50 Anos, 50 Restaurantes

2015: O surpreendente bar futurista que colocou a ilha do Pico nas bocas do mundo

Cella Bar foi marco arquitetónico no arquipélago
Cella Bar foi marco arquitetónico no arquipélago

De um lado tem a vista para o oceano Atlântico e a ilha do Faial. Do outro, a montanha que dá identidade ao Pico. O desenho curvilíneo e contemporâneo do edifício lembra as ondas do mar, as barricas de vinho e as baleias. O Cella Bar abriu em 2015, afirmando a arquitetura singular e valorizando o potencial desta ilha açoreana. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, fazemos uma viagem no tempo, com o apoio do Recheio, para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal

O dia 14 de fevereiro de 2023 foi de emoções fortes para Vanda Germano e Luís de Matos. Vindos da Amadora, relaxam no topo do Cella Bar, na ilha do Pico, brindando com cerveja e o gin açoriano Baleia. O mar impetuoso dos Açores, a ilha do Faial e a montanha do Pico, visível da esplanada, alinham-se num cenário perfeito. Mais ainda sabendo da importância da data: era o dia dos namorados, o pai de Vanda estaria a celebrar o aniversário se fosse vivo e, horas antes, Vanda pedira Luís em casamento na subida à montanha. O gelo impediu que terminassem o percurso, por decisão do guia, mas não congelou Luís, que aceitou o “fresquinho” pedido. Só não largou uma lágrima porque, por certo, “cristalizava” com o frio (risos).

Na véspera de voltar ao continente, o casal faz um balanço positivo da experiência na ilha. Conheceram “toda a costa e o interior mais montanhoso”. “Adorámos, recomendamos mesmo muito. Um dos momentos altos foi entrar na cratera de um vulcão, durante a subida, e conhecemos também uma 'praia' a Norte com pedras enormes, redondinhas e ovais, e que tem a particularidade de as conseguirmos rebolar e ouvir um som ensurdecedor, como nunca tinha ouvido”, conta Vanda. Luís gostou da zona do Cachorro, principalmente “pelas rochas em que se vê bem como a lava se juntava e fazia as formas e aquelas ondinhas”. Para si é um sítio “muito especial” e deu para perceber como o “marzinho um bocado encrespado trabalha esta costa”. Foi a primeira visita, “mas não vai ser a última”, garantem.

O casal não fica para jantar. Pensaram que se iam cansar na subida e marcaram no restaurante do alojamento. Mas, conhecer o Cella Bar “estava no roteiro”, traçado após Vanda pesquisar na Internet os pontos turísticos do Pico. “Vinha com uma expectativa muito alta e não me desiludiu de todo. Decoração, localização, paisagem, atendimento, luz e som ambiente e a própria arquitetura do bar, a lembrar o interior de uma baleia numa zona de baleeiros: Está tudo muito bem pensado e tudo nos envolve para o mar”, avalia.

Formas ondulantes do Cella Bar

Singularidades

Filipe Paulo, Fábio Matos e Mauro Fernandez são os sócios do Cella Bar. Os dois primeiros - sócios fundadores - já eram amigos de infância. Tiraram gestão fora do Pico, regressaram, começaram a trabalhar e a entrar no mundo dos projetos de investimento. Olharam para “o que fazia sentido, o que era possível e o que faltava” na ilha e identificaram uma casa semi-recuperada, mas fechada. Era um antigo armazém de vinho, que poderá ter “cerca de 100 anos e terá passado de família em família”, informa Filipe Paulo. A localização interessava, “perto do centro, mas longe o suficiente para ser um pouco mais calmo”. E depois havia a vista... Não demoraram “a idealizar a coisa”.

Só no local se entende a singularidade do projeto e não é apenas pelo desenho do edifício ser absolutamente improvável. Está quase sobre o mar, que se desfaz contra os rochedos e se reflete nos vidros. Fica na Rota do Vinho, da Vinha e dos Maroiços, com informação acessível por QR Code, e tem por vizinhos os salgueiros, muito presentes na zona por serem “as árvores que resistem melhor à proximidade do mar”. “Na brincadeira chamo-lhes os nossos bonsais”, graceja o anfitrião. No inverno, ficam quase despidas, exibindo ramificações que transportam para um qualquer deserto. Em harmonia com o negro basáltico, pintam uma atmosfera 'inóspita' e, ao mesmo tempo, sedutora e arrebatadora. Ainda no exterior começam a identificar-se as obras de arte de Paulo Neves. São expressões humanas, ora “tristes ou a sorrir”, também a decorar o interior e que “elevam o valor” do conjunto. Uma de cada lado, posicionam-se a ilha do Faial e a montanha do Pico, com o Cella Bar ao meio, um 'inquilino' singular numa paisagem única. Não muito longe, neste concelho, encontra-se o Lajido da Criação Velha, que integra a Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico - Património Mundial da UNESCO, com os incríveis currais vinhateiros.

Ao cair da tarde, “vem tudo a correr aqui ver o pôr do sol e, quando estão cá a jantar, param cinco minutos para tirar a foto da praxe quando o laranja se torna cor de rosa, e aí sim, é um privilégio, temos de ser gratos por ter uma natureza que nos dá isto”, agradece Filipe Paulo. Acendem-se as luzes do bar e acentua-se, de repente, o seu toque moderno e futurista. Apesar de vir aqui há mais de dez anos, Filipe compreende o espanto provocado pelo enquadramento, um certo efeito “uau”, e diz que esse fator também “obriga a fazer cada vez mais e melhor”. “É uma coisa cada vez mais única e contrária ao caminho que o mundo está a seguir. Temos de preservar e dar valor a tudo isso”, defende. O tempo vivido fora dos Açores permitiu-lhe olhar tudo com outros olhos. “Percebemos que os Açores têm muito potencial e, dentro dos Açores, o Pico tem um potencial enorme porque tem duas ilhas perto, uma montanha toda ela muito junto ao mar e, se falar com as pessoas, percebe que há qualquer coisa diferente no Pico, uma sensação diferente, uma energia. Tem o negro, as rochas e o mar a ir contra elas... Se acreditávamos no potencial da ilha, porque não fazer uma coisa ao mesmo nível, o melhor que se conseguir?” pensaram.

Estrutura faz também imaginar uma pipa, das que antigamente rolavam para o mar para serem transportadas

Visão diferenciadora

Apesar dos constrangimentos, de estarem numa ilha no meio do Atlântico, em que seria tudo mais difícil, entendeu-se que “era possível fazer um projeto bem feito”. Se conseguissem chegar ao fim “com um projeto coerente, a probabilidade de sucesso seria bastante alta”. Decidem avançar em 2011 e, no ano seguinte, entregam o projeto, mesmo com o país a entra num ciclo “complicado”. Esperaram por todas as aprovações e o Cella Bar abriu em 2015. Nesse ano, “as coisas já estavam melhores” e entretanto o Pico “deu um salto”. Os promotores queriam “respeitar o passado mas também dar futuro, não fazer mais do mesmo, mas uma coisa diferente, arrojada, que pusesse as pessoas a pensar”.

O projeto de arquitetura foi de Fernando Coelho, do atelier FCC Arquitetura. Como se lê no portal espaçodearquitetura.com, este edifício resultou de uma “transformação regenerativa e expansão” da estrutura pré-existente, que estava ao abandono. As paredes, cobertura e portas foram restauradas “mantendo as características essenciais da construção original” e o interior “foi redesenhado, para servir as suas novas funções (restaurante e bar)”. Quanto ao novo volume, foi de construção “orgânica e dinâmica” e o desenho “é marcadamente inspirado no ambiente natural em torno do local”. Várias características “estão presentes na arquitetura do edifício, incluindo o contorno da ilha, as rochas, as baleias, bem como a referência aos barris de vinho”. Este volume “atua como uma escultura gigante”, enquadra a informação relativa ao Cella Bar. Filipe Paulo indica que Fernando Coelho teve em conta, primeiro, a ligação ao mar, com elementos como a ondulação, as rochas ou as baleias, e depois a ligação ao vinho, e então vemos um edifício a lembrar um “rola pipas” e a “ação da barrica de vinho a rolar para o mar”. A nova estrutura, com o betão revestido a madeira criptoméria açoriana, é contemporânea, contrastando com o clássico da pré-existência, diferença que “as valoriza individualmente”, considera Filipe.

O interior do bar não foi pensado para ser assim. A estrutura de madeira que se vê era cofragem, serviria de apoio e molde “para fazer as estruturas em betão”, mas acharam que “dava um bom interior”. “No início, há muitas coisas que não sabes e não vês. O que faz sentido de início pode não fazer num determinado momento, vais construindo e as coisas vão fazendo sentido”, explica Filipe. Outro passo em frente surgiu com o arquiteto de interiores, Paulo Lobo, que teve a ideia de pintar de branco a parede negra da sala de refeições, no piso superior. “Ficámos a olhar para ele e a respirar suavemente umas semanas, porque era quase tocar no altar sagrado da pedra preta do Pico. Decidimos experimentar e resulta, porque amplifica o espaço e potencia o azul, aquilo também foi um arrojo”, admite o anfitrião. Da sala de refeições acede-se à esplanada, que se quis despida de ruído em termos de elementos para “valorizar o mar”.

Ambiente agradável no Cella Bar

Reconhecimento e percalços

O arrojo do projeto não foi consensual. Sabia-se que uma arquitetura diferente “impõe sempre desafios” e que as pessoas “precisam de tempos diferentes” para lidar com eles: “É um processo evolutivo, natural, com as suas dificuldades. Se existisse unanimidade era sinal que não estávamos a mexer. Sentimos que estávamos a mexer e o objetivo era esse, faz parte do processo”. Em 2016, o Cella Bar venceu o prémio de Edifício do Ano pela prestigiada plataforma online de arquitetura ArchDaily e foram capa da revista Interior Design, de Nova Iorque. As fotografias do fotógrafo Fernando Guerra também tiveram um “papel importante” na divulgação. De repente, caíam emails de revistas do Japão e da Rússia. “Torna a coisa gira, estás no Pico e sentes-te no centro do mundo”. A reação exterior foi “muito forte e positiva”. “Perguntavam como era possível, nesta ilha, termos isto, e começaram a escrever sobre nós”, constatou Filipe.

Menos risonho foi o percalço de 2017. Num dia aparentemente normal, dá-se um evento “esporádico sem grande explicação”: o mar foi subindo, uma onda partiu uma janela e a água entrou totalmente no bar partindo parte da estrutura e arruinando equipamentos. O Cella Bar abriu noticiários televisivos e era identificado pelo bar que teve o desastre. “Ficámos assustados porque estávamos a tentar tornar isto sustentável e levámos um embate daqueles... Sei que de vez em quando vou ter problemas com o mar, mas assumo-o e a vida continua. Prefiro isso e estar aqui junto do mar”, afirma Filipe Paulo. Ultrapassou-se o sinistro e, em 2019, o negócio estava já semi-normalizado, mas com a pandemia “volta a sangrar”. A crise sísmica em São Jorge e a guerra na Ucrânia não ajudaram, mas 2022 já “foi um ano bom e deu esperança que as coisas podem voltar ao normal”.

Cella Bar ao fim da tarde

Usufruir em liberdade

Daniela Mercury, Gabriel, o Pensador, o jornalista Ricardo Costa e Tony Carreira, que “gosta muito” de vinhos com a casta Merlot, já estiveram no Cella Bar (Lugar da Barca, Madalena. Tel. 292623654). Filipe gostou de conversar com Elisa Ferreira - atual Comissária Europeia -, que bebeu um gin: “São pessoas que percebem a linguagem do projeto e também a dificuldade desse caminho”. Esta ilha é um refúgio para algumas figuras públicas, em especial no verão. Sabe-se que António Guterres “vinha muito” e que Ana Gomes a visitou em 2022 e passou, pelo menos, no restaurante Casa Âncora, dos mesmos proprietários – têm ainda o Mercado Bio e o Tasca no Pico, além do Gastrobar Príncipe, no Faial -, com uma abordagem gastronómica mais contemporânea.

Na antiga casa de basalto recuperada funciona a parte do restaurante, e o bar desenvolveu-se no novo volume amadeirado e oferece uma esplanada panorâmica no topo. O usufruto do espaço, das 16h00 à meia noite, “é aberto e em liberdade”: pode ir beber um copo de vinho e um gin, petiscar ou fazer refeições mais compostas. Além da carta de cocktails e dos gins, nas bebidas o destaque são os vinhos do Pico, que representam “mais de 80% das vendas”.

O conceito gastronómico baseia-se na partilha de pequenas porções, embora estejam disponíveis pratos individuais de reforço para apetites mais vorazes. Segundo o chef Luís Moisão, muitas pessoas “vêm bastante cedo para aproveitarem a esplanada e petiscarem algo”, como a “Salada fria de lula”, a “Salada de polvo”, as tábuas de queijos ou enchidos, a “Conserva de atum” (€9), o “Pica Pau”, a “Linguiça do Pico” (€10,50) ou a “Morcela regional ”(€8,50), chouriço picante (€6) ibérico tostado no forno, e as “Gambas salteadas com molho de manteiga e alho” (€15). Há pão de alho normal e outro com chouriço picante. No inverno, a aposta são sobretudo as carnes, como o “Entrecosto BBQ” (€18), a “Vazia Black Angus” (€20) grelhada com batata frita e uma “Grelhada sul americana premium” (€20), além dos risottos de gambas e de cogumelos. No verão, uma das entradas mais pedidas é a “Lula caramelizada”, com um “twist” em relação à receita da “Lula à Moda das Ribeiras”. Leva um molho de tomate ligeiramente picante e serve “muito tenra”, depois de “horas a cozinhar”, refere Luís Moisão. Mas os best-sellers de estio são o “Lombo de atum braseado” com molho teriaki e batata assada, e o “Polvo assado” com batatas e legumes assados e esparregado.

PEPE BRIX

Legado sustentável

Há dois anos que não entram lapas no menu do Cella Bar. A decisão não se deve a fundamentalismos, deu-se só sinal de que as coisas se podem fazer com consciência e respeito pelo ecossistema, não o pressionando em demasia. “Isto é um negócio mas pode ser muito mais.Através dele podemos fazer com que as pessoas se questionem e não deem tudo por adquirido. Não quer dizer que não se retome a venda de lapas, a ideia é as pessoas perceberem que aquilo é um recurso natural que tem de ser valorizado. Podemos apanhar, mas com consciência e, quando se come uma lapa, perceber que tem muito valor, não as vender a €5/ kg. No caso das cracas, o que se retira é ainda mais significativo, parte-se a rocha, que é um recurso natural. Não podemos ter o melhor de dois mundos. Se quiseres o Cella Bar e este enquadramento, há que valorizar isso. É um sinal de sustentabilidade e isso é futuro”, reflete Filipe Paulo.

O anfitrião crê que o Cella Bar “veio trazer mais confiança e levou as pessoas a acreditarem que era possível, mesmo numa ilha pequena e isolada, no meio do Atlântico, fazer coisas de caráter nacional e até mundial”. Depois do Cella Bar, outros projetos surgiram no Pico por pessoas “que investiram na ilha porque acham que ela tem potencial, adicionando a esse potencial algo que o dignifique, há um acreditar”. Filipe não tem dúvidas que o seu negócio veio valorizar a ilha: “Cella Bar é sinónimo de Pico e Pico também é sinónimo de Cella Bar”. Falta apenas “quebrar o mito” de que os Açores só são bonitos em julho e agosto. “Digo, na brincadeira, que há a época alta e a época estúpida. Julho e agosto é estúpido, já não dá. Temos nove ou dez meses no ano que também são bonitos, há é que vir com outros olhos. Se queres sol e praia, não, mas se queres ver um grande pôr do sol com uma montanha cheia de neve ou descansar um pouco, apreciar outras coisas, meditar e desligar o botão, de novembro a fevereiro os Açores são ótimos!”, incita.

Cenário impactante a fazer lembrar ambientes algo inóspitos

Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, fazemos uma viagem no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.

Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:

1972: O restaurante bar de Lisboa que se transformou na segunda casa do Expresso

1973: O tributo a Eusébio e uma mesa para a eternidade

1974: O Pote que ajudou a cozinhar a Revolução dos Cravos

50 ANOS RECHEIO

A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.

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