
Mariana Enriquez escreve um romance gótico que utiliza como uma avassaladora metáfora política. O tremor da maldade
Mariana Enriquez escreve um romance gótico que utiliza como uma avassaladora metáfora política. O tremor da maldade
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Não é fácil explicar o que torna a leitura deste gigantesco romance de Mariana Enriquez uma experiência tão perturbadora e fascinante. Numa das suas muitas linhas narrativas, Olga Gallardo, jornalista que cobre as escavações de uma vala comum com dezenas de “desaparecidos assassinados” (um tenebroso “poço de ossos”), decide procurar a casa onde Gaspar, uma das personagens principais, vive com o tio. Ela tem a morada certa mas, sempre que se aproxima do lugar, descobre-se noutra rua, noutra esquina, e nem pedindo ajuda ou tentando lá chegar de táxi ultrapassa aquela espécie de feitiço. A casa não quer ser descoberta e por isso torna-se um lugar fora do espaço, hiato aberto num mundo que não deixou de ser lógico e racional.
Algo de semelhante acontece ao leitor de “A Nossa Parte da Noite”. Na sua radical estranheza, cheia de impossibilidades e negrumes, o romance assemelha-se à casa “esquiva”. Existe nele algo de inacessível, e no entanto continuamos a querer, como Olga, chegar ao seu centro, atravessar as muitas camadas de mistério que o envolvem. As seis partes em que está dividido correspondem a registos muito diferentes (do realismo urbano cru ao delírio onírico, próximo da alucinação), mas o todo funciona como uma narrativa clássica de terror gótico, género que a autora cultiva desde sempre e que utiliza aqui — é esse o seu triunfo — como uma avassaladora metáfora política.
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