50 Anos, 50 Restaurantes

2006: o restaurante no museu que ajudou a dar fama mundial à Comporta

Restaurante fica no início de extensos campos de arroz
Restaurante fica no início de extensos campos de arroz

O restaurante abriu a 23 de junho de 1996, numa antiga fábrica de descasque de arroz, na Herdade da Comporta. Para Isabel e António Carvalho, era fundamental “pôr a Comporta no mapa” e o desígnio reforçou-se com a grande remodelação do espaço do Museu do Arroz, que iniciou uma nova era na região em 2006. A qualidade dos sabores, portugueses e internacionais, a decoração e as festas já atraíram Christian Louboutin, Madonna e Claudia Schiffer. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, fazemos uma viagem no tempo, com o apoio do Recheio, para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal

Era um trabalho duro. As plantas cultivavam-se a partir de fevereiro e ficavam dentro de água até outubro, com a monda pelo meio. Para não as partirem, as ceifeiras andavam descalças nos canteiros, tentando proteger-se dos mosquitos com trajes e lenços. O arroz era depois transportado em barcos puxados por gado, até à eira. Os homens debulhavam-no e estendiam pesados fardos auxiliados por cordas e tábuas, e “riscavam o arroz” mudando-o de direção a cada meia hora, para o calor absorver a humidade. Volvidos três dias, o arroz ia para a fábrica onde era limpo, calibrado, descascado, branqueado por polimento e guardado em silos para ser embalado e depois vendido. Durante o processo, “subia e descia várias vezes” o edifício e por isso é que na antiga fábrica de descasque de arroz da Herdade da Comporta se veem tantos tubos, explica Vera Bilro durante a visita à histórica indústria, transformada em museu.


Isabel Carvalho

Pode visitar essa unidade museológica de junho ao final de setembro (fora desse período, em grupos de pelo menos dez pessoas) e incluir, se pretender, guia e prova de vinhos na loja da Herdade da Comporta. Faz-se uma autêntica “viagem ao passado”, acompanhando a evolução de uma propriedade que chegou a pertencer à Companhia das Lezírias do Tejo e Sado, sendo depois adquirida pela Atlantic Company, em 1925, o que permitiu a “inovação dos métodos de fabrico”. A partir de 1952, quando o arroz ficava seco, a produção passou a realizar-se nesta fábrica e, três anos depois, a propriedade é adquirida pela família Espírito Santo – pertence, desde 2014, a um “fundo de investidores”, informa a guia.

Dos 11 mil hectares que compõem a propriedade, “1100 são campos de arroz”. Destes, 30 hectares estão em produção biológica, estando já à venda um arroz biológico na loja da Herdade da Comporta. “O processo foi encurtado. Antigamente era feito por viveiro, como na Ásia: a planta era cultivada, enquanto que hoje em dia é semeada de avioneta. Nestes campos chegaram a trabalhar mais de 500 pessoas, mas tudo isso foi substituído pelo trabalho de duas ou três máquinas e outras tantas pessoas, e a máquina já é ceifeira e debulhadora”, explica a guia. É nos afluentes do Tejo, zona de Coruche, que se concentra, atualmente, a maior produção de arroz do país, seguindo-se as bacias dos rios Sado, onde se insere a Comporta, Mondego e Mira. Na antiga fábrica de descasque, desativada em 1993, as máquinas repousam nos seus lugares e contam a história da região, a par de ferramentas e fotos.

As ceifeiras trabalhavam descalças para não partirem as plantas do arroz

Comporta ganha um restaurante

Entretanto, Isabel e António Carvalho tomam conhecimento de uma reforma da antiga fábrica de descasque para poder vir a funcionar como museu. António tivera restaurantes no Algarve e bares de praia com animação nessa região e na Costa da Caparica, e o casal esteve dois anos à frente do Bar dos Pescadores, na Praia do Carvalhal. Procuravam um projeto “um bocadinho mais consistente”. Espreitaram este edifício a 1 de maio de 1996, dia 15 fecharam contrato e dia 23 Isabel perguntou como estava a andar o processo das licenças, já que queriam fazer obras para abrir um restaurante nesse verão, ocupando o antigo “armazém de arroz branco” da fábrica, ou seja, onde se guardava o produto acabado, como mostra a planta do edifício. Ninguém tratara de nada e Isabel inicia uma 'epopeia' pro-ativa para debelar a burocracia e dar gás ao processo: “Do primeiro requerimento até à autorização para abrir o restaurante foram nove dias. Batemos os recordes em Portugal. Não paguei um tostão a ninguém, mas a maior parte das pessoas não aguentava mais ouvir falar do meu nome. Paguei 40 contos em chamadas telefónicas de uma semana em que estive em Lisboa a mandar faxes, papéis e falar com as pessoas”. O processo foi “muito cómico”, até Isabel conseguir a licença, mas houve 'fumo branco'. Fizeram-se as obras e, a 23 de junho de 1996, abriu o restaurante Museu do Arroz, com convite à população para vir conhecer o espaço.

Fachada

A área destinada ao restaurante tinha servido para refeições “pontuais” no universo da Herdade da Comporta, mas a estrutura era insuficiente para as necessidades de operação projetadas por Isabel e António, que iam muito além de “uma placa da Ariston de quatro bocas, um frigorífico de ter em casa, um esquentador e um lava loiças”. O teto era em telha aparente, que “significada um frio de morte”, já que não havia ar condicionado, a cozinha abria para a sala, os bancos eram corridos e os toalhetes de papel - as toalhas de tecido demoraram algum tempo a pousar nas mesas. Sem conseguirem arranjar um sócio, Isabel e António juntaram as economias e avançaram com o que tinham. “Era chapa ganha, chapa gasta. Íamos fazendo, remodelando, comprando, trocando os bancos corridos por cadeirinhas de escritório, de fábricas ou refeitórios. Eu queria que tivesse um ar de fábrica porque isto não deixava de ser uma coisa um bocado industrial”, refere Isabel. António “fez uma iluminação extraordinária” e tratou da música. Com experiência em decoração, a esposa ia arranjando e recuperando “muita tralha em segunda e terceira mão”, erguendo um restaurante que se tornaria numa referência.

Mesmo com um espaço ainda algo precário, Isabel e António “deitavam os foguetes e apanhavam as canas”. O restaurante só fechava à segunda-feira, tal como hoje, porque “era fundamental pôr a Comporta no mapa”. Mantendo-o aberto, dava-se segurança a quem pensava fazer-se à estrada e combatia-se a sazonalidade. Foi uma visão acertada e a qualidade do projeto chamou a atenção de Maria João Avillez que, apesar das preces de Isabel para não escrever sobre o restaurante antes de “fazer a casa, trabalhar e rodar”, escreveu para o Expresso a primeira matéria sobre o Museu do Arroz como restaurante. “Veio duas vezes, adorou e disse: Isto tem de ser relatado, tem de ser falado”. A coragem de abrir um espaço de grande dimensão, neste local, começava a ser reconhecida.

Museu do Arroz

Início de uma era

O Museu do Arroz “passou a ser um bocadinho a sala de estar da Comporta porque as pessoas não tinham onde ir e onde estar, um sítio grande e para ficar no interior”. Fidelizavam-se clientes com o “boca a boca” e passou a vir gente de todo o país, também atraído pelas festas e a animação. “Ao fim de dois ou três anos, já começavam a mudar a rota para vir almoçar ou jantar ao Museu do Arroz”, a caminho do destino. Ao mesmo tempo, somavam-se artigos em revistas de decoração internacionais, captando públicos de outras paragens. “As pessoas sentiam uma certa curiosidade, vinham a Lisboa e achavam divertido vir à Comporta porque havia um sítio interessante para ver”, nota a anfitriã.

Isabel começou por apostar em pratos internacionais, das massas ao caril e à tagine. Havia uma salada de verdes com molho de mostarda e um pouco de mel, algo comum hoje, mas torciam o nariz porque “a salada era doce e não gostavam”. Estando junto à estrada, era forçoso “agradar a gregos e a troianos”, de modo que se remeteu a veia internacional para as entradas e se optou pela cozinha tipicamente portuguesa nas sugestões principais. O chef José Guerreiro vinha assegurar um evento de três semanas – com um grupo e o lançamento de um carro internacional -, mas está na casa há 25 anos.

Esplanada

Em janeiro de 2005, o restaurante fechou para uma reestruturação e foi reinaugurado em maio de 2006, iniciando “uma nova era”. “Ficámos com uma cozinha melhor equipada e mais infraestruturas. O que tínhamos de decoração interior já não cabia aqui dentro, não fazia parte. Aquilo que estava velho e muito usado já não combinava na segunda fase”, analisa Isabel Carvalho. A esplanada com vista para os campos de arroz foi fruto desta grande obra e o bar ficou maior “e mais digno”, passando para a zona da loja. “Quando o Museu do Arroz abriu e começou a ter muita fama, as pessoas ficavam horas à espera de mesa. Achei que era interessante, para se entreterem, abrir uma lojinha. Entre uma caipirinha ou uma recordação, havia de tudo um pouco, até escovas para cavalos vendia. Era uma concept store, no espírito da loja que tenho na vila”, enquadra Isabel.

Da nova fase faziam parte os copos de pé alto, toalhas brancas e a decoração impactante: os candeeiros da sala de refeições são obra de Tim Madeira, que virou estruturas ao contrário, “aumentou as correntes e fez os 'cachos' de uvas maravilhosos que estão no teto”, em latão e acrílico colorido. Repare na antiga faiança, no trilho de debulha de cereais oferecido pelo amigo e colaborador Quim Zé, e na mezzanine, onde em tempos se serviu sushi. A sala junto ao bar é agradável para aguardar mesa com um aperitivo. É 'sobrevoada' por pássaros comprados na Ásia, enriquecida de candeeiros com curiosos “búzios” e peças marroquinas: “Houve uma altura em que eu e o meu marido íamos duas a três vezes por ano a Marrocos, onde tínhamos muitos amigos. Íamos aos artesãos e desenhei tecidos, candelabros, mesas e cadeiras”. Sempre que Rui Veloso, grande amigo do casal, passava no restaurante, sugeria um piano. Já ali está o instrumento, à espera do artista... É certo que “muita gente tem saudades do antigo Museu do Arroz”, mas para trabalhar “é muito melhor como está”. Esperando-se, ainda assim, novidades em 2023.

Fafá de Belém ao centro, com Isabel e António Carvalho

Destino de famosos

A natureza do destino também ajuda a perceber o fluxo de famosos. “A Comporta é muito especial. Ou você tem amigos aqui e anda de casa em casa com eles, ou se não tem amigos a vida restringe-se aos restaurantes, lojas e praia, porque não há mais nada. Não há um sitio onde as pessoas se encontram. Por isso é que os nomes sonantes gostam muito de vir para a Comporta: não são incomodados, estão nas suas casas, fazem os que lhes apetece e são eles próprios”, explica a anfitriã. Paulo Gonzo, Rui Reininho, Miguel Ângelo, Joana Lemos, Bárbara Guimarães e Ricardo Carriço costumam vir, Ruben Alves é outro “grande amigo” e o saudoso habitué Rogério Samora “gostava muito de comer e dar gargalhadas”. Numa das visitas de Tony Carreira gravou-se um programa sobre a Comporta para a televisão francesa. Escolheram o Museu do Arroz para uma degustação, harmonizada com vinhos da Herdade da Comporta.

A nível internacional, refiram-se as presenças de Philippe Starck, Claudia Shiffer, Fafá de Belém ou de Kristin Scott Thomas. Isabel é amiga de Christian Louboutin, que veio “várias vezes” ao restaurante Museu do Arroz (EN 261, Km 0, Comporta, Alcácer do Sal, Tel. 265497555). Madonna costumava andar a cavalo na zona e almoçou aqui três vezes: “Vinha sempre com 12 a 14 pessoas, entre seguranças, personal trainer, assistentes, os filhos e babysitters. Adorou e disse que era dos melhores restaurantes de Portugal. Tratei-a super bem, mas ela tem um bocadinho feitio de estrela”, constatou Isabel. Aprecia comida vegetariana, que apreciou de tal forma que uma das pessoas que vieram cozinhar para si, a chef Rebeca (que estava no restaurante de praia gerido pelo casal, o Ilha do Arroz) ficou a trabalhar alguns meses para a estrela.

João Gil também frequenta o Museu do Arroz e o vocalista dos Ala dos Namorados, Nuno Guerreiro, já aqui fez um concerto surpresa para um casal: a esposa era “apaixonada pela sua voz”. “Eram simpáticos, foi uma noite muito boa”, diz Isabel. “Uma vez juntei nesta sala o Otelo Saraiva de Carvalho e o Kruz Abecasis”, lembra, acrescentando, por outro lado, que António Costa foi “padrinho do noivo” num casamento organizado na praia. Na memória ficaram almoços com embaixadores e eventos memoráveis... “Quando o Museu do Arroz abriu, era tudo muito místico porque havia de tudo aqui. Nunca fomos um restaurante muito tabelado, havia pessoas de todo o lado. Nas festas há sempre uma mistura muito simpática e divertida de uma data de gente. As pessoas conhecem-se e acabam por ficar amigas”.

Arrozes são o prato forte da casa

Arroz é a estrela do menu

A conversa com Isabel Carvalho flui naturalmente, agraciada por vinhos de qualidade, música tranquila e sugestões certeiras: “Prove isto, prove isto até com o filete, que também é muito bom...”. Para espevitar o palato, servem-se os queijos de Alcácer do Sal e as casquinhas fritas de batata, uma adição desde o começo e resultante de uma ideia que Isabel trouxe dos EUA. Outra invenção inicial foram os “Bolinhos de arroz” (€2,5), croquetes de arroz com milho, presunto (pode vir com chouriço ou paio), pimento, ervas e molho de soja, “que lhe dá um ar um bocadinho oriental, mas combina lindamente”. Os “Ovos mexidos com farinheira” (€10) levam bastante cebola e adocicam ligeiramente, dando vontade de repetir. “Quer este restinho? Isto é bom...”, continua Isabel. Ainda nas entradas, encontra “Crepes asiáticos” (€10), “Pimentos padron” (€9), “Cogumelos mágicos” (€9), “Espargos verdes grelhados”, morcela ou chouriço assados, “Amêijoas à Bulhão Pato” (€19) e saladas como a de “Tomate da Comporta, Mozzarela e mangericão” (€10). “Maravilhosos” produtos locais, como o tomate ou a batata doce, são usados nesta cozinha.

Como explica o chef José Guerreiro, nas sugestões principais destacam-se os tachinhos de arrozes. Os de lingueirão, tamboril com camarão e o do mar com peixe do dia, camarão e amêijoa custam €48 e são para duas pessoas. No mínimo para dois é também o “Arroz de carabineiros” (€200/Kg), e tem ainda os arrozes de bacalhau (€22), de choco com tinta (€24), pato (€19), legumes e, por encomenda, os de lavagante, lagosta ou de cabidela de frango do campo. Parte do arroz utilizado na ementa é carolino e provém dos campos que vão da Comporta até à zona do Carvalhal. Além de ter muita goma, “deve ser comido na hora”, considera o chef. “É do melhor que há em Portugal”, defende Isabel. Na secção dos peixes constam outras opções, como a cataplana ou massinha de peixe do dia com camarão e amêijoa, os filetes de pescada com arroz de tomate ou lingueirão, o “Polvo à Lagareiro” e o “Pregado frito com açorda de ovas” (€26). Nas carnes, aposte nas “Costeletas de borrego com alecrim” (€24) e nos bifes da vazia com pimenta rosa, do lombo grelhado ou da vazia à portuguesa. Para sobremesa há “Leite creme” queimadinho na hora, “Arroz doce”, “Bolo de chocolate” húmido e cremoso, “Banana assada” com canela e Porto e a incrível laranja marinada em chá de Erva Príncipe, com hortelã e canela. É mais uma invenção de Isabel, inspirada nas viagens a Marrocos. Confie e seja generoso na hora de envolver a laranja na calda...

Foto antiga da vila da Comporta. Aqui chegavam muitas pesssoas para trabalhar, do Norte ao Algarve

Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, fazemos uma viagem no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.

Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:

1972: O restaurante bar de Lisboa que se transformou na segunda casa do Expresso

1973: O tributo a Eusébio e uma mesa para a eternidade

1974: O Pote que ajudou a cozinhar a Revolução dos Cravos

50 ANOS RECHEIO

A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.

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