50 Anos, 50 Restaurantes

2014: Belcanto ganha duas estrelas Michelin e José Avillez conquista distinção inédita em Portugal

Entrar no mundo especial do Belcanto
Entrar no mundo especial do Belcanto
Grupo José Avillez

Até assumir a chefia de cozinhas, José Avillez treinou os sentidos e estimulou a imaginação. Olhava o mar e conhecia os pescadores, sentia os aromas dos pinheiros, cuidava de galinhas e patos e foi descobrindo desde cedo os segredos do fogão. Adensou o conhecimento em restaurantes de renome, como o El Bulli, e encontrou o sucesso no Tavares. Em 2014, é o primeiro português a conquistar duas estrelas Michelin, com o Belcanto, inscrevendo também Lisboa nesse patamar de reconhecimento. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, fazemos uma viagem no tempo, com o apoio do Recheio, para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal

A elegância de movimentos do serviço é quase orquestral. Necessariamente rápido, mas também gentil e “oxigenado” o suficiente para o comensal se sentir valorizado. Na Mesa do Chef do restaurante Belcanto, em Lisboa, ao lado de turistas sul-coreanos, observamos a dinâmica da cozinha. Todos sabem o que fazer e a que ritmo. Obedecem às palavras-chave das ordens de execução com a precisão e o luxo de um relógio suíço. De repente, já saboreámos foie gras, tártaro de atum de categoria, a fantástica “Cenoura” com esferificações e granizados envolvidos na suavidade do leite de pinhão e azeitona, e ainda um “Carabineiro com caril, couve-flor e maçã verde”.

Para harmonizar com a cenoura, a sommelier Nádia Desidério escolhe um vinho branco de curtimenta “muito interessante e que não se encontra com facilidade”. Foi produzido pela Arribas Wine Company, de Trás-os-Montes, região “mais conhecida pelos vinhos tintos, pujantes e encorpados”. “Há cada vez mais pequenos produtores com projetos muito interessantes, a que o Belcanto dá visibilidade. O cliente procura vinhos mais exclusivos e é uma vantagem dar a conhecer algo que não encontram numa prateleira de supermercado ou mesmo numa garrafeira”, refere a sommelier. Comida e vinhos unem-se, neste restaurante, para celebrar a “descoberta” de sabores, texturas e do precioso mundo do chef José Avillez, que representa, agora, a aristocracia da gastronomia portuguesa. Refinada, distinta, elevada, e, ao mesmo tempo, subtil, com significado e real, assente no produto superior e nas vivências.

Dessas vivências nascem memórias e ideias para a cozinha. A “Pescada” lembra o “cheiro da figueira no Algarve” e a alentejana sopa de cação com os coentros. A gelatina dos samos de bacalhau dá-lhe cremosidade e o prato resulta “muito português”, explica José Avillez. Já a “Rebentação”, por sua vez, inseria-se na abordagem mais conceptual seguida no início do Belcanto. Em parceria com Cátia Pessoa, criou-se um prato em forma de onda para ilustrar a rebentação na Praia do Guincho, uma das “memórias de criança” do chef. Levava “areia de algas, 'espuma' da água do mar, bivalves e peixes e era um prato azul muito bonito”.

Cascais à beira-mar, prato do período do Tavares

O mar, o pinhal e a horta

Natural de Cascais, José Avillez vivia a dez minutos da Praia do Guincho. “Tinha uma pequena horta, galinhas, coelhos, patos e o mar ao lado. O cheiro do mar, dos pinheiros, a resina e o pinhão, é algo que me inspira muito. Lembro-me de, muito pequeno, assistir à matança do porco, que acontecia no pátio do meu vizinho, e de cortar a cabeça a um peru para se fazer no Natal”, conta. Na quinta da avó, também “passava a vida a apanhar figos, romãs e nêsperas, e a visitar a capoeira”. Sempre gostou muito de comer: mal chegava a casa, ia à cozinha ver o que se fazia e provar. Com oito ou nove anos, já cozinhava com regularidade. “Ao fim de semana, acordava mais cedo e lembro-me de preparar salsichas com couve lombarda, enroladinhas com o palito, e guisá-las no molho, fazer feijoada e outras coisas. Com a minha irmã, fazíamos tortas que vendíamos à família e aos vizinhos”, recorda Avillez. Foi também fazendo amizade com muitos pescadores e começando, ao longo do tempo, a ir com eles à pesca.

José Avillez começou por estudar artes, queria ser arquiteto, mas acabou por tirar o curso de Comunicação Empresarial. Cada vez mais apaixonado por cozinha, fez um estudo sobre a personalidade da gastronomia portuguesa: “Se ela viesse ao mundo como uma pessoa, como seria?”. Entrevistou 100 pessoas ligadas ao mundo da gastronomia, 50 portugueses e 50 estrangeiros. Patrona desse estudo, Maria de Lourdes Modesto ajudou a fazer as listas de figuras relevantes a entrevistar que, à época, eram “quase todos os que havia em Portugal”. Avillez fala com Vítor Sobral, Joaquim Figueiredo, Miguel Castro e Silva, Virgílio Gomes, José Quitério, David Lopes Ramos e José Bento dos Santos, que o “apadrinhou”. Ofereceu-lhe estágios e cursos, como o da escola de Alain Ducasse, em Paris, e o primeiro trabalho, na Quinta do Monte d'Oiro.

Sala principal do Tavares durante a chefia de José Avillez

El Bulli e Tavares

A temporada que José Avillez fez em 2007 no restaurante El Bulli, de Ferran Adrià, na Catalunha, foi marcante. Na altura, já tinha um pequeno take away em Cascais e era a primeira vez que se ausentava do trabalho por mais do que uma jornada. No primeiro dia do estágio, estava há 18 horas sem o telefone e, pelas 2h00 da manhã, foi aos balneários ver se tinha alguma mensagem e se estava tudo bem. Ao sair da casa de banho, um dos sub-chefs apanha-o e dá-lhe um raspanete: “É proibido ver os telefones!” “Ficaram três semanas a darem-me como mau exemplo de estagiário. Pensei se ia aguentar muito tempo...”

Não só aguentou como agradeceu a oportunidade do estágio num email enviado a Rafael Anson, na altura presidente da Real Academia de Gastronomia espanhola. O email circula e acaba por ir parar a Adrià que, vendo que o discípulo dizia que gostava do estágio mesmo com a pressão, considera que José “merecia uma oportunidade” e coloca-o na exclusiva equipa de criatividade durante um mês e meio. “É importante não desistir nesses momentos, ter perseverança, podemos ter sorte com isso”, sublinha o chef português. “O El Bulli abriu-me muito os horizontes para a criatividade na cozinha, no sentido de tudo ser possível, de pensar fora da caixa e com paixão. Estavam lá 50 cozinheiros estagiários de 20 países e isso também cria laços importantes. Conheci pessoas e, com 15 ou 20 delas, mantenho contacto”, comenta Avillez.

Após sair do El Bulli, José regressa a Portugal e é convidado para assumir a cozinha do secular restaurante Tavares, em Lisboa. “Havia muitos blogs e as pessoas diziam que eu ia fazer espumas, explosivos e gelatinas, devido ao preconceito sobre o que se passava na cozinha do El Bulli. Chegaram a dizer que eu punha intensificadores de sabores não naturais porque não era possível aquilo ser tão bom. Na verdade, davam-me um elogio, mas a criticar ao mesmo tempo”, recorda o chef, que recebeu cartas com insultos e a dizer que viera “estragar” a cozinha portuguesa. No final de 2008, o Tavares conquista uma estrela Michelin e as cartas passam a parabenizá-lo e a agradecer pelo que fazia pela cozinha portuguesa. Essa dinâmica “faz parte, sempre que alguém vem para mudar alguma coisa cria alguma reação”. O Tavares foi um “grande palco” para si, em estreia como chef de cozinha a solo, e “muito importante” para a cidade.

Sala do Belcanto
Grupo José Avillez

O “outro” Belcanto

Quando Avillez sai do Tavares, em divergência de visões face à administração, começa a construir um grupo empresarial de sucesso ao lado da família Arié. A 5 de janeiro de 2012, o restaurante Belcanto abre com a sua gerência, três meses após abrir o primeiro Cantinho do Avillez, também em Lisboa. O Belcanto já existia como restaurante desde 1958 e, mais uma vez, clientes antigos achavam que o chef vinha “destruí-lo”. Tinha boiserie em carvalho “já com a sua patine”, cozinha ao centro, uma sala atrás e outra à frente, e duas entradas. Era um local “muito clássico” e visto como “um clube de homens”, refere o chef. Herdava uma “cozinha burguesa com influências de fora e dois ou três pratos muito típicos, criados até por clientes, como os Ovos à professor, que eram ovos mexidos com pão frito e chouriço, e um strogonof que não era strogonof, mas bifinhos com molho picante e manteiga queimada, com arroz e ovos mexidos”.

O espaço do histórico Belcanto passou por três decorações e foi modernizado na era de Avillez. Retirou-se o bar à entrada e, aos poucos, foram saindo alguns clássicos da carta. Quase todos os habitués deixaram de aparecer. “Levava na cabeça porque já não fazia o strogonof igual, ou os Ovos à professor não serem como eles queriam ou porque já não fazíamos o prato”, conta Avillez, que escreveu mais de 60 cartas aos clientes mais antigos. A mais sonante das respostas foi a de Mário Soares, escrita “à mão, a desejar boa sorte e a agradecer a atenção”. O chef assusta-se com o parco número de almoços que se serviam, considerando o investimento. Apesar da estrela no Tavares, o Belcanto não estava no guia Michelin e os estrangeiros não sabiam o que ali se fazia.

Horta da Galinha dos Ovos de Ouro
Nuno Correia

Começaram a introduzir pratos diferentes, alguns criados ainda no Tavares, como o “Mergulho no Mar” (2007) e a icónica “Horta da galinha dos ovos de ouro” (2008), revestida a folha de ouro. Numa das últimas versões, a trufa e a avelã criavam várias camadas de complexidade à mesa. Para este prato, Nádia Desidério sugere o “Porta dos Cavaleiros 1984”, um vinho das Caves de São João já com alguma idade, mas sem perder a acidez. “Harmonizar vinho com ovo é muito complicado, mas os vinhos brancos antigos funcionam muito bem nesse sentido, para cortar a gordura, é o pairing ideal”, conclui. Criada no final da passagem pelo Tavares, em 2010, a “Tangerina” desenvolve-se no Belcanto. O chef de pastelaria, Américo dos Santos, explica que o sumo deste fruto “é passado em nitrogénio, criando-se uma esfera de tangerina recheada com espuma de tangerina e um creme”. Convidam-se os clientes a rasgarem as folhas de tangerineira e “sentirem um pouco a libertação do óleo, frescura e lado vegetal”. Serve com um crumble de cogumelos, que equilibra com a frescura e acidez da fruta. Durante muito tempo, esta sobremesa casou com um vinho fortificado de Carcavelos. “É interessante ter estes pontos de doçura, acidez e mineralidade, porque aquelas vinhas estão muito próximas do mar. A harmonização funcionava muito bem”, comenta a sommelier.

Por vezes há pairings menos óbvios: “Os asiáticos estão habituados a pontos de doçura muito altos e já me pediram vinho do Porto com a refeição inteira. Não é o ideal, mas para o seu paladar se calhar é”, exemplifica Nádia. Em menus mais direcionados a marisco e peixe também já se pediram garrafas de tinto. “Não é o ideal, mas se a pessoa estiver na disposição de beber vinho tinto, está à vontade, não somos fundamentalistas”. O champanhe, por sua vez, “é muito versátil, funciona muito bem com tudo”. “Tentamos ir ao encontro do que o cliente mais gosta, com atenção ao detalhe e a equipa muito bem formada em relação ao que temos na carta e sobre o mundo dos vinhos. Há clientes estrangeiros que fazem comparações: quero algo semelhante a um Sauvignon Blanc da Nova Zelândia ou a um Chardonnay da Borgonha, o que é que me consegue arranjar, português, semelhante a isso?”, ilustra a sommelier. Releva ainda “como se guarda o vinho, a temperatura, a inclinação da garrafa para não deteriorar a rolha, o fecho a vácuo para o vinho a copo estar em condições no dia a seguir”.

Equipa do Belcanto
Grupo José Avillez

A reportagem decisiva e os prémios

Num almoço de abril de 2012, Frank Bruni, colaborador do The New York Times, almoça sozinho e anónimo no Belcanto. Um dos pratos servidos foi a “Raia Jackson Pollock”. Era uma homenagem a um dos quadros do pintor norte-americano Jackson Pollock, com “vários cremes, de cenoura, alho, azeitona e tinta de choco, e a raia estendida no prato, que parecia uma tela”. Serviram também um “Dry Martini invertido”, ou seja, um sumo de azeitona com uma esfera de Martini no interior. Frank publicou um artigo no The New York Times a dizer que tinha tido, em Portugal, “a melhor refeição do ano”. “Em três dias enchemos, mas enchemos mesmo, de pessoas vindas do mundo inteiro, ao almoço e ao jantar, e nunca mais parou”, lembra o chef.

Em novembro desse ano, o Belcanto ganha a primeira estrela Michelin. Em 2013, vence o primeiro Garfo de Platina, prémio máximo do Guia Boa Cama Boa Mesa. A segunda estrela Michelin foi anunciada em 2014: José Avillez era o primeiro português com um restaurante de duas estrelas e o Belcanto inscreveu também Lisboa nesse patamar de reconhecimento. Constatava-se a “evolução natural, melhoria do serviço, controle de produto, mise en place, pesagens de ingredientes e elementos acrescentados, dos equilíbrios, criatividade e o contar a história da cozinha portuguesa em vários momentos”, reflete o chef. Avillez fica contente, mas sente que a gastronomia portuguesa “merece muito mais” estrelas.

Ainda antes da pandemia, houve a necessidade de aumentar a cozinha para a sala de trás, o que reduzia o número de lugares. O Belcanto mudou-se para o espaço atual, que se acredita ter sido um claustro de um convento. As abóbadas já lá estavam, mas a decoração do anterior restaurante que aqui funcionou era “completamente diferente”. Teria alcatifa e as paredes forradas a tecido verde. Os cortinados, madeiras e os atoalhados conferem-lhe conforto e classe.

Entrada do Belcanto
Grupo José Avillez

Despertar gastronómico

Além do serviço à carta, o Belcanto (Rua Serpa Pinto, 10 A, Lisboa, Tel. 213420607) dispõe do Menu Mesa do Chef, Menu dos Clássicos (€195, sem bebidas), com as criações emblemáticas, que “revisitam a cozinha portuguesa e são marcos incontornáveis na nossa história”, e o Menu Evolução (€225, sem bebidas). Para a excelência mundial desta cozinha ajudou a pesquisa, a vontade de “abrir caminho” e dar visibilidade a produtos diferentes. José trazia para a alta cozinha a cavala, por exemplo, que curava ou marinava, e até aí se vendia para Espanha como isco. Queria “os melhores produtos”, trabalhando-os rigorosamente e “sem os disfarçar demasiado”. Ainda lhe enchem as medidas o ouriço-do-mar, que é “espetacular” na sua estação, mas ainda o carabineiro, o robalo, salmonete ou o pombo.

Reinventa-se, também, receituário típico: “Muitos portugueses comeram pela primeira vez os pezinhos de coentrada desossados, picados, sem a pessoa saber exatamente o que comia, mas com todo o sabor e a gelatina dos pezinhos de coentrada”. O tradicional leitão, que move tantos afetos e excursões, faz-se acompanhar de puré de casca de laranja e alface. “Maria de Lourdes Modesto, que se transformou numa avó para mim, era quem mais sabia da cozinha portuguesa e que ela era também de evolução. A caldeirada tem peixes, tomate, pimentos, cebola e batata. Se recuarmos 400 ou 500 anos, não tínhamos tomate nem pimentos ou batata, tínhamos cebola e o alho. Tudo isto é evolução. A tradição, é por definição, também evolução”, defende o chef. O Belcanto “equilibra a tradição e a modernidade”, tal como a personalidade de Avillez, que “arrisca muito em algumas coisas mas também gosta de um lado de conforto, tradição e classicismo, evidente nos pratos e no serviço, sempre atendendo ao sabor, textura e temperaturas”.

Os empratamentos eram memoráveis, como o tronco de madeira em que pousava o escabeche de perdiz com foie gras “No bosque depois da caça”. O cliente era e é visto como parte da experiência, podendo descontrair e interagir como no “Toucinho do céu e da terra”: entrega-se um guardanapo em forma de manga para colocar e limpar a boca à manga, como Avillez fazia por vezes em criança. E o brilhantismo técnico ia fazendo a 'magia' que faltava na equação... Veja-se o exemplo recuperado pelo chef de pastelaria: o típico choco grelhado com batata, azeite e coentros inspirou, em 2017, a criação de um “Choco” doce. “Se pensarmos bem, tudo o que vai à grelha vai buscar uma caramelização. Podemos ir buscar esse caramelo às cores, ao sabor, e transportar para uma avelã ou noz tostada. Depois há a gordura do azeite, a frescura do limão, a salinidade transmitida pelas algas. A batata, em si, também tem um toque adocicado e conseguimos passar isso para um prato, com o trabalho de toda a equipa”.

Chef José Avillez
Grupo José Avillez

Tremoços no Líbano

Difícil é lidar com os detalhes, que fazem a diferença. “Tentamos melhorar dia a dia, por exemplo, o timing da chegada do prato à mesa, a maneira como se coloca o copo e se aborda o cliente no início da refeição, fazer a mise en place perfeita, dar o máximo de informação e formação para que qualquer pessoa esteja minimamente preparada para fazer o que quer que seja desde atender o telefone a sentar uma pessoa, servir um aperitivo, uma bebida de bar ou finalizar algum prato na mesa”, explica o chef de sala Luís Reis. Nos briefings diários, ao almoço e ao jantar, discutem as mesas individualmente, atribuem os turnos, o que cada um deve fazer e os cuidados extra face ao histórico dos clientes. Uns clientes suíços, por exemplo, dispensam o guardanapo especial de sobremesa.

Para sustentar e elevar o projeto, houve uma fase em que Avillez se deixou absorver completamente pelo trabalho. Fazia 18 horas por dia, seis dias por semana. “Foi burnout várias vezes. Há pessoas que passam por mim na rua e que eu conheço mais ou menos a cara, e depois percebo que trabalharam três anos comigo. Acabei algumas vezes no hospital a passar a noite a soro, o que não aconselho a ninguém”, adverte. Já diminuiu a carga horária, mas continua em falta com colegas cujos restaurantes ainda visitou ou revisitou.

Pode surgir uma ideia de uma memória que alguém despertou ao chef, ou porque Avillez leu um poema, ouviu uma música ou viu “um prato vazio”, mas ver mundo é importante no processo. “Poder comer em casa de alguém no Alentejo ou no Algarve, ir aos mercados nesses sítios, que são diferentes dos nossos, sentir o campo... Estamos a 15 minutos sem trânsito de praias na Costa da Caparica onde os barcos entram na praia e trazem as redes cheias de peixe. Somos uns privilegiados. Sentir isso emociona-me e inspira-me muito”, confessa José Avillez. No estrangeiro, brotam muitas ideias de “coisas que os portugueses levaram” para lá. “É estar no Líbano a comer tremoços e pensar: nunca tinha comido tremoços assim em mais lado nenhum sem ser em Portugal. Ao mesmo tempo, com os tremoços serviam favas cruas, que se tiravam da vagem e comiam como se fossem tremoços. E de repente, um dos pratos com que iniciámos o Encanto, é um Shot de tremoço com pastel de massa tenra de favas, inspirado nessa viagem ao Líbano, mas que é a minha lembrança de Portugal no Líbano”, ilustra. A visão do prato, em concreto, pode nascer no avião, quando o chef desconecta do mundo exterior e dá “oportunidade a que estas ideias entrem e fluam”.

Atmosfera do restaurante Encanto
Bruno Calado

Estrela para o Encanto

No espaço do anterior Belcanto nasceu o Canto no final de 2019, com António Zambujo e Ana Moura. Aí chegaram a cantar “os melhores artistas portugueses” e a atuar “o pianista e guitarrista de Madonna”, mas a pandemia pôs fim ao projeto depois de três meses. Na cabeça de José Avillez havia “um chamamento” por um vegetariano e abriu ali o Encanto. Repentinamente, teve de tirar da paleta de sabores e texturas “mais de metade” dos ingredientes que costuma usar e introduzir outros a que não estava habituado, pelo menos da maneira como antes os usava para completar os pratos. Desencanta, então, criações como o “Tártaro de beterraba com crocante de batata-doce”, um “Ovo de ouro” feito de húmus, uma “Rabanada” com gelado de topinambur e gel de romã e um “Arroz negro” (feito com carvão vegetal ativado) com manteiga de ovelha, trufa de outono e arroz Carolino.

Pensando bem, a cozinha vegetariana pode ser até “mais desafiante”: “Temos de pensar mais, são cozeduras na maior parte das vezes muito sensíveis, trabalhamos com as fermentações, o legume ou o fruto mais verde. Há um ciclo de vida do produto, podemos apanhá-lo em várias alturas e trabalhá-lo tecnicamente nessas alturas, desde o verde à fermentação”. O Encanto conquistou uma estrela Michelin nove meses após abrir, conquista que fez Avillez refletir. “Já não interessa ser o primeiro em Portugal a fazer não sei o quê. Se fizermos história sendo o primeiro na Península Ibérica, quando em Espanha recebem muito mais estrelas do que nós, e sendo dos poucos vegetarianos na Europa com uma estrela, começamos de facto a elevar a gastronomia portuguesa internacionalmente. É para isso que temos trabalhado. O mesmo acontece ao estarmos na lista dos The World's 50 Best Restaurants nos últimos anos, é muito importante para Portugal, e também com a estrela Michelin no restaurante Tasca, no Dubai. É um restaurante português, ainda por cima com muitos pratos bem portugueses”, congratula-se José Avillez.

Chef José Avillez no Cantinho do Avillez Porto
Grupo José Avillez

Grupo mediático

Além do Belcanto, o Grupo Avillez conta com quatro restaurantes Cantinho do Avillez, o Bairro do Avillez com quatro conceitos distintos e a servir “entre 600 e 1000 pessoas por dia”, três projetos no El Corte Inglés, o Tasca no Dubai, o Maré em Macau, e o Encanto, além do alojamento Casa Nossa - The Lake Farmhouse. Emprega perto de 400 pessoas. E novos projetos estão a nascer, como o restaurante Maré, que vai abrir até ao final deste mês. Quanto ao Belcanto, continua com listas de espera ao jantar. Só não fica a 100% (mas quase) alguns meses em época baixa, ao almoço. Tem inspirado outros cozinheiros “a abrirem os seus próprios negócios e quererem elevar a fasquia e fazer melhor”.

A exposição mediática continua imparável, da inclusão em “No Reservations” de Anthony Bourdain, que “fez disparar o negócio” no início, às participações no Masterchef UK, CNN ou CBS. O trabalho de promoção feito pelo Turismo de Portugal e a rota aérea para os EUA foram outros trunfos. “Hoje, se calhar 60% dos clientes no Belcanto são americanos, o que muda radicalmente o mindset”, comenta o chef. Há quem venha “de propósito a Lisboa em lua de mel para vir ao Belcanto”, outras pessoas “marcam viagens inteiras de família porque ouviram falar do Belcanto e querem experimentar”. Quem já experimentou foram Dua Lipa, Natalie Portman, Irina Shayk, Katheryn Winnick da série Vikings ou a já falecida juíza Ruth Bader Ginsburg, do Supremo Tribunal dos EUA. Na memória de Luís Reis ficou ainda o momento em que Martha Stewart fez uma videochamada com Snoop Dogg, que elogiou o “cabelo espetacular” de um funcionário.

Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, fazemos uma viagem no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.

Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:

1972: O restaurante bar de Lisboa que se transformou na segunda casa do Expresso

1973: O tributo a Eusébio e uma mesa para a eternidade

1974: O Pote que ajudou a cozinhar a Revolução dos Cravos

50 ANOS RECHEIO

A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.

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