50 Anos, 50 Restaurantes

1988: o amor proibido que fez nascer um restaurante abençoado em Fátima

Restaurante Tia Alice, em Fátima
Restaurante Tia Alice, em Fátima

A incrível história de vida de Maria Alice Marto dava um filme. O pai opôs-se à relação com o grande amor da sua vida e colocou-a num colégio de freiras durante sete anos. Porém, o coração bateu mais forte: casou por procuração, embarcou sozinha para Moçambique e aí viveu 17 anos com José Gomes dos Reis. Regressou a Portugal e com a ajuda da família, abriu em 1988 o restaurante Tia Alice. Depois de um artigo de José Quitério, que o descreveu como o “quarto segredo” de Fátima, esta casa de bem comer “nunca mais teve sossego”. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, vamos viajar no tempo, com o apoio do Recheio, para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal

Aos 13 anos, Maria Alice Marto viu pela primeira vez o rosto do futuro marido. De início, não gostou muito de José Gomes dos Reis, que era mais velho. Simpatizava mais com o irmão, que tinha morado na mesma casa arrendada pelo pai de Alice, António Marto. Até que um dia, na volta da apanha da azeitona, cativa-se pelo humor do novo inquilino. Quando chegaram a casa, o pai apercebeu-se do interesse e, sentindo que a ligação entre os dois podia perigar os planos de noivado que tinha para a filha, deu-lhe uma sova e nunca mais pôde ver José à frente. Cumpridos 87 anos, o olhar verde cristalino de Alice recorda a história desse amor proibido e da sua vida, que se confundem com a do próprio restaurante Tia Alice, local de devoção gastronómica em Fátima.

Na ânsia de separar o casal, António coloca a filha em casa de uns amigos, em Lisboa. Para todos os efeitos, ela tinha ido para a Madeira. Certa vez, tocam à campainha... Alice abre a porta e um miúdo entrega-lhe uma carta de José. Espreita, então, da varandinha e emociona-se ao vislumbrar o pretendente, ao fundo. Com 14 anos, o destino seguinte foi o Colégio Andaluz, em Santarém. Aí fica sete anos sem ver o amado que consegue descobrir de novo o paradeiro de Alice, mas acaba por partir para Moçambique, mantendo a comunicação. Quando Alice saiu do colégio de freiras, aos 21 anos, tratou do enxoval e casou-se por procuração. O pai não a deixou ficar em casa e “nunca perdoou” o casamento. “Havia outros que queriam, mas eu não gostava de mais ninguém, era só dele”, justifica Alice Marto.

Percorra a fotogaleria do restaurante Tia Alice:

A protagonista desta história de contornos literários partiu para Lisboa e sozinha, sem “medo nenhum”, embarcou para uma viagem de 23 dias rumo a Moçambique. A bordo, enjoa e, quando se debruça para vomitar, ainda lhe cai um vestido novo à água. Durante a viagem, resiste aos avanços de outros rapazes – para gáudio de José, que à distância controlava o percurso – e sobressalta-se com um telefonema, mas era apenas José a dizer que estava à sua espera. O desembarque foi indescritível. “Eu... estava feliz”, confessa, com brilho no olhar e a voz a fugir. Viveu em Moçambique cerca de 17 anos e aí criou quase todos os filhos. José gostava de receber gente em casa e a esposa era “muito zelosa”, queria que tudo saísse bem e que os convidados gostassem do que preparava. Alice não sabia quase nada de cozinha, mas levou um livrinho de receitas, trazido do Colégio. Com força de vontade, aprendeu e descobriu os segredos do fogão. “Já tinha esse jeito e tudo lhe saía bem, o talento é inato”, confirmam os filhos – são seis e todos a ajudaram a erguer e a manter o restaurante, até hoje.

Aníbal e Maria Cavaco Silva com Alice Marto

Novo restaurante em Fátima

Alice e os filhos voltaram para Portugal em 1973, de férias. Tinham de vir um ano antes, porque os anos letivos não coincidiam, e matriculou-os nos colégios. Passam cá o 25 de Abril de 1974 e o marido, ainda em África, pensou que podia trazer os pertences lá de casa, mas o cenário mudara. Apontaram-lhe uma arma, junto ao rio, mas foi poupado porque o nome não constava na lista que chegou aos militares. Veio também de férias e ainda voltou a África mais três anos, ao contrário do resto da família. Apesar da posição e decisões do pai, Alice cuidou de António até este falecer, quase aos 91 anos. De herança ficou com a casa onde nasceu e onde continuou a receber muitos familiares. Os sobrinhos elogiavam-lhe os cozinhados e incentivam-na a fazer um negócio: “Ai tão bom tia Alice, tão bom tia Alice, tão bom tia Alice... Ó tia Alice, tem tanto espaço, por que é que não faz um restaurante? Cozinha como ninguém!”. A tia nem queria ouvir falar dessas 'preces', mas acabou por ouvir também os filhos. “Eu dizia-lhe: Mamã, faz só o que sabe fazer, não vai inventar nada. É o que faz quando recebe alguém. Íamos fazer um menu muito curtinho, com três pratos de peixe e três de carne. Seria uma casinha modesta, um conceito muito familiar”, refere Maria Lúcia Marto.

Retrato da fundadora, Maria Alice Marto, numa das paredes do restaurante

A 21 de outubro de 1988, Maria Alice Marto abriu o restaurante Tia Alice. Era um recomeço, aos 53 anos e com poucas posses. Começou com “muita timidez”, preocupada com a opinião do cliente, “mas à sala é que não queria ir, nem hoje (risos)!”. A elegância simples do espaço assentava em elementos naturais: as paredes em pedra, o chão em madeira, toalhas e guardanapos de linho. Nos detalhes, como flores bordadas em ponto cruz ou os balões de café na mesa para o cliente o preparar, estava a autenticidade. O empréstimo feito exigia contenção nos gastos e criatividade para criar um ambiente sem luxos, mas com algum requinte. Os pés em ferro das primeiras mesas, por exemplo, vieram do ferro velho e eram de um escritório, e os tampos fizeram-se à medida, em madeira prensada, sendo forrados para amortecer os objetos e disfarçados com as toalhas. As cadeiras iniciais compraram-se em segunda mão e eram todas diferentes, com coxins para dar conforto. No fundo, “o esqueleto era muito pobre, mas tentava-se enriquecer no detalhe”. Foram melhorando os materiais e equipamentos à medida das possibilidades.

A Igreja Paroquial de Fátima, onde foram batizados os Pastorinhos, situa-se em frente ao restaurante

A localização, ao lado do cemitério e numa estrada pouco movimentada, não era a melhor. E os locais desconfiavam: “Um restaurante? Mas ela nunca foi cozinheira, não sabe nada...”, ouvia-se dizer. Alice não esmorece, prossegue com a sua cozinha tradicional, depurando-a e valorizando a essência dos sabores. O apelido da cozinheira revela a ligação familiar entre a sua ascendência e a de Francisco e Jacinta Marto, dois dos três Pastorinhos de Fátima. Alice “sempre foi muito, muito, muito de oração”, buscando nela força e transmitindo esses valores à família. Já a trabalhar em Portugal, levantava-se às 6h00, amassava o pão e caminhava uma hora até um convento de Irmãs onde assistia, por vezes, a uma celebração. Era o “tempo da massa fermentar”. Depois, voltava para tender o pão. Tinha também o costume de ir à missa com o marido e, por vezes, ainda arranjava tempo de ir matar e arranjar patos ou galinhas, para estarem “fresquinhos”, à espera do arroz de pato e da canja de galinha. Avessa a máquinas de descascar batatas e minuciosa no corte dos legumes, sempre deu muita importância aos caldos caseiros, “era o que dava sabor” à comida. Um dos filhos, António Marto, hoje também envolvido nos cozinhados, a par das irmãs Lúcia e Odete - Nuno Marto trata dos vinhos e da gestão e Filipa Marto recebe os clientes -, continua a confiar na sensibilidade da mãe para acertar os temperos. Todos os dias Alice passa na cozinha.

Bacalhau gratinado, a especialidade maior do restaurante

O quarto segredo de Fátima

No começo, e apesar do empenho, não criaram grandes expectativas. Os clientes não abundavam. “Diziam que a sala estava muito vazia, que não havia nada para olhar. Como não havia TV, as pessoas acabavam por ter uma refeição mais íntima e concentravam-se mais na comida. Trabalhávamos a cozinha para que fosse muito boa”, comenta-se na casa. Estava o restaurante aberto há um ano quando recebe duas visitas seguidas do crítico gastronómico do Expresso, José Quitério. “Ele chamou-lhe o quarto segredo de Fátima e fez uma reportagem por causa do conceito novo, que não tinha a ver com nada do que existia na zona. O David Lopes Ramos também gostou e publicou no Público. O José Quitério tinha muito impacto entre as pessoas que gostavam de descobrir restaurantes. Aquilo sai num sábado e não estávamos preparados para a escada cheia, no domingo. A partir daí, foi uma loucura, um boom, a escada estava sempre cheia e a casa nunca mais teve sossego. Foi o José Quitério que fez esta casa”, garante Lúcia.

Restaurante Tia Alice já foi distinguido com Estrela Michelin e Garfo de Ouro
Filipe Pombo

Pratos de conforto e distinções

O restaurante esteve quatro anos sem menu. Apresentava diretamente ao cliente o que havia no dia. Aqui, os comensais procuram sabores de memória, de confeção paciente, rigorosa. O pão coze-se todos os dias em forno a lenha, barra-se com manteigas e pode acompanhar a Morcela de arroz assada (€8,50), típica da região. Os Pastéis de bacalhau são caseiros, o Queijo de ovelha amanteigado Serra da Estrela (€7,50) vem de um produtor exclusivo, e, nas entradas, há ainda o Presunto Ibérico Bolota Maldonado (€18) e o Lombo Pata Negra Maldonado (€12). Como pratos principais, destaque para o Bacalhau gratinado (desde €38), indicado para duas pessoas, que leva batata mal frita, cebola, bacalhau e molho Bechamel, podendo adicionar camarão. Prove a Açorda de bacalhau ou de camarão (€19), feitas individualmente: “Não há nenhum prato que se faça uma porção e dessa porção se tirem doses, todos são feitos no momento e com tempo”.

Considere ainda o Arroz de robalo e tamboril (€52), o Arroz de pato no campo (€38), ambos preparados para duas pessoas, e a Vitela assada (€19,50) no calor do forno a lenha onde se coze o pão. Alice aprendeu a receita da Chanfana em forno a lenha (€19,50) com uma pessoa de Mortágua, e deu-lhe um toque pessoal. A preparação demora três dias, passando pela limpeza das cabras, o tempero individual e delicado de cada peça, o acondicionamento das caçoilas em camadas de carne e temperos, e uma cozedura lenta em forno de lenha com vinho tinto, durante sete horas. E “não dura muito tempo...”, graceja a tia Alice. Nas sobremesas, desde o primeiro dia que se serve o Gelado de natas, chocolate quente e amêndoa torrada (€7,50). Em alternativa, tem o Bolo mousse de chocolate com gelado e o Bolo do convento (€7,50).

As estrelas e os prémios

A dada altura, a mestria da Tia Alice chama a atenção dos inspetores do Guia Michelin, que distinguiram o restaurante com uma Estrela Michelin em 1993, mantendo-a por três anos. O menu reduzido e o facto de não ser muito elaborado ou arrojado terão influenciado a perda da estrela: “Deixámos de estar na moda...”. A vocação do restaurante era outra, a cozinha tradicional. “Não vamos inventar, é o sabemos fazer. Vamos tentar fazer o melhor possível e que a comida seja muito saborosa e tenha autenticidade, isso é o nosso foco”, aponta a família. Outros prémios se têm somado, como o Garfo de Ouro do guia Boa Cama Boa Mesa e a distinção “Mesa com Mérito”, em 2020. Mais recentemente, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, cliente de longa data deste restaurante, condecorou a Tia Alice com o grau de Oficial da Ordem do Mérito Empresarial, Classe do Mérito Industrial, um reconhecimento que a deixou “muito feliz”. “No discurso, o presidente mencionou a resiliência da minha mãe, o facto de nunca ter baixado os braços depois de vir de Moçambique, em 1973. Deu significado ao facto de uma pessoa, tendo vindo sem nada, continuar a criar os filhos e ter recomeçado de novo, abrindo um restaurante aos 53 anos”, comentou o filho, António. “O Sr. Presidente é bastante atencioso, adora a minha mãe e já é quase da família”, acrescenta a irmã Fátima Clemente.

José Tolentino de Mendonça é mais um dos ilustres frequentadores do restaurante em Fátima
Tiago Miranda

De Júlio Pomar a Tolentino de Mendonça

Da casa era também Mário Soares, que vinha muitas vezes e aqui festejava os aniversários. Por norma, passava pelas salas e cumprimentava as pessoas, mas um dia entrou e, como recorda António, “assim que viu o general Ramalho Eanes, deu meia volta e foi para a outra sala, sem cumprimentos”. Muitos visitantes passam na cozinha para cumprimentar a anfitriã. José Sócrates veio quando era primeiro ministro, Cavaco Silva também apareceu e António Costa várias vezes, antes de ser primeiro-ministro, além de muitos ministros e presidentes de outros países: das Filipinas a São Tomé e Príncipe e ao presidente cessante da Colômbia.

A primeira personalidade a assinar o livro de honra foi José Saramago. Imensas figuras do teatro, cinema e artes plásticas se sentaram nestas mesas. Júlio Pomar comeu chanfana e ofereceu à equipa o desenho de uma cabra, com uma humorado escrito - “As cabras é que nos salvam!”. Pedro Cabrita Reis também se distraiu a desenhar, tal como José de Guimarães, que em 2009 deu os “parabéns” à Tia Alice e lhe desenhou um ramo de flores. Os arquitetos Souto de Moura e Siza Vieira também saíram satisfeitos do Restaurante Tia Alice (Rua do Adro, 152, Fátima, Tel. 249 531 737), tal como personalidades ligadas à Igreja, até pela proximidade ao Santuário de Fátima. Numa das visitas de José Tolentino de Mendonça, depois de ser cardeal, parece que “ainda estava mais simpático”. “Já temperei a chanfana com o Tolentino ao pé de mim”, revela a cozinheira. Maria de Lourdes Modesto “gostava muito de vir” ao Tia Alice e apreciava as Migas com couve, feijão e broa. Convidou a anfitriã a apresentá-las na Feira de Gastronomia na FIL. Alice considerava-a uma referência e “lia livros de cozinha com quem lê um romance”.

Chris de Burgh e Maria Alice Marto

Avillez, Chris de Burgh e Montserrat Caballé

Especial foi a visita de Chris de Burgh, que cantou o tema “Lady in Red” na cozinha do restaurante, escreveu uma dedicatória e autografou uma foto. “Gostei tanto de o ouvir...”, recorda Alice. O chef José Avillez considera o restaurante “um dos grandes templos da cozinha em Portugal”, lê-se no livro de honra, e muitos outros comensais já nele se saciaram, como Miguel Sousa Tavares, Fátima Campos Ferreira, o arquiteto Manuel Salgado, Victor Espadinha, Martinho da Vila, Simone de Oliveira, João de Deus Pinheiro, Maluda, Luís Represas, Maria Filomena Mónica e Helena Sacadura Cabral, que costuma dar “livros” a Alice.

Carlos do Carmo, que há 20 anos “devia uma visita” ao espaço, veio em 2008: “Depois do que aconteceu, vou tentar pagar os juros da minha dívida, que são grandes”, escreveu. A nível interno, faltaram Herman José e Amália Rodrigues, que “não entrou, porque o restaurante estava cheio”. No plano internacional, realce para Montserrat Caballé, Valentino e outro estilista, Domenico Dolce da dupla Dolce & Gabbana, que, ao que parece, gosta bastante de vir a Fátima. Rodeada pelo jardim florido do restaurante, a resiliente Alice Marto reapareceu graciosa, de sorriso terno e luminoso. É guardiã de saberes ancestrais, deliciosas criações e de uma vida cheia.

Arte sempre presente nas salas de refeições

Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, fazemos uma viagem no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.

Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:

1972: O restaurante bar de Lisboa que se transformou na segunda casa do Expresso

1973: O tributo a Eusébio e uma mesa para a eternidade

1974: O Pote que ajudou a cozinhar a Revolução dos Cravos

50 ANOS RECHEIO

1988: JERÓNIMO MARTINS ADQUIRE RECHEIO

Em 1988, um devastador incêndio no Chiado, em Lisboa, destruiu uma loja histórica do Grupo Jerónimo Martins na Rua Garret. Todavia, o sinistro “não abalou a determinação, a força e empenho do Grupo em continuar a crescer”, escuta-se num vídeo publicado na conta de You Tube. Tanto que, nesse ano, aproveitou uma “oportunidade única” para entrar no mercado de distribuição alimentar grossista, adquirindo quatro lojas da cadeia Recheio. A chegada do Grupo Jerónimo Martins foi um trampolim para o Recheio atingir a liderança de hoje, a trajetória de crescimento “ganhou uma nova força”, aponta o Recheio. João Fadigas, gerente da loja Recheio de Aveiro, não duvida que o nível da organização, o rigoroso controlo de custos e uma grande exigência na limpeza das lojas fizeram toda a diferença. “As lojas mudaram completamente a imagem e o nível de serviço ao cliente”, considera.

A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.

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