Cultura

Um padre falso improvisa sermões com um smartphone e transforma-se num fenómeno. Isto é um filme na corrida aos Óscares

Em “Corpus Christi”, Bartosz Bielenia interpreta Daniel, um jovem cadastrado que contorna as normas para se tornar padre
Em “Corpus Christi”, Bartosz Bielenia interpreta Daniel, um jovem cadastrado que contorna as normas para se tornar padre

“Corpus Christi” oferece-nos a história de um padre falso que se transforma num caso sério de popularidade na sua comunidade. A entrada polaca na corrida aos Óscares não chegará para bater o sul-coreano “Parasita”

Terceira longa-metragem de ficção do polaco Jan Komasa (e a sua primeira a conhecer honras de estreia comercial nas salas de cinema portuguesas), “Corpus Christi” chega até nós munido de uma carta de recomendação, mais precisamente: aquela que nos dá conta da sua recente nomeação para o Óscar de melhor filme estrangeiro. Estamos aqui em face de um cartão de visita que — há que referi-lo — fica longe de impressionar: quantos títulos sofríveis não foram, no passado, nomeados para essa mesma categoria?

Porém, o facto de “Corpus Christi” se apresentar a concurso lado a lado com uma série de obras notáveis (“Dor e Glória”, de Pedro Almodóvar, “Os Miseráveis”, de Ladj Ly, “Parasitas”, de Bong Joon-ho); o facto de, na corrida, ter deixado para trás uma mão cheia de opositores de peso (“O Traidor”, de Marco Bellocchio, ou “It Must Be Heaven”, de Elia Suleiman); tudo isso nos convida a olhar com atenção para este underdog. Digamo-lo desde já: “Corpus Christi” não está à altura de nenhum dos trabalhos que citámos, procurando suplantar a confortável opacidade do seu protagonista (já lá iremos) por via da disseminação de um conjunto de marcas de estilo, que se esforçam por evidenciar a presença de um ‘autor’ detrás das câmaras.

Diante delas estará quase sempre a personagem à qual somos apresentados no começo. Falamos de Daniel, um esquálido e escanzelado rapaz na casa dos 20 anos (magnificamente interpretado por Bartosz Bielenia) que, à semelhança do profeta do Antigo Testamento com o qual partilha o seu nome, dá por si na jaula dos leões. Ou por outra: num centro de detenção juvenil, onde vai cumprindo uma pena por razões que nunca chegarão a ser cabalmente esclarecidos. As sequências inaugurais (que são muito contrastantes) bastam para testemunhar a sua duplicidade: pois se, na primeira, o descobrimos a fazer de vigia enquanto, em fundo, um dos seus colegas é brutalmente espancado, na segunda, vemo-lo a entoar com convicção o Salmo 23 (“O Senhor é o meu Pastor”), numa missa celebrada na lúgubre capela do centro.

O motivo religioso cativará, daí para a frente, a atenção de um filme que, após o seu breve prefácio, tratará de devolver Daniel à liberdade — não sem antes nos mostrar, através da encenação de um diálogo entre o próprio e o pároco do centro (Lukasz Simlat), como o seu desejo de se tornar padre é impossibilitado, à cabeça, pelo seu cadastro criminal. Resta-lhe, assim, seguir os passos da maioria dos seus companheiros, rumando até aos confins da Polónia rural, para trabalhar numa serração que costuma acolher jovens problemáticos (numa viagem que será precedida por uma noite de farra que parece ter sido montada por uma adolescente bulímica, tal é a velocidade a que os acontecimentos então se sucedem).

Chegado ao seu destino com uma ressaca às costas, Daniel contemplará com repulsa as toscas instalações da serração e, escutando ao longe o toque de uns sinos, preferirá aventurar-se pela aldeia mais próxima. Apresentando-se na igreja como um padre acabadinho de sair do seminário (a sotaina roubada que transporta consigo ajuda a tornar convincente o embuste), ele será prontamente recebido em casa do velho padre local que, depois de dois dedos de conversa, lhe confessa que — por questões de saúde — terá de ausentar-se da aldeia durante algumas semanas. Não quererá ele, Daniel, ocupar o seu lugar nesse período?

Desta situação equívoca nascerá uma farsa baseada num caso real, que, de início, se dedicará a descrever num registo seco os gestos feitos pelo impostor para preservar a verosimilhança da sua impostura: ora usando o seu smartphone para se familiarizar com o protocolo da confissão, ora ministrando em pânico a extrema unção a uma moribunda… Não será preciso esperar muito, todavia, até que este falso padre comece a improvisar sermões apaixonados que, pela simplicidade da sua linguagem e pela sua natureza terra-a-terra, depressa o transformarão num improvável fenómeno de popularidade, junto de uma comunidade que se encontra ainda a convalescer de uma tragédia recente. Nomeadamente: um acidente de automóvel que ceifou as vidas de seis adolescentes locais, e que implicou a ostracização da viúva do suposto responsável pela catástrofe — um ex-alcoólico de meia idade (também ele morto no acidente) que o padre da aldeia se recusou a sepultar no cemitério. Neste contexto pós-traumático, Daniel funcionará como uma espécie de personagem-guia, através de cujo ponto de vista vão sendo progressivamente desencobertos os pequenos segredos, rancores e mentiras que contaminam o quotidiano de uma comunidade habitada por uma galeria de impostores.

Um corpo vazio


Para levar a cabo este estudo, Komasa lançará mão de uma realização que — em linha com a solenidade de um certo cinema de autor que parece fazer as delícias dos programadores dos festivais — privilegia os longos planos médios fixos, cultivando uma duração distendida e um distanciamento ótico em relação ao protagonista (que será gradualmente suprimido, à medida que a personagem é absorvida pela sua persona). Trata-se de uma pose que, infelizmente, não basta para dissimular um problema que está a montante do aparato formal do filme. Ele reside — quanto a nós — na sua incapacidade de convidar o espectador a investir a sua fé nos atos e nas palavras de Daniel, assim como na situação que vai servindo de combustível à sua fraude. Na realidade, porque Jan Komasa se recusa a abordar a conversão espiritual do protagonista (que já ocorreu no momento em que a ação começa); porque nunca nos dá a entender minimamente aquilo que o inclina para a vida eclesiástica, o realizador deixa-nos a braços com uma ‘figura cifrada’, com uma esfinge cujos movimentos são, em última instância, inexplicáveis e ininteligíveis.

Tudo se passa, aqui, como se Daniel só existisse a título de estratagema narrativo, ou melhor: como um simples suporte vazio do processo de revelação do sofrimento e da hipocrisia escondidas de toda uma comunidade (o que ele deseja, pensa ou sente é um mistério que nem mesmo a brilhante performance de Bartosz Bielenia contribui para esclarecer). Daí, sem dúvida alguma, a desagradável sensação de que o centro deste filme se encontra ocupado por um corpo vazio, por uma tábua rasa que parece querer salvar-se a si mesma por intermédio da salvação dos outros (a viúva marginalizada, por mero exemplo), sem que nunca consigamos perceber porquê. Ou muito nos enganamos, ou este confuso aglomerado de maneirismos de autor poucas hipóteses terá, na madrugada da próxima segunda-feira, contra um filme do calibre de “Parasitas”.

**

CORPUS CHRISTI — A REDENÇÃO
De Jan Komasa
Com Bartosz Bielenia, Aleksandra Konieczna, Eliza Rycembel (Polónia)
Drama M/16

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