas divas inacessíveis que punham os clientes na ordem quando estes levantavam cabelo: a João, que depois foi estudar Filosofia e é hoje professora; a adorável Paula, que teve de trabalhar desde muito cedo como manequim, é hoje advogada; e a Cristina, com a sua enorme sensibilidade psicológica, que emigrou para Paris e se ocupa de pessoas que exigem cuidados especiais.
Lembro-me de ter estado na festa dos cinquenta anos do Mário. Talvez tivesse sido por essa altura que algo mudou na sua vida. Deixou a bebida, que mesmo assim lhe veio a custar mais tarde um transplante de fígado, e retirou-se da vida amorosa. Da sua última namorada ficou apenas a memória e, quando queríamos brincar com ele, perguntávamos-lhe por ela, ameaçando-o com a imagem assustadora do casamento na capelinha. Penso que, por essa altura, as suas escolhas estavam feitas, preferia a sua solidão. Creio que, a pouco e pouco, a sua identidade se passou a confundir mais com o bar e a sua gente, o que lhe permitiu aprofundar o seu lado mais misterioso e metido consigo.
Nas suas horas livres, desenvolveu o gosto pelos livros e tornou-se bibliófilo. Ao mesmo tempo, foi dos primeiros a investir na compra de casas de pescadores da Comporta. As viagens foram a sua última distração e onde melhor explorou a sua curiosidade. A última vez que o vi foi na Biblioteca Nacional, onde procurava informação sobre a sua coleção de livros raros. A sua magreza tinha desaparecido, a sua pele tinha esticado, estava mais gordo e jovial. Em plena forma! Recordámos as noites vividas no Artis e falou-me do seu gosto pelos livros raros e contou-me as suas viagens. Gostei muito de o ver. A sua perda – no ano em que completou oitenta anos – encheu-me de tristeza. Por isso, choro, ao lado de muitos outros, a sua partida.
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