Cultura

Damásio e o erro de Sócrates

“A Morte de Sócrates”, de Jacques-Louis David (1787), exposto no Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, nos EUA
“A Morte de Sócrates”, de Jacques-Louis David (1787), exposto no Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, nos EUA
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Como um misterioso livro escrito há 2500 anos pode ser útil para a discussão sobre a questão que anima os milionários de Silicon Valley: a imortalidade

Texto Frederico Lourenço*

A longa e fascinante conversa com António e Hanna Damásio, de que Clara Ferreira Alves nos deu conta na Revista do Expresso de 28 de outubro, evocou-me um homem que — também ele médico, como António e Hanna — se dedicou há 2500 anos a perceber “a estranha ordem das coisas”. Contemporâneo de Sócrates, teve o azar de o seu nome ter ficado quase apagado, incluído na ingrata categoria de pensador “pré-socrático”: pois devemos a Platão esta ideia de que houve um antes e um depois na história do pensamento; e que a divisória entre esses dois tempos é o nome de um homem, Sócrates, que nada deixou escrito.

Filolau, pelo contrário, escreveu um livro; o seu único, ao que parece, mas que abarcava uma variedade impressionante de temas. Temas que hoje categorizaríamos como pertencendo a áreas tão distintas como ciências da natureza, medicina, matemática, astronomia ou teoria musical. É uma pena enorme o livro de Filolau ter-nos chegado apenas sob a forma de fragmentos citados por autores posteriores (alguns deles já cristãos). No entanto, sabemos que “a ordem das coisas”, que encontramos no título do mais recente livro de Damásio, constituiu o mote das investigações de Filolau: a palavra grega para “ordem” — cosmos — está presente na primeira frase do livro antigo. Esta frase, citada mais de oitocentos anos depois de ter sido escrita por Diógenes Laércio (historiador do pensamento grego) no século III da era cristã, fala-nos de “todo o cosmos” e de “todas as coisas que nele existem”. Nalguma medida seria estranha para um pensador como Filolau, tão influenciado por Pitágoras, a ordem das coisas? Talvez na medida em que, como Filolau escreveu, a ordem das coisas é “harmonizada” tanto por aquilo que é ilimitado como por aquilo que é limitador.

Pensando no cosmos em ponto pequeno que é a mente humana, objeto de estudo do casal Damásio, não é difícil perceber como ela se encontra em permanente processo de reação a estímulos provenientes de ambos os quadrantes: do ilimitado, por um lado, e daquilo que limita, por outro. Isto porque existe uma vocação inerente à mente humana para o ilimitado, ao mesmo tempo que os seus processos de perceção estão condicionados pela realidade limitadora do corpo. O corpo, para seguidores de Pitágoras como era Filolau, levantava incomodamente a mesma tipologia de problemas que levantaria mais tarde a teólogos cristãos: não me refiro só à ideia do corpo como inimigo da alma, mas sobretudo a de que o corpo “sepulta” a alma, noção atribuída a Filolau. “Vale a pena citar as palavras de Filolau,” escreveu o pensador cristão Clemente de Alexandria no século II, “pois este pitagórico diz que os antigos escritores teológicos e profetas dão testemunho do facto de a alma estar atrelada ao corpo por castigo, sepultada nele como num túmulo”.

Uma das consequências mais óbvias deste conceito foi a suspeição com que tanto pitagóricos como cristãos (passando pelo meio por platónicos) encararam toda a informação aprazível que nos vem por via do corpo — ou por aquilo que nós imaginamos ser o corpo. Pois as sensações corporais são essencialmente mentais, no sentido em que é a mente que nos dá a percecionar o que é dor e o que é prazer. Platão põe Sócrates a afirmar, no dia da execução da pena de morte a que fora condenado, que tanto o prazer como a dor são como pregos que prendem a alma ao corpo: daí a necessidade, já preconizada por pitagóricos antes de Sócrates, de viver uma vida tanto quanto possível isenta dessas sensações “falsas” (como o prazer), que criam a ilusão de o corpo nos dar a sentir sensações (ou sentimentos, diria António Damásio) que valem alguma coisa ou que lhe servem de alguma coisa. Na conversa que tiveram com Clara Ferreira Alves, António e Hanna deram-nos uma pista, a que voltarei mais à frente, para percebermos como o Sócrates de Platão estava errado.

O prazer, como sabemos, foi um tema de recorrente reflexão na obra platónica, já que vemos Platão preocupado com entender a sua natureza desde os escritos da primeira fase da sua obra (como o diálogo intitulado ‘Protágoras’) até às obras da sua maturidade filosófica (mormente no diálogo ‘Filebo’). Entre estes dois polos temos o diálogo platónico dedicado ao suposto relato das últimas conversas de Sócrates com os discípulos que se tinham reunido com ele na prisão, para estarem com o mestre nos derradeiros momentos, antes da taça de cicuta, antes da despedida final. A razão pela qual lhe chamo um “suposto” relato das últimas conversas de Sócrates não tem só que ver com o facto de se dizer explicitamente no texto que Platão esteve ausente (por motivo de doença). Embora seja plausível aceitar que, de facto, os discípulos de Sócrates o tenham querido acompanhar nos momentos finais da sua vida, a historicidade do diálogo platónico ‘Fédon’ fica por aí: as palavras, que Platão coloca na boca do filósofo prestes a sofrer a pena de morte, são palavras que os estudiosos consideram acima de tudo platónicas e não socráticas, tanto mais que no ‘Fédon’ (uma obra-prima não só filosófica como dramático-literária, como frisou há muitos anos o saudoso padre Manuel Antunes) temos uma argumentação assente na teoria das formas, que já Aristóteles nos permitiu ver como algo que partiu de Platão (e não de Sócrates). Seja como for, o tema do prazer — que faz parte dessa grande categoria a que, na conversa com Clara Ferreira Alves, Damásio chamou “sentimentos” enquanto “experiências de emoções” — tem lugar de destaque no ‘Fédon’ de Platão; e esse destaque tem como finalidade condicionar-nos a olhar o prazer como algo de negativo.

Morte. “Homem Velho com a Cabeça em Suas Mãos (Às portas da eternidade)”, de Van Gogh (1882), sobre os últimos dias de um veterano de guerra

Este voto de desconfiança no prazer vem da tradição pitagórica, embora fosse comum a várias correntes místico-filosóficas gregas. Os estudiosos da filosofia grega discutem se é autêntico o fragmento atribuído ao pré-socrático Empédocles em que ele diz “desgraçados, não ponhais as mãos nas favas!” E discute-se, também, se era literalmente de favas que o autor dessa frase estava a falar, ou se “favas” não seria um eufemismo para testículos. (Outra interpretação, no meu entender menos verosímil, da rejeição pitagórica das favas tem uma base política: as favas eram utilizadas como contas em processos eleitorais nalgumas zonas da Grécia Antiga; e os pitagóricos eram, como são tantos fanáticos ainda hoje, antidemocráticos e tendencialmente oligárquicos.) De qualquer forma, estivesse em causa o prazer da boa mesa (com um queirosiano prato de favas) ou o prazer do sexo, aquilo que Empédocles e os seus antecessores pitagóricos queriam desaconselhar vivamente era simplesmente o prazer.

Ora, o mesmo voto de desconfiança no prazer, formulado na Antiguidade por pitagóricos e platónicos, assomou, em termos que poderíamos considerar semelhantes, no cristianismo, desde logo no facto de, em todas as palavras que Lhe são atribuídas no Novo Testamento, Jesus Cristo verbalizar a palavra “prazer” (em grego, hêdonê) somente uma vez — e, escusado será dizer, em sentido negativo. Trata-se de uma passagem do Evangelho de Lucas (8:14), quando Jesus explica aos discípulos o significado da ‘Parábola do Semeador’, que fora enunciada nos seguintes termos: “Saiu o semeador para semear a sua semente. E enquanto ele semeava, uma parte da semente caiu à beira do caminho, foi pisada e os pássaros do céu comeram-na. Outra caiu sobre a rocha e, depois de ter germinado, secou por falta de humidade. Outra caiu no meio de espinhos, e os espinhos, crescendo com ela, sufocaram-na. Outra caiu em boa terra e, uma vez nascida, deu fruto centuplicado.”

A semente semeada pelo semeador (explica Jesus) é a palavra de Deus. Acabámos de ler como uma parte da semente caiu no meio de espinhos que, crescendo juntamente com a semente, a sufocaram. Na explicação que se segue à enunciação da parábola, dirigida somente aos seus discípulos (“a vós foi dado conhecer os mistérios de Deus; mas aos outros fala-se-lhes em parábolas”), Jesus especifica o que são estes espinhos. Numa frase grega de gramática contorcida, Jesus explica os espinhos como sendo as preocupações e os prazeres da vida, elementos negativos entre os quais, na ordem das palavras da frase, Jesus coloca uma ponte: a riqueza. Preocupações, riqueza, prazeres. Três coisas negativas, portanto — ou mesmo, como diz Jesus, “sufocantes”, que interferem no acolhimento interior da palavra de Deus, do mesmo modo como, para Platão, o prazer e a dor são os já mencionados pregos que prendem a alma ao seu túmulo, o corpo.

No Novo Testamento, a palavra “prazer”, ausente dos Evangelhos de Mateus, de Marcos e de João, não volta, depois de Lucas 8:14, a ser pronunciada por Jesus. Não ocorre nunca nos escritos de São Paulo. Mas ocorre duas vezes na epístola atribuída a um autor com ideias bastante diferentes das de Paulo (razão pela qual não colheu a simpatia de Lutero): Tiago. Este escritor dos primórdios do cristianismo fala dos prazeres como coisas que se guerreiam no corpo humano (à letra, nos “membros”), responsáveis por guerras e conflitos. E pergunta: “Não sabeis que a amizade do mundo é inimiga de Deus? Pois quem quiser ser amigo do mundo estabelece-se como inimigo de Deus” (Tiago 4:4).

A palavra aqui usada para “mundo” é, no texto grego do Novo Testamento, cosmos. Trata-se, assim, da mesma palavra que figura duas vezes na abertura do livro de Filolau (e que constituiria, se a retrovertêssemos para grego antigo, a tradução da expressão “ordem das coisas” que figura do título do livro de Damásio). Saber exatamente como traduzir para as línguas modernas esta palavra grega “cosmos” é um quebra-cabeças que atormenta todos os tradutores, quer da filosofia grega quer do Novo Testamento. Aliás, na mais recente tradução inglesa do Novo Testamento, feita pelo helenista americano David Bentley Hart (Yale University Press, outubro de 2017), a palavra grega surge na tradução inglesa sem tradução: simplesmente cosmos, em vez de world. Assim, se seguíssemos em português a lógica da tradução de Hart, a frase de Tiago seria: “Quem quer ser amigo do cosmos estabelece-se como inimigo de Deus”.

Se a visão negativa que o cristão Tiago nos dá da entrega aos prazeres até parece bastante consentânea com o ponto de vista pitagórico, o mesmo já não poderemos dizer da ideia de que ser amigo do “cosmos” é ser inimigo de Deus. Um dos conceitos fundamentais do pitagorismo é a palavra “harmonia”, que tinha para os pitagóricos uma aplicação dir-se-ia universal. No seu comentário ao ‘Sonho de Cipião’ que fecha o tratado filosófico “Da República” de Cícero, Macróbio escreveu (já no século V da era cristã) que “Pitágoras e Filolau chamaram à alma uma harmonia”. Voltarei a este conceito, de que Platão faz eco no ‘Fédon’, mas antes disso convém frisar que, para os pitagóricos, o próprio cosmos era, ele próprio, uma harmonia: algo de perfeito, de divino e de permanente, alicerçado por uma matemática que era interpretada por Pitágoras e seus seguidores como uma manifestação de harmonia musical. No Salmo 19 da “Bíblia Hebraica” (Salmo 18 da “Septuaginta” e da “Vulgata”), diz-se que “Os céus proclamam a glória de Deus”; mas para os pitagóricos, os céus (isto é, o cosmos) eram eles mesmos aquilo a que o salmista chamou a glória de Deus. Pois para os pitagóricos o cosmos era “um deus vivo, indissociável de uma única inteireza divina, devido ao poder maravilhoso da harmonia matemática e musical” (W. Guthrie).

Resumindo: sendo evidente que a atitude pitagórica e platónica em relação ao prazer se harmoniza relativamente bem com a atitude cristã (podemos juntar ainda à frase de Jesus em Lucas e às asserções de Tiago mais duas passagens que esgotam as cinco ocorrências da palavra “prazer” no Novo Testamento: Tito 3:3; 2 Pedro 2:13), muito diferente é o entendimento divino que os filósofos gregos faziam do cosmos se o compararmos com a maneira cristã de pôr “mundo” (“cosmos”) em oposição com Deus. É claro que não podemos fazer este tipo de afirmação sem salvaguardarmos a enorme polissemia da palavra “cosmos”, tanto no seu sentido de “ordem” (o seu significado predominante, com duas exceções, em Homero) como no sentido de “mundo”. Mesmo fazendo essa ressalva, não podemos fugir ao facto de a palavra “cosmos” no Novo Testamento seguir o sentido que é dado a “cosmos” na “Septuaginta” (o Antigo Testamento grego), onde “cosmos” traduz, logo em Génesis 2:1, a palavra hebraica tsaba. Na excelente tradução da “Bíblia dos Capuchinhos” do referido versículo: “Foram assim terminados os céus e a terra e todo o seu conjunto” (tsaba em hebraico; cosmos em grego). E embora até encontremos excecionalmente na “Septuaginta” a palavra “cosmos” com o sentido de “adorno” (é o caso de Isaías 3:19, que faz pensar no sentido também excecional, para Homero, da palavra num único verso do Canto 14 da “Ilíada”), nas mais de 180 ocorrências de “cosmos” no Novo Testamento a palavra tem sempre o sentido que, nas traduções portuguesas (incluindo a minha), é vertido por “mundo” – mas que na nova tradução da Yale University Press surge simplesmente como “cosmos”.

A ideia de tanto o cosmos como a alma serem, do ponto de vista pitagórico, uma “harmonia” leva-nos para o terreno incerto da dúvida relativamente à possibilidade de ambos — cosmos e alma — partilharem de uma característica que os pitagóricos estavam dispostos a reconhecer ao cosmos, embora nem todos os pitagóricos a reconhecessem à alma: a permanência. Ou, dito de outra maneira, a imortalidade. Como os fragmentos do livro de Filolau são poucos e desconexos, não podemos afirmar ao certo que ele acreditava na imortalidade da alma. É certo que Platão, no ‘Fédon’, incluiu como personagem a dialogar com Sócrates um tebano chamado Símias, que afirma ter conhecido Filolau. Este Símias, cujas palavras e pontos de vista o identificam indubitavelmente como pitagórico, aceita a noção de que a alma é uma harmonia; mas é justamente este facto que determina, na sua opinião, a perecibilidade na alma, e não a sua imperecibilidade. Numa intervenção bastante confusa (é claro que os interlocutores de Sócrates têm de parecer confusos, para evidenciar a lucidez do mestre), Símias afirma que, não obstante ser “diviníssima”, a alma é a primeira coisa a perecer quando a morte sobrevém ao corpo. Na opinião de Símias, a razão para a morte imediata da alma, antes mesmo de o corpo começar a decompor-se, seria o facto de a harmonia, que a constitui, ser uma crásis (mistura) de elementos físicos (calor, frio, humidade, secura), crásis essa que, tal como as notas musicais, se tem um princípio, tem necessariamente de ter um fim.

Na conversa de Hanna e António Damásio com Clara Ferreira Alves, António afirmou que Silicon Valley está hoje cheio de “fanáticos poderosos que querem comprar a imortalidade”, pelo que decerto se entende a imortalidade do corpo — que pitagóricos e platónicos considerariam de importância nula — e não a imortalidade da alma. Mas quem sabe se, apesar da sua desvalorização do corpo, os antigos pitagóricos não teriam pistas a dar aos investigadores em Silicon Valley que procuram hoje o segredo da imortalidade do corpo? Um pitagórico contemporâneo de Filolau e de Sócrates, de nome Alcméon, pensou ter descoberto a razão pela qual morremos: “Os homens morrem pela simples razão de não poderem juntar o começo ao fim”. Em relação a Alcméon, não há qualquer dúvida de que ele acreditava na imortalidade da alma, pois essa certeza é-nos dada por Aristóteles no seu tratado “Da Alma”, onde lemos que, segundo Alcméon, “a alma é imortal devido à sua semelhança com os imortais; e tem esta qualidade por estar sempre em movimento: é que tudo o que é divino está em movimento contínuo: o Sol, a Lua, os astros e todo o firmamento”.

Mas o que terá Alcméon querido dizer, ao afirmar que as pessoas morrem “pela simples razão de não poderem juntar o começo ao fim?” Uma explicação já clássica esclarece-nos que ninguém se pode transformar de velho em criança (isto é, não pode juntar o começo ao fim) enquanto presente num mesmo corpo, pelo que, para ser imortal, tem de morrer e encarnar de seguida num novo corpo. Sabemos que a crença na reencarnação era transversal a várias correntes filosóficas na Grécia antiga; tanto a encontramos em Platão como em muitos dos seus antecessores. Desconfio, no entanto, que, para quem está em Silicon Valley à procura da dieta imortal, a certeza de pitagóricos e de platónicos de que a mesma alma reencarna em corpos sucessivos será fraca compensação perante aquilo que é, até hoje, a invencibilidade da morte.

Por seu lado, pitagóricos e platónicos — esses fanáticos da alma — ter-se-iam espantado com a vontade dos bilionários excêntricos da Califórnia de conseguirem a imortalidade do corpo. Para quê almejar um corpo imortal? O corpo não será antes um constrangimento em relação ao qual o melhor seria fugir? No século III a.C., um jovem leitor de Platão atirou-se da janela depois de ter lido o ‘Fédon’, de tal modo achou convincente a ideia de que o melhor para a alma é libertar-se do corpo. Sócrates, no entanto, não teria aprovado o suicídio deste seu jovem fã em Alexandria. Pois apesar de Sócrates ter falado numa “doutrina secreta”, segundo a qual os seres humanos se encontram de facto numa prisão, que é o corpo, mesmo assim, face à possibilidade de nos evadirmos da prisão do corpo por meio do suicídio, Sócrates mostrou-se absolutamente contra. Ninguém deve procurar evadir-se da prisão do corpo (afirma Sócrates no Fédon) já que nós, seres humanos, somos pertença dos deuses. Não temos o direito de fugir da prisão do corpo porque não nos pertencemos (‘Fédon’ 61b).

Esta ideia de o ser humano habitar um corpo que não lhe pertence, porque pertence à divindade, fará depois parte integrante do pensamento cristão. É de forma muito sintomática que São Paulo pergunta aos cristãos da cidade de Corinto: “Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo que está em vós, o qual recebestes de Deus; e que vós já não vos pertenceis?” (1 Coríntios 6:19). Por outro lado, a tensão entre corpo e alma, tão própria do pitagorismo e do platonismo, terá o seu reflexo na oposição entre espírito e carne que lemos em São Paulo: “A carne deseja de forma contrária ao espírito; e o espírito, de forma contrária à carne: estas realidades opõem-se mutuamente” (Gálatas 5:17). O paradoxo cristão é que a carne, alegadamente tão contrária ao espírito, foi a “tenda” (João 1:14) que Deus, entendido como Verbo divino (logos), escolheu para habitar entre nós. Daqui a poucas semanas celebramos o Natal e os presépios do mundo inteiro mostrarão o bebé na manjedoura, que é Deus feito carne. Vimos já que o Menino, depois de chegar à idade adulta, só pronunciará uma vez (que saibamos) a palavra “prazer”; e vimos também que o sentido que Ele lhe dará é negativo. A religião por Ele fundada também rejeitará o suicídio, tal como antes tinham feito pitagóricos e platónicos, pela mesma razão enunciada por Sócrates no ‘Fédon’: a carne, que é o nosso corpo, não é coisa que nos pertença e, por isso, não nos compete dispor dela.

No entanto, nenhuma religião pode eliminar por completo o prazer: nenhum católico, por mais asceta que seja, sentirá como contrário ao espírito cristão o prazer das rabanadas no Natal (rabanadas que estarão certamente fora da “dieta da imortalidade” investigada em Silicon Valley...), porque esse prazer, não sendo sexual, até pode caber dentro dos parâmetros do permitido em termos cristãos. O facto incontornável é este: por muito que Sócrates tenha criticado os prazeres como pregos que prendem a alma ao corpo, tanto o prazer como o sofrimento são indispensáveis ao desenvolvimento humano. Na conversa com Clara Ferreira Alves, Damásio afirmou que “tudo o que há de bom e de bem, tudo o que ajudou instrumentalmente a criar culturas, nunca teria acontecido se não tivéssemos sentimentos. Sentimentos ora de dor e sofrimento ora de plenitude e prazer”.

Podemos eleger a ideia de que o prazer é nocivo para o corpo como “o erro de Sócrates”? Seria um tema que Hanna e António Damásio estariam, como ninguém, em condições de trabalhar e investigar. Sócrates, pela pena de Platão, contribuiu em muito para alicerçar teologicamente no pensamento cristão (sobretudo a partir de Tertuliano e, mais tarde, de Santo Agostinho) a noção da nocividade do prazer. Mas, como vimos, o Sócrates que nos é retratado por Platão também foi ele próprio herdeiro do ascetismo pitagórico que o antecedeu. Pois Sócrates, que nada escreveu, era ávido leitor de livros pré-socráticos (pelo menos o ‘Fédon’ assim o retrata). O gosto por esse tipo de literatura seria mais tarde partilhado por leitores cristãos. Na verdade, devemos à curiosidade cristã em relação à leitura de livros pré-socráticos a sorte de termos ainda citações do livro de Filolau: se não fossem os teólogos e escritores cristãos que o citaram, pouco mais saberíamos sobre o seu conteúdo do que as referências indiretas e incompletas que encontramos em Platão e Aristóteles.

Ora, um pensador cristão do século V chamado Claudiano Mamerto, a viver no que é hoje a França, escreveu em latim um texto chamado ‘Do Estado da Alma’, onde teve a brilhante ideia de citar uma frase de Filolau. A frase citada por Claudiano diz o seguinte: “A alma ama o corpo, porque sem ele não pode fazer uso dos sentidos”. A surpresa de ter sido Filolau a dizer tal coisa é enorme, convenhamos. Afinal ele era um pitagórico para quem o corpo não era inimigo da alma? Isto não baralha os nossos conceitos todos? Será que, contrariamente a Sócrates e Platão, Filolau compreendeu a função que o corpo tem de “disco externo” da alma, a qual só tem a ganhar com o uso dos sentidos que só o corpo lhe pode proporcionar? A reflexão tem tudo que ver com os grandes temas de hoje. Porque se entendermos os “sentidos” de Filolau como sentimentos em clave damasiana (“a alma ama o corpo, porque sem ele não pode fazer uso dos sentimentos”), vemos como um fio invisível liga um pitagórico, no século V a.C., aos temas que Hanna e António estão hoje a investigar.

*Prémio Pessoa 2016

Escritor e tradutor

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