2004: Eleven, o restaurante que marcou o início de uma era em Lisboa
Eleven
Em Lisboa, há um antes e um depois do Eleven. Em 2004, um grupo de 11 sócios fundava um restaurante que, pela sua inovação, iria mudar a gastronomia da capital. Não apenas na forma como se confecionava e apresentavam os pratos, mas no serviço e formação de futuros cozinheiros. Na base da mudança esteve o chef Joachim Koerper, um alemão com mais de 50 anos de carreira que se apaixonou por Lisboa. Em 2005, inscreveu a capital no guia vermelho com a conquista de uma estrela Michelin. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, fazemos uma viagem no tempo, com o apoio do Recheio, para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal
Em criança, passou muito tempo com a avó. Dizia-lhe que a sua comida “demorava sempre muito tempo” a fazer. O pai quis que o chef Joachim Koerper e os irmãos contactassem com animais e assim foi. Nas férias, aos dez anos, Koerper passava períodos numa roulote no terreno da família, ia de manhã buscar os ovos e estrelava-os num camping gás. Moravam na Alemanha, na fronteira com a França, país onde o pai os levava a comer ao domingo, em bons restaurantes. Também o faziam à semana ao almoço, depois da escola, na sua cidade, Saarbrücken. Koerper ajuda a mãe na cozinha e, aos poucos, desperta para a gastronomia.
Quando quis aprender, percebeu que na sua cidade não era possível e viaja 600 Kms até ao lago Konstanz, para trabalhar no Hotel Falken. O conceito era simples, de comida regional, e embora não soubesse ainda o que era uma ostra ou um lavagante, assimilou “bem a base”. Em 1971 ruma ao Hotel Kempinski, em Berlim, e aí inicia “a verdadeira aprendizagem”, de três anos, trabalhando a lagosta, o lavagante, a ostra, a alcachofra... Foi a primeira vez que viu caviar. Conversava com colegas que lhe falavam de outras paragens e resolve, entretanto, viajar pelo mundo. Seguiu-se uma odisseia de deslocações e experiências de trabalho entre a Suíça, a Grécia e a Sardenha. De um lado para o outro, entre a montanha e o mediterrâneo, expandia o conhecimento ao nível de produtos, sabores e aromas. Aprendeu a esquiar, a falar francês e a fazer pizzas... Nos anos 80, continuou a trabalhar em grandes hotéis, até que jantou com o proprietário alemão do El Girasol, em Alicante, que lhe propõe adquirir o restaurante, na altura com duas estrelas Michelin. Koerper queria-o “absolutamente” e comprou essa “casa antiga, estilo chalet” em 1988, assentando em Moraira até ao novo milénio. Confrontou-se com a perda inicial das estrelas no El Girasol, mas recupera-as em poucos anos.
Em 1999, a vontade de incluir a Quinta das Lágrimas na rede Relais & Châteaux, levou a família Júdice a convidar Joachim Koerper para chef consultor do restaurante. O alemão aceita, coloca dois cozinheiros em Coimbra e troca “tudo”, concretizando a ambição. A família endereçou-lhe novo convite, queriam “trazer um primeiro restaurante de alta cozinha para Lisboa, numa altura em que a capital não tinha ainda oferta desse tipo”, explica Miguel Júdice. Em 2002, já com investidores interessados na sociedade, começaram a ver espaços, incluindo o local onde se encontra o Belcanto, de José Avillez, um nas Docas e a zona onde se instalou o EPIC SANA Lisboa Hotel. Dois anos depois, encontram um sítio, no topo do Parque Eduardo VII. “A Câmara pôs esse espaço a concurso e o arquiteto João Correia, amigo de Júdice, soube e ganhou o concurso. Ainda não havia nada aqui e então fizemos o restaurante. Foram 11 sócios e fizeram uma coisa muito inteligente, de que ainda estou agradecido: regalaram-me uma parte para me manter e não ir embora dali a cinco anos”, conta o chef. Koerper torna-se no 11º sócio fundador do restaurante Eleven.
Eleven
Abertura concorrida
Ia a obra a meio, só com os muros de pé e tudo o resto “aberto”, quando Koerper faz um catering para os sócios no local. Trouxe de Espanha tudo, incluindo sommelier, maître e dois ou três cozinheiros. Era uma espécie de “semi-inauguração” simbólica e os sócios “gostaram muito porque se criou uma certa unidade”. Queriam abrir a tempo do Euro 2004, sem sucesso. A abertura do Eleven foi a 11 de novembro de 2004, num dia “emotivo”, lembra Joachim. Corria a ideia pela cidade que “ia abrir uma coisa de luxo” e gerou-se grande curiosidade, de maneira que, em vez do habitual 'soft openning', aconteceu um 'hard openning'. “Todo o mundo quis vir e foi assim três meses. Com isto sempre cheio, não se chegava a fazer um bom serviço, havia demasiada gente ao mesmo tempo, não conseguíamos organizar. Isso prejudicou-nos um pouquinho. Faturámos, sim, mas por outro lado...”. O Eleven abriu com serviço à carta, menu de degustação e uma sala elegante, envidraçada, deixando ver o Jardim Amália Rodrigues e a cidade a estender-se até ao rio.
A capital portuguesa, na sua mais diversa expressão, atraía bastante Joachim Koerper. “Encantou-me Lisboa, este 'flair' que a cidade tem. Ainda era outra Lisboa, do tempo colonial, com aquele brilho, cheiro e imagem dos barcos que saíam pelo mundo. Eu gosto disso, entende? A luz lembrava-me o mediterrâneo, França, a Côte d'Azur. A luz dá a alegria, dá o produto e inspira”, comenta o chef. Em 2004, ainda “não havia” tudo o que o chef queria ao nível de produto, ou falhava a regularidade. Tinha, porém, “todo o equipamento que precisava”. Ensinava à equipa como se fazia, como qualificar a matéria-prima e aplicar técnicas distintas: “Saber se é um peixe bom ou mau. Em 2004, 90% dos cozinheiros aqui só sabiam trabalhar o peixe grelhado, mas outras técnicas como o molho ou o vácuo, o tirar as escamas do salmonete, fritá-las e servir à parte, ou o aproveitamento de outras partes da proteína... Mostrei essas coisas aos que estavam aqui e eles começaram a absorver tudo”, recorda Koerper.
A estrela e a influência
O trabalho foi tão bom que, em 2005, o Eleven conquistou uma estrela Michelin, a primeira de Lisboa no guia vermelho. “Ficámos muito felizes”, conta Koerper, que ficou a saber um dia antes graças a um bom contacto, festejando com a equipa e os sócios no Ramiro. O anúncio oficial confirmou a informação, “era verdade, e a estrela ajudou-nos ainda mais”. Ganhar uma estrela tão rapidamente foi para si um sinal de que estava “a fazer as coisas bem”. Também entre o público português houve um “aumento de clientes e de faturação”. Quanto mais restaurantes distinguidos com esse prémio, “melhor para todos, porque que existe um turismo” de aficionados de restaurantes com estrelas.
Miguel Júdice notou que, com o Eleven e as criações de Koerper – fechou o El Girasol em 2005 -, se 'cozinhava' algo especial para a cidade. “Hoje, restaurantes deste tipo abundam, mas na altura teve alguma dose de inovação”, afirma, acrescentando que o restaurante “ajudou a começar a criar público e a formar cozinheiros que depois seguiram o seu caminho e outros projetos, muitos deles próprios”. Koerper concorda. “Quando cheguei aqui, ainda não havia nada. O Avillez ainda não existia, o Vítor Sobral começou a fazer as suas coisas no Bela Vista. Estava um francês no Pestana da Ajuda e dele falava-se um pouquinho, o Ritz tinha o seu buffet de almoço, e pouco mais. Só quando o Avilez foi estagiar no El Bulli começaram as [outras] coisas a acontecer em Lisboa. Com toda a humildade, porque não sou ninguém, quem vale são os que estão atrás, acho que há uma Lisboa antes de Joachim e uma Lisboa depois de Joachim. Depois de mim vieram muitos jovens que se inspiraram um pouco em mim. Temos o Ricardo Costa, com duas estrelas no Yeatman, que trabalhou comigo na Quinta das Lágrimas e no El Girasol, e é quase um filho para mim. Temos o José Lopes no Bon Bon, que trabalhou aqui cinco anos. O chef Kiko passou aqui como estagiário, e muitos mais. Isso deixa-me um pouco orgulhoso. Muitos começaram a pedir para estagiar aqui”, conta Koerper.
Lagostim com joelho de porco (eisbein), abacate e gengibre
Quem entrava para a equipa aprendia “novas técnicas e instrumentos” e absorvia as ideias do chef. “Mostrava como eu fazia e como não se devia fazer”, não só ao nível da confeção, também na apresentação cuidada dos pratos e no serviço. Koerper “trouxe gente” para orientar a formação no serviço e cuidar que nada falhasse. E o “problema do pessoal ainda não existia como hoje”, o que também ajudava... A veia formativa não cessou e sublinha que os jovens que tem na equipa atual “têm valor”. “Quem cozinha são eles, só lhes digo como fazer, oriento. Comunico com eles todos os dias e pergunto o que acham. Não acham melhor assim? Escuto todos e penso primeiro, antes de decidir. Algumas vezes deixo-os criar, por exemplo no menu do almoço. Dando mais liberdade, crescem um pouquinho e ambientam-se melhor”, conclui. O sub chef João Sousa confirma: “É uma cozinha criativa, não retrógrada, e temos liberdade total para expor. Ele depois seleciona ou não as nossas ideias. É uma pessoa super aberta, mesmo com a idade que tem, e tudo é válido. Acho que é a melhor experiência, fazemos tudo da melhor forma e ele depois ajuda-nos, dá-nos a direção a seguir e fica tudo muito mais fácil”. O sucesso manteve-se com a conquista, em 2006, do primeiro Garfo de Ouro pelo Boa Cama Boa Mesa, na altura o galardão máximo que o guia do Expresso atribuía aos melhores restaurantes do país.
Joachim Koerper
Resiliência e inspiração
O Eleven superou a crise financeira de 2007-2008, perdeu e reconquistou a estrela, e ultrapassou a pandemia sem despedir, apostando em estratégias como os piqueniques e o delivery, “que não davam para ganhar dinheiro, mas davam para pagar a luz” e manter aberta a casa. A resiliência foi recompensada com o facto de 2022 ter sido “o melhor de sempre”, revela o chef. O espaço não sofreu grandes alterações, colocaram-se apenas os atuais quadros e uma “mesa do chef para até 12 pessoas”, com separadores. De assinalar ainda o rooftop para eventos e a corrente renovação da fachada.
De trato afável e simpatia natural, Joachim Koerper diz que gosta de ler e de desporto, embora não pratique. Quando pode e há um jogo importante, vai ver o Benfica ao estádio: “Era uma condição para firmar contrato”, brinca dando uma enorme gargalhada. Mas aquilo que mais o satisfaz é a gastronomia e é nas viagens, sobretudo a voar, que se inspira e tem tempo para pensar. Recentemente, debatia-se sobre o tamanho de uma ostra, equacionando se a grande dimensão não iria intensificar demasiado o sabor do prato. “Quando vejo um produto num lugar, isso ajuda-me a pensar e dá-me ideias”. Em Porto Covo fixou-se nos “pastos de cordeiro e nos queijos que lá fazem”.
Koerper assina as criações com um cubinho de tomate, exceção feita aos pratos de trufa, que “não combinam” com o fruto. É assim desde o período do cirandar pelo mediterrâneo, onde também “crescem legumes, verduras e tomates excecionais”. Criou a assinatura porque “primeiro se come com os olhos”. Sobre o tomate vem uma folhinha verde, que pode ser funcho num prato de peixe e cerefólio ou salsa numa carne. A sua gastronomia “procura sempre inovar, mas sem exageros, mantendo uma linha de cozinha clássica, mas criativa”, salienta Miguel Júdice.
Salmonete de Moraira com ervilhas e açafrão
Além da carta, são cinco os menus principais do restaurante Eleven (Rua Marquês de Fronteira, Jardim Amália Rodrigues, Lisboa, Tel. 213862211). O Menu Eleven (€170 ou €195 com Wagyu A5), considerado “o menu estrela” do restaurante, e ainda o Menu Amália Rodrigues (€138), o Menu Trufa Preta (€209), o Menu Lavagante Azul (€219) e o Menu Vegetariano (€138). Não esquecer o Menu Business Lunch Amália Rodrigues (€70, direito a três pratos). Todos estes preços sem bebidas incluídas. Koerper não aprecia ouriço-do-mar, embora tenha feito “uma exceção” recente e inserido na carta, e também não gosta de rim. Aprecia, em contraponto, a “excelência de um bom porco preto biológico, que há pouco, o peixe, a vieira, o lavagante e a trufa, que não pode faltar”. Gostava de explorar mais a carne Wagyu A5 e o Caranguejo do Alasca, que “está muito esquecido”.
Emblemas à mesa
Há pratos intemporais, associados a momentos específicos do percurso do chef. O “Salmonete”, por exemplo, liga-o à qualidade deste peixe que se comprava na lota de Moraira. Para a “Barra de ouro”, à base de foie gras com ameixa de Elvas, constar das suas cartas, foi preciso “lutar pela receita” na Suíça junto de um chef 'difícil', até a conseguir. “O meu dia no mercado de Singapura” junta o leitão lacado que em Coimbra, nas idas à Quinta das Lágrimas, à manga, camarão e ao fried rice saboreado nos mercados de Singapura. “E como tem especiarias, conta um pouco a história dos Descobrimentos desde o Terreiro do Paço”, explica o chef. Há ainda o pombo, o porco, o “Carré de cordeiro com ameixa” e os doces: “A minha versão do pastel de nata com a sua bica” é “um grande sucesso” e reinventa o icónico pastel lisboeta sem esquecer o café, limão e a canela, “porque a bica se mexia com a canela”. Ainda nas sobremesas, realce para a “Lisboa Antiga”, uma sinfonia de ginginha e chocolate. A chef residente de pastelaria Vanessa Rosa, ficou fã do “Souflé de maracujá” e da combinação de temperaturas, da leveza do souflé e do “gelado bem provocante e interessante”. Sobre o chef, diz que ele consegue fazer uma fusão das influências de viagem com produtos portugueses, levando as pessoas “despertarem para coisas diferentes, que não comem em lugar nenhum”.
Foto antiga de Joachim Koerper
Em 2021, Joachim Koerper completou 50 anos de carreira e o Eleven assinalou a longevidade com um menu especial contemplando clássicos da sua autoria. A sua criatividade atrai regularmente António Costa. Das vezes em que o serviu, o maître João Correia notou que o primeiro-ministro pediu à carta e “sempre peixe”. Lembra-se também do ex-primeiro ministro Pedro Passos Coelho, que fez um menu de almoço com “Vieira grelhada”, o “Lombo de robalo braseado” com texturas de abóbora e puré de cenoura e, a rematar, “O mapa de Portugal em queijos”, tendo ficado “muito agradado”. Paulo Portas também já apareceu, Herman José “vem todos os anos, quando é lançado o menu da trufa”. Apareceram ainda a cantora brasileira Gretchen, a atriz Jane Seymour, Jardim Gonçalves (cliente habitual) e aqui se acolheram grandes eventos, como um jantar de gala da Chanel e duas galas de entrega de prémios do Benfica.
Para Joachim Koerper, é importante o apoio da esposa, Cíntia, não só no dia a dia e na criação, mas até na crítica: “Não penso que tudo o que faço esteja bem. É bom que um olhar de fora te diga que isto não está muito bem, senão pensamos que somos os melhores e às vezes não é assim”. O chef já não sai tanto de casa, mas por vezes Lisboa ainda o surpreende, como quando aceitou o convite para um passeio de barco no rio Tejo, com aperitivo e ao pôr do sol. “Descobres sempre algo mais em Lisboa e nos arredores”, saúda. Continua a reinventar-se e a olhar para Portugal com curiosidade: “Não somos um restaurantes português, mas colocar algo português no menu faz sentido e é um pequeno reconhecimento de como amo Portugal e os portugueses. Sou português... Penso em português, sonho em português, os nossos melhores amigos são na sua maioria portugueses. Lisboa é a minha casa”.
Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, fazemos uma viagem no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.
Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:
A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.
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