Visões de futuro
A ameaça da inteligência artificial e uma outra leitura do que pode ser o triunfo dos porcos. Foi assim o Fantasporto no domingo
A ameaça da inteligência artificial e uma outra leitura do que pode ser o triunfo dos porcos. Foi assim o Fantasporto no domingo
Todas as antevisões dos dias vindouros, por mais grandiosas e bem realizadas que fossem, falharam redondamente. Em 1999 ainda não tínhamos instalado a Base Lunar Alfa na Lua. Quanto a 2001, entra pelos olhos dentro que não houve nenhuma odisseia do espaço. E a Los Angeles de 2019, por caótica que seja, não se parece com a da sequência de abertura de “Blade Runner”.
Mas não é por estar condenado a falhar que o cinema fantástico não continua a tentar confrontar-nos com os desafios dos dias do amanhã. E disso mesmo nos deram conta dois filmes passados domingo, dia 1 de março, nesta 40.ª edição do Fantasporto.
Um, “Fallen”, primeira obra do realizador sul-coreano Lee Jung-Sub, fala-nos de uma invasão de seres vindos do futuro, inteligências artificiais que só podem sobreviver parasitando os corpos das pessoas. A ideia parece um “remake” de “Invasion of the Body Snatchers” mas a narrativa é bastante diferente. A protagonista, que tem no seu ADN um gene que pode fazer malograr a invasão, é raptada pelos seres do futuro. Enquanto tenta fugir, é torturada pelos seus medos e recordações de infância, bem como pelos ecos da consciência das outras pessoas que foram raptadas ao mesmo tempo que ela.
O argumento é cheio de derivações e de narrações paralelas, o que não espanta porque, como diz um dos personagens, um crítico de cinema; “não há cabeça mais perversa que a sul-coreana”.
O outro filme sobre o futuro leva o delírio e a sátira às últimas consequências, ao mostrar-nos um planeta dominado, já não pelo Homem, mas por soldados sintéticos com focinho de porco que passam a ocupar o topo da cadeia alimentar. O herói, entre muito tiroteio com os super-porcos e muita cena de cama com as suas assistentes, também armadas até aos dentes, parece condenado a repetir sem cessar a tentativa de destruir o centro de comando inimigo, onde uma sinistra criatura, designada como Mãe, se alimentaria de cadáveres de humanos. Até que se começa a perceber que não é bem assim…
“Bullets of Justice” de Valeri Milev é uma produção da Bulgária e do Cazaquistão, misturando o ambiente dos filmes americanos pós apocalípticos com algum tempero do Leste, desde o material de guerra ex-soviético às danças e palmas de soldados bêbedos, sem esquecer o jipe do herói com o tabliê cheio de ícones, velas e fotografias evocando as namoradas mortas em combate. É (também) para ver coisas destas que vimos ao Fantasporto.
E nada melhor para começar mais um dia de Fantasporto que um filme de zombies. O início da tarde de domingo tinha sido marcada pela exibição de “Infection” do mexicano Flavio Pedota. Tecnicamente não fica a dever a muitos outros filme do género mas tem a vantagem, nada despicienda, de conter referências à situação política na Venezuela, lugar onde, sem que se soubesse exactamente porquê, começava uma estranha epidemia causada por um vírus desconhecido que levava os infectados a morder em tudo o que lhes aparecesse à frente.
Ironicamente, imagens do caos em que ia mergulhando o país à medida que mais gente se transformava, eram intercaladas com a propaganda ditirâmbica do regime de Nicolás Maduro. Depois de mil e uma cenas movimentadas, a narrativa concluía com a explanação de uma verdade básica da epidemiologia, sempre útil em tempo de histeria do coronavírus, a de que há sempre pessoas imunes às pragas, por piores que estas sejam.
Depois do final da fita mas antes da ficha técnica passavam imagens reais da fuga de venezuelanos para o exterior, intercaladas com entrevistas ficcionadas em que os sobreviventes refugiados nos países vizinhos se queixavam de discriminação por serem suspeitos de contaminação. Numa suposta entrevista de rua, um jovem mexicano defendia a construção de muros para manter os venezuelanos zombies à distância enquanto as coisas não acalmassem. Trump não diria melhor…
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