O projeto vem do guião de um filme em torno de Andy Warhol que Gus Van Sant não conseguiu levar a bom porto no início dos anos 90. Chama-se “Andy” e, décadas depois, vai tornar-se a primeira peça teatral do cineasta americano, graças a um desafio lançado pela BoCA — Bienal de Arte Contemporânea. E é um musical, falado e cantado em língua inglesa, contudo criado por equipa e elenco inteiramente portugueses. Gus também escreveu as canções, Paulo Furtado aka Legendary Tigerman trata da direção musical. A estreia vai ser quinta-feira (dia 23), no Teatro D. Maria II, em Lisboa, no contexto da próxima edição da Bienal, prevendo-se que a peça circule de seguida por vários palcos europeus, ao longo de um ano. Também este mês, está programada pela Cinemateca Portuguesa uma curta retrospetiva de Gus Van Sant que o próprio acompanhará, 26 anos após a única visita do cineasta à sala da Rua Barata Salgueiro. Foi em 1995, no ano em que o Festival de Vila do Conde trouxe o realizador ao nosso país pela primeira vez, exibindo em solo luso todas as suas curtas-metragens. Além dos cinco filmes que conta apresentar, a Cinemateca exibirá a pedido do cineasta “Batman Dracula”, de 1964 (uma homenagem de Warhol a Batman, nunca autorizada pela DC Comics, e que foi durante longo tempo um dos seus mais célebres missing films) e o não menos badalado “Andy Warhol: A Documentary Film” (2006), film fleuve de quatro horas de Eric Burns, sebenta reconhecida da matéria.
Gus Van Sant é um artista polivalente, foi músico (chegou a ter uma banda), pintou e fotografou antes de se tornar cineasta em meados dos anos 80, seguindo as peregrinações de dois rapazes latinos, imigrantes clandestinos nos becos mais sombrios de Portland, cidade que ele filmaria tantas vezes — era assim “Mala Noche”, primeira longa-metragem. Custou três tostões, deu azo a culto imediato. O realizador tinha 32 anos, entrava de rompante na esfera do cinema independente, despertando a atenção de produtores que lhe permitiriam pouco depois lançar-se noutros voos. E foi o que se viu, dos junkies eufórico-depressivos que delapidavam farmácias em “Drugstore Cowboy” ao ‘cometa’ River Phoenix cristalizado em “My Own Private Idaho”, isto para ficarmos pela primeira parte de uma obra em que Gus elege como heróis uma juventude marginal, no fio da navalha. A solidão, a intimidade, a angústia começam a capturar a sua imaginação. E é com essas armas que o cineasta forma o seu universo emocional e sensorial, auscultando a América até se perder de forma alucinante nos corredores labirínticos de “Elephant”, filme inspirado nos massacres de Columbine. Foi a sua obra-prima, a sua Palma de Ouro em Cannes — e o apogeu de uma adolescência que se suprimia à nossa frente, numa violência surda, incompreensível. Gus Van Sant trabalhou muitas vezes a partir de histórias verídicas (o suicídio de Kurt Cobain em “Last Days”, por exemplo) mas não se inspirou particularmente nelas. Preferiu fixar-se antes no fascínio e na ambiguidade que elas causaram. Houve uma altura em que foi o arauto do cinema independente americano radical, mas soube sempre manter em simultâneo um pé na indústria e no mainstream (“Good Will Hunting” em 1997, “Finding Forrester” em 2000) sem que esse ‘virar de casaca’ lhe provocasse o menor prurido. “Andy”, por seu lado, parece ser projeto a colar-se aos wild years da juventude.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt