Foi com uma vibrante, longa e comovente salva de palmas que a multidão presente na Basílica da Estrela, em Lisboa, se despediu da "grande dama do teatro", a atriz Eunice Muñoz, na tarde desta terça-feira, 19 de abril, dia de luto nacional.
Foram os 80 anos de aplausos, de palco, e de uma vida longa de 93 anos, que ali se evocaram numa cerimónia que contou com a presença das mais altas figuras do Estado, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o primeiro-ministro, António Costa, e o ministro da Cultura Pedro Adão e Silva, assim como outras tantas dezenas de figuras das artes e da política, além da família, amigos e público que a estimava .
“Era aquela pessoa que as pessoas imaginavam que era. Não há um português que não sinta conhecer Eunice Muñoz. A grande vitória foi a generosidade com que nos abriu mundos e nos ensinou a humanidade. E nessa vida monumental conservou serenidade, não esquecendo a pequena escala, talvez por isso se possa dizer que ela era aquilo que as pessoas imaginavam que era. Celebremos o regresso da Eunice ao grande palco. E a vida dela, e a nossa, é o grande ensaio.” afirmou o Padre António Pedro Monteiro, que presidiu a missa exequial da cerimónia fúnebre de Eunice Muñoz.
O último adeus teve a beleza e a grandeza da vida de Eunice, ao som do “Requiem”, de Mozart, e “A Paixão Segundo São João”, de Bach, com as lágrimas e as palavras que surgiam entre as pessoas presentes a serem, acima de tudo, de uma imensa gratidão e saudade.
À saída da Basílica, o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva deixou uma palavra de reconhecimento ao legado de Eunice Muñoz. “É um reconhecimento que tem um significado particular e que se refletiu nestas cerimónias: a grande proximidade e intimidade que ela tinha com os portugueses. Acho que todos os portugueses, mesmo os que não a conheciam pessoalmente, tinham com ela uma relação de intimidade. E essa relação resultava naturalmente do seu talento e de uma espécie de autenticidade que se sentia em tudo. Estas cerimónias refletiram isso mesmo. Uma espécie de comunhão do povo português com Eunice Muñoz.”
“Qualidades extraordinárias”
No final do velório, antes da missa, a atriz Maria do Céu Guerra sublinhou a grandeza humana de Eunice, pela sua autenticidade e verdade, que se refletia na genialidade das suas interpretações. “A Eunice foi sempre ela própria a fazer teatro. E não nos dava uma lição académica, de estética ou uma aula de representação. Ela foi a grande atriz que é porque nunca deixou de ser a grande mulher que é. As características humanas da Eunice conduziram-na fizeram dela a grande atriz que ela é. Ela tinha desde criança qualidades extraordinárias, quer de voz, de graça, de jeito, a quem as suas características humanas transformaram num génio.”
Céu Guerra acrescentou ainda que uma das razões porque Eunice Munõz nunca fez duas personagens iguais era porque ela dava uma grande atenção às pessoas, fossem importantes, conhecidas ou anónimas. “Ela gostava de pessoas e escutava-as com atenção. E este interesse genuíno pelos outros, fez com que ela desse às suas personagens uma verdade, uma voz especial e um comportamento e um ritmo próprios. Isto não vem de uma escola de artes ou academia, mas das características humanas próprias da Eunice que faziam de si uma pessoa absolutamente excecional. Eu adorava a Eunice.”, remata a atriz.
Ao seu lado, a atriz Isabel Abreu, de forma visivelmente emocionada, lembrou o amor que sentia por Eunice. “Eu tenho um amor à Eunice como se fosse minha mãe. Para além de ser alguém por quem eu tenho uma total admiração enquanto atriz, tenho um amor por ela que se tem a uma mãe. E falo no presente, porque náo consigo falar dela de outra maneira. Eu nunca consegui ver só a atriz. Porque a Eunice é vida. A Eunice não é “eu”, é ‘nós”. É o prazer de quando se fala do tempo, do silêncio. E porque no silêncio está a escuta do outro e do que está à nossa volta e do público. E é nessa escuta que a Eunice existia. E é nessa escuta que ela vai continuar a existir.”
Isabel acrescentou ainda outro aspeto de Eunice especial e digno de aplauso, a forma generosa com que incentivava e elogiava os colegas mais novos. E recordou uma frase que Eunice lhe disse em tempos, e que a marcou. “Ela disse-me: ‘Sabes, filha. Eu nunca tive medo que a vida me desse uma estalada.’ Isso é não ter medo que a vida nos dê uma chapada às vezes. É viver na sua plenitude. E se há alguém que vive a plenitude em cima e fora do palco é a Eunice!”
Esta tarde, os corredores que contornam os claustros da Basílica da Estrela, encheram-se de dezenas de coroas de flores, enviadas por companhias de teatro, amigos e as mais variadas entidades e figuras da política. Os abraços e as histórias sobre Eunice floresceram também em cada canto, entre sorrisos e lágrimas.
Como uma mãe
Também muito emocionado, o ator João Grosso, que contracenou inúmeras vezes em palco com Eunice Muñoz e de quem era grande amigo, partilhou com o Expresso as suas memórias.
Recordou as gargalhadas que deu com Eunice. Quis celebrar a alegria em hora de profunda tristeza e dor. “Muito nos rimos um com o outro à saída do palco para os bastidores. Para mim ela era a mãe Eunice. Tem a ver com o laço afetivo que nós tínhamos.” A primeira vez que João Grosso contracenou em palco com Eunice Muñoz, foi há mais de 30 anos, no espetáculo “D. João e a Máscara”.
Junto ao ator, o escritor, poeta e letrista Tiago Torres da Silva: “É bom falar depois do João Grosso, que com ela fez um dos espetáculos mais maravilhosos que eu vi com Eunice, o “D. João e a Máscara”, de António Patrício, no Teatro da Politécnica. Ele fazia o D. João maravilhosamente e a Eunice gloriosamente fazia a morte. Era muito bonito.”
Sem esquecer a gentileza e a generosidade com que Eunice presenteava os colegas. Para Tiago Torres da Silva era claro que Eunice não gostava de palmadinhas nas costas e de grandes elogios. “Acho que ela não gostaria nada desta coisa de ‘A maior atriz de todos os tempos.’ Ela estava sempre a ver a maior atriz de todos os tempos nos colegas, nos principiantes. E levava-se muito pouco a sério.” Um exemplo? Um episódio passado há uns anos, a meio de um lanche no bar dos artistas, no Teatro Nacional D. Maria II, quando chegou às mãos de Eunice Muñoz uma crítica a enaltecer os seus silêncios em palco.
“Sabíamos que ela habitava o silêncio muito bem, mas ela olhou para a crítica, deu uma gargalhadinha e disse: ‘Os meus silêncios? Que disparate! Eu só estou a tentar ouvir o ponto.’ Era maravilhoso. É muito importante que levemos a Eunice para sempre, porque o respeito, a dedicação, a inteireza com que ela enfrentava cada personagem é verdadeiramente inspirador em tempos em que é tudo tão fugaz e rápido. É bom que nos mantenhamos presos a essa generosidade e inteireza que a Eunice teve em todos os momentos da sua vida. Estes 80 anos de palco que a Eunice nos deu maravilhosamente, é para celebrarmos e aplaudirmos. Muito obrigado, Eunice!”
De forma semelhante, a atriz Teresa Faria agradece a Eunice o facto de a ter ensinado a dar os parabéns aos colegas, o saber reconhecer o trabalho dos outros. Em vez dos sentimentos de inveja. "A Eunice e o Raul Solnado foram as duas pessoas que eu conheci a assistirem aos trabalhos dos jovens atores, com as suas asneiras e ambições, e no final dos espetáculos esperavam para lhes dizer: ‘Obrigado, parabéns!" Isto é muito bonito e gratificante.”
“A bandeira dos atores”
Já a atriz Rita Blanco não esquece que quando tinha 5 anos o seu disco preferido tinha a voz de Eunice a ler o poema “A Menina Do Mar”, de Sophia de Mello Breyner Andressen. E, para si, Eunice é “a bandeira dos atores”. Está certa de que haverá poucos atores e atrizes no mundo com o talento e o longo e glorioso percurso de Eunice Muñoz. “Dos 5 aos 93 anos, a Eunice pisou o palco sempre com a mesma atitude, coerência, delicadeza e entrega. É certamente uma das melhores atrizes do mundo. Não podemos limitá-la a Portugal. Mas é o nosso símbolo. Profundamente amada pelo povo, que é o mais importante, e entre os pares, porque foi sempre delicada com toda a gente. Não se perdeu a Eunice, a sua memória vai perdurar.” A terminar, um recado: “Estou confiante que a Eunice irá para o Panteão!”
No velório, dois dos seus seis filhos falaram também com o Expresso. Susana Muñoz, de 74 anos, filha mais velha de Eunice, partilhou o primeiro sentimento especial em relação à mãe, quando era ainda muito pequena. “Tinha muita vaidade nela, ser muito nova e bonita. A mãe tinha 19 anos quando eu nasci, então era sempre mais nova e mais bonita do que as mães dos outros.” Susana recorda-se de crescer nos bastidores do teatro e de achar fascinante estar à boca de cena dos espetáculos que a mãe protagonizava, como aqueles encenados pela Companhia do Ribeirinho. “Fui espectadora da mãe desde muito pequena. E apercebi-me desde muito cedo que ela era especial. Que era uma atriz extraordinária. Os colegas da minha mãe brincavam todos comigo. Fingiam que me iam puxar para dentro de cena.”
Além disso, “a mãe era uma grande companheira, era aquela pessoa com quem queremos estar, viajar, conviver à mesa. Estava sempre bem disposta e cheia de energia. Era uma força extraordinária. A presença e a energia dela enchiam uma casa”, lembrou Susana Muñoz.
Junto a si, o irmão António, de 63 anos, terceiro filho de Eunice, recordou como a mãe o deixava, e aos irmãos, preparados para dormir, antes de sair para o teatro. “O meu pai na brincadeira dizia que a minha mãe era o guarda noturno e ele ‘a mulher a dias’.”
António diz que toda a vida se fascinou, talvez a melhor palavra é emocionou, pelo talento da sua mãe. “Aquilo que me levava a perceber o quão extraordinária atriz a minha mãe era, é que eu quando a via em palco através das bambolinas, sentia-me manipulado emocionalmente de tal maneira que, de repente, eu estava a viver as vidas das personagens da minha mãe. Aos meus olhos ela deixava de ser minha mãe quando estava no palco.” Guarda uma memória especial de um dos míticos papéis que Eunice protagonizou em 1986, “Mãe Coragem e os seus filhos”, de Bertolt Brecht, encenado por João Lourenço, que estreou no Teatro Aberto: “Eu via emocionado em palco aquela mulher, aquela mãe coragem em tempos de guerra, e não a minha mãe.”
A meio deste testemunho são abraçados por Carminda, assistente operacional no serviço de cardiologia no Hospital Santa Cruz, que esteve com ela nos últimos tempos em que esteve hospitalizada. “Uma grande senhora. Falámos muitas vezes nestes últimos tempos. Até celebrámos os anos dela. Fui despedir-me dela à noite, na sua última noite. Ela que vá em paz. Coragem e força para todos.”
António remata o testemunho sobre a morte da sua mãe com uma mensagem de vida. “Ela de facto gostava muito da vida. Amava a vida. Isso era nítido nela e passava-nos muito. Mesmo nos piores momentos. A sua última década foi bastante difícil em termos de saúde. Mas a mãe conseguia renascer sempre. Renascia sempre! E mais do que as suas palavras, era o seu exemplo. Um bom exemplo.” Susana concorda: “Transmitia-nos a ideia de que vale a pena viver. Havia nela uma magia. Uma sensibilidade. Sabe, os brasileiros têm uma expressão muito engraçada: cai o santo. O santo caía nela sempre!”
As cinzas da atriz Eunice Muñoz deverão ser lançadas nos campos da terra que a viu nascer, na Amareleja, em Beja.