1989: o ano em que Alcântara ganhou um restaurante para o mundo
Eneko Lisboa
Francisco Nogueira
Depois da revolução na noite gerada pelo Plateau e pela discoteca Alcântara-Mar, em 1989 os sócios Arminda Faria e Pedro Luz abrem o Alcântara Café. Foi neste restaurante de grandes dimensões e arquitetura singular, com estátuas e árvores no interior, que a chamada nouvelle cuisine ganhou expressão em Lisboa. Anthony Quinn, Enrique Iglesias, Mick Jagger, Meryl Streep e Jeremy Irons foram clientes. Hoje, no espaço do antigo Alcântara Café funcionam o Basque e o restaurante de fine dining Eneko Lisboa, com uma Estrela Michelin. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, vamos viajar no tempo, com o apoio do Recheio, para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal
Arminda Faria sentia que não tinha “nada a ver” com o que conhecia em Portugal. Queria ver mundo. A seguir ao 25 de abril de 1974, saiu do país com uma autorização do pai numa folha de papel azul. Esteve em Paris e em Barcelona, já com um curso de “estilista de fotografia”, ou diretora de arte. De férias em Lisboa com o ex-marido, um fotógrafo, analisa o mercado e encontra uma cidade ainda muito cinzenta. Quando regressou a Portugal, acabou por abrir uma agência de modelos. A dada altura, tenta mostrar a noite de Lisboa ao amigo Francisco Moreno, o “Paco”…
Além do Trumps e do Frágil, havia a Primorosa d'Alvalade, além de um espaço no Centro Comercial Imaviz onde “só se entrava acompanhado” e o Banana Power. Para Arminda, o panorama era elitista: “As pessoas olhavam para si de cima para baixo e parecia que você estava num mercado. Éramos escolhidos, como gado, e isso eu não suportava porque vínhamos de uma cidade em que as pessoas pagavam, entravam e não havia nada para ninguém”. Desafiada por Paco, abrem então o Plateau em tons de preto, branco e quase sem decoração. Entretanto, Pedro Luz adquire a quota de Francisco e entra na sociedade. No Plateau realizavam-se festas temáticas “com bastante frequência”, indica Pedro Luz. O espaço foi evoluindo e surpreendendo: até “banhos com mangueiras de incêndio” aconteceram, ilustra Arminda Faria.
Percorra a galeria que recorda momentos marcantes do Alcântara Café:
Em 1987, Pedro e Arminda elevam a fasquia e abrem a discoteca Alcântara Mar. “Gosto muito do ar industrial dessa zona e tive a sorte de encontrar aquele espaço”, recorda Pedro Luz. “A inauguração excedeu todas as expectativas. Nunca me irei esquecer pelo ambiente, a quantidade de pessoas que foram e a alegria de estarem num sítio completamente diferente do que tinha havido em Lisboa até à altura”, acrescenta. O Alcântara Mar era um trampolim na movida lisboeta. “Se o Plateau foi um boom como discoteca e género musical, o Alcântara Mar estava dez números acima”, reconhece Arminda. A diferença começava no espaço, com os veludos vermelhos, capitonier, lustres, a linha 'pesada' e contemporânea. A controlar a música estava Tó Pereira, o DJ Vibe, e rodavam discos dos tops de Londres e Nova Iorque.
A proposta do Alcântara Mar, onde atuou Samantha Fox e Paulo Gonzo cantou blues, era diferente: sem dia de fecho, a funcionar até às 6h00, “absolutamente” agregadora e de liberdade. “Contrataram-se bailarinos que dançavam em cima das colunas e batiam com 'chaves de canalizador' nas garrafas de gás das cervejas. Caía uma bandeja de copos ao chão e aquilo continuava. As miúdas entravam disfarçadas com as roupas das mães, iam à casa de banho, tiravam a roupa, transformavam-se e subiam para cima das colunas. Falsificavam BI's para entrar... Era uma loucura! Na casa de banho havia uma cascata de água e os homens urinavam contra o espelho. Vinha todo o género de pessoas: o homossexual, a drag queen, o hetero e todas as classes sociais, até o senhor doutor e os que iam ver como é que era. Não havia nada como o Alcântara Mar, que abriu Lisboa para o mundo”, recorda Arminda. De Miguel Esteves Cardoso e Carlos Quevedo ao atual primeiro-ministro, António Costa, todos por ali passavam.
Restaurante singular Em 1989, os sócios da discoteca abrem o restaurante Alcântara Café na área ao lado. “O António Pinto, que é como meu irmão, era um chef super conceituado e arquiteto de interiores. Viveu em Bruxelas mais de 40 anos e, na altura, aceitou o convite para ajudar a fazer a decoração e o menu”, conta Pedro Luz. O espaço era de arquitetura singular e ar industrial: espelhado, amplo e de enorme pé direito, com colunas em ferro, grandes ventoinhas, veludos, árvores, jarrões de flores e estatuária de torsos clássicos e a majestosa Vitória de Samotrácia, “feita em França por alunos da Escola das Belas Artes”. “Se é para fazer um restaurante, que seja a sério”, pensaram os sócios, inspirados pelas viagens e os “sítios espetaculares” que conheciam. “Visitei locais em Paris em que me caía o queixo e achava que Lisboa também merecia”, defendia Arminda. Tons bordeaux e um verdete especial pintavam a sala. Sob a mesa de bilhar, à entrada, havia uma piscina de cobertura transparente e uma ponte ligava ao Alcântara Mar.
Neste local único dava-se importância à luz, personalizavam-se copos, havia pratos de sobremesa marmoreados e mesas sem toalhas. “As pessoas entravam aqui e ficavam paralisadas. Eu própria sentia-me intimidada, mesmo vendo a obra dia-a-dia. Eram pratos de 32 centímetros com comidinhas empratadas e havia quem estendesse os guardanapos para pousar o prato. Se puséssemos o couvert, perguntavam o que era o couvert... Tínhamos um talher de peixe que parecia uma colher e não sabiam para que é que servia... Era complicado. Não era por causa disso que deixávamos de ter gente, mas todos os dias tínhamos problemas”, lembra Arminda Faria.
Staff
Nouvelle cuisine Os funcionários fardavam-se a rigor e, excetuando a mise en place dos molhos, a confeção fazia-se na hora. António Pinto elaborou a ementa e o conceito foi apresentado a Vítor Sobral, que aqui trabalhou alguns anos. À luz da nouvelle cuisine, da influência francesa, valorizava-se a leveza das criações e o cuidado na apresentação. Cada prato tinha o seu molho e a confeção era meticulosa. Para fazer o Confit de pato, quem saía às 2h00 deixava panelas a cozer para os que entravam às 9h00 retirarem. “Era uma técnica de pormenor impressionante. Para servir com qualidade, todos os dias era uma maratona. Coisas como guardar a faca ao cliente, ter um moedor de queijo parmesão para o cliente 'x', porque ele gostava de o moer na hora, requisitar pratos que o cliente gostava e visitar a cozinha... Tudo isso era uma batalha diária”, descreve Arminda Faria.
O desafio estendia-se à gastronomia: “Havia clientes que reclamavam do bifinho pequenininho, achavam que estávamos a roubar na quantidade e não queriam pagar. Tivemos de começar a aumentá-lo...”. Com os preços também acontecia, ignorando que “todos os dias” se ia ao aeroporto, ao voo da Sabena (antiga companhia aérea belga) buscar mini-legumes ou produtos como foie gras. Esta cozinha requeria certos ingredientes e condimentos “que não existiam” em Portugal, mas, apesar das dificuldades naturais devido à novidade do projeto, Pedro Luz realça que “a reação foi ótima, toda a gente gostou do Alcântara Café e ainda hoje falam nisso”. Para si, “tanto o Alcântara Mar como o Alcântara Café puseram Lisboa no radar, no mapa, enquanto cidade em que aconteciam coisas, porque antes disso não acontecia muita coisa, à exceção do que fez o grande Manuel Reis”. Servia-se ao jantar e algumas sugestões tornaram-se clássicos como Confit de pato, o Pato lacado, os Rolinhos de linguado com puré de batata, alho francês e molho de ostra, os Carpaccios de salmão e de carne, a Sopa de cebola e a Salada de fígados de aves, e ainda o Bife à Alcântara Café com batata frita, o Bife às três mostardas e o Bife Tártaro.
Glamour no Alcântara Café
Mick Jagger, William Hurt e Meryl Streep O rasgo concetual do Alcântara Café alimentava a imprensa, atenta às passagens de modelos, ao glamour das festas, lançamentos de carros e aos jantares especiais que aí decorriam. A proximidade a Francisco Pinto Balsemão, um cliente assíduo, tornou possível celebrar aqui um aniversário da SIC. Noutra produção SIC, quando saiu o primeiro CD de Enrique Iglesias, houve direito a jantar no restaurante e a atuação no Alcântara Mar, tendo o cantor recebido o disco de ouro pela mão de Catarina Furtado. Ao Alcântara Café vieram vedetas como Michael Stipe, dos R.E.M., os Scorpions e Mick Jagger. Terá sido numa segunda visita que o vocalista dos The Rolling Stones comeu Pato lacado com batatas fritas: “Se fosse em Espanha, ele entrava e arrancavam-lhe os cabelos. Aqui ninguém ligou nenhuma”, conta Arminda. O guitarrista dos Stones, Keith Richards, deu uma generosa gratificação a uma empregada do Plateau, onde “beberam champanhe e garrafas de vodka do melhor que havia”. No lançamento da Virgin Vodka, o fundador do Grupo Virgin, Richard Branson, “deu 700 contos” de gorjeta ao chef. Rui Veloso, Carlos Paredes e os Xutos e Pontapés eram clientes regulares e, numa das suas visitas, Amália Rodrigues (que aparecia com Maluda) jantou com Anthony Quinn, trocando lembranças. Pedro Luz diz que Quinn “era uma figura difícil de esquecer”, pelo carisma. Para Lili Caneças, o restaurante era “um must”, lê-se no livro de honra.
Da Sétima Arte e televisão estiveram, entre outros, Ricardo Pereira, Joaquim de Almeida, Pedro Lima, Rogério Samora, Herman José, Artur Albarran, Margarida Marante (fã de Confit de pato) e Jeremy Irons, que foi “muito simpático”. O realizador Pedro Almodóvar deu um ar da sua graça, tal como William Hurt, que veio sozinho, de “chinelo de dedo e saco ao pendurão”: era um dos favoritos de Arminda que, quando o viu, “quase ia desmaiando... (risos)”. Meryl Streep e António Banderas fizeram aqui um jantar “muito low profile”, no fim das filmagens d'A Casa dos Espíritos.
Festas memoráveis
Philippe Starck, Jean Paul Gaultier e Soares Noutro registo, Philippe Starck sentou-se na ponta do bar, pediu uma garrafa de vinho verde, algo para comer e fez um desenho no livro de honra, atrás da cortina do bengaleiro, com a mensagem “centro del mundo”. Jean Paul Gaultier 'vestiu' uma garrafa de champanhe com um espartilho e muitos outros nomes se podiam mencionar, como a ex-modelo Cláudia Mergulhão, Fátima Lopes, Augustus, Manuel Alves, Tomás Taveira, que ficava “sempre numa mesa redonda”, José de Guimarães, João Cutileiro, Ayrton Senna e Joe Berardo, que adorava os “Rolinhos de linguado”.
Mário Soares jantava muitas vezes no Alcântara Café e “nem guarda costas trazia”. Um dos jantares, a 28 de agosto de 1989, juntou elementos do ex-MASP. Certa vez, Marcelo Rebelo de Sousa “vinha de Paris cheio de fome, mas chegou atrasado” a um jantar. Cavaco Silva surgiu uma série de vezes, incluindo em família, bem como Freitas do Amaral. Jorge Sampaio “lançou aqui a campanha para a presidência da República e, quando venceu, fez cá um jantar para 60 pessoas”, revela a anfitriã. No meio do furor, também sucediam insólitos de fartura... Depois de beber a cerveja, um cliente “tinha a mania de ir para a casa de banho, despia-se e ficava nu com a porta aberta”. Outro, desconhecendo que Arminda era sócia, ameaçou mandar despedi-la por não o deixar atar o guardanapo à cabeça. “Faça favor, eu até já estou cansada de estar cá a trabalhar... Mande despedir-me”, ironizou a destinatária do aviso.
Eneko Lisboa
Francisco Nogueira
O nascimento do Eneko Lisboa O Alcântara Mar acabou por fechar e, em 2013, foi a vez do Alcântara Café. Arminda Faria continuou proprietária da sala, que passou a receber eventos. Em 2017, tornou-se atrativa para o grupo Penha Longa que, a par da operação no resort em Sintra, desenvolvia um relevante segmento de catering e eventos e procurava um espaço adicional em Lisboa. “Alcântara fazia sentido pela localização, mas também o Alcântara Café, pela história e o impacto do espaço. Muitas pessoas lembram-se de ter estado lá a jantar com os amigos. Alguns usavam depois a ponte que dava acesso à discoteca. Muitas vezes, quando realizamos as provas de menu, eles fazem questão de ir à ponte e tirar fotografias”, contextualiza Jason Silva, diretor de operações do Penha Longa Resort.
O Penha Longa acordou com Arminda uma concessão do espaço e começou a organizar eventos, dos corporativos aos casamentos. Porém, quis também expandir o segmento gastronómico, que já contava com outlets de sucesso no resort, como o LAB by Sergi Arola e o japonês Midori. Jason conheceu o chef basco Eneko Atxa, que “ficou apaixonado” pelo espaço do antigo Alcântara Café. Primeiro, a ideia era fazer “quase um cabaré, muito festivo, em que os empregados de mesa teriam trajes e haveria performances”. Todavia, o projeto alterou-se e nasceram dois restaurantes: o Basque, mais casual, e o Eneko Lisboa, de fine dining e na linha do Azurmendi.
O Basque e o Eneko Lisboa (Rua Maria Luisa Holstein, 15, Lisboa, Tel. 215833275) abriram em 2019, separados por uma estrutura móvel, mas respeitando a identidade e memória do local. Servem ao jantar e têm balcões de cozinha aberta. No Basque reinam os pratos de partilha e no Eneko Lisboa há dois menus de degustação: o Erroak "Raízes" (€129, ou €214 com vinhos) com pratos emblemáticos, e o Adarrak “Ramas” (€159, ou €274 com vinhos) orientado para as novas criações - pode ainda fazer degustação vegetariana. A viagem inicia-se na zona da antiga mesa de bilhar com uma espécie de 'piquenique' de amuse-bouches. Até ao desenlace, delicie-se com sugestões como o Lavagante assado e descascado, com molho, manteiga de café e cebola roxa de Zalla, ou o Salmonete em dois serviços. Em 2020, o Eneko Lisboa conquistou uma Estrela Michelin, seguindo os exemplos do LAB e do Midori. “De certa forma foi uma surpresa ter sido tão rápido. O grupo passa a ter três restaurantes com estrela Michelin, mas o mais importante é fazer a diferença pela qualidade do serviço e do produto, tentamos fazer tudo para que os clientes voltem”, remata Jason Silva.
Estátua de Vitória Samotrácia é uma das peças icónicas do Alcântara Café ainda no espaço
Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, fazemos uma viagem no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.
Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:
Em 1988, o Grupo Jerónimo Martins tornou-se no maior acionista do Recheio, que então detinha quatro lojas em Portugal. Entrava, assim, no mercado de distribuição alimentar grossista e a sua trajetória de crescimento “ganhou uma nova força”. Foi, todavia, no ano seguinte que a Jerónimo Martins adquiriu os restantes 40 por cento da cadeia Recheio, assumindo a totalidade da estrutura acionista da companhia e cimentando a sua posição neste mercado. Ainda em 1989, tomaram-se outras decisões estratégicas no seio da Jerónimo Martins: a família Soares dos Santos comprou as participações dos herdeiros de Elísio Pereira do Vale, passando a controlar a totalidade do Grupo, que entra também na Bolsa de Valores de Lisboa, o que lhe permite aumentar as capitalizações.
A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.
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