50 Anos, 50 Restaurantes

1986: O apogeu, a degradação e a nova vida do Mónaco, o mais famoso restaurante da Marginal

1986: O apogeu, a degradação e a nova vida do Mónaco, o mais famoso restaurante da Marginal

Na Avenida Marginal que liga Lisboa e Cascais, reinou durante décadas o restaurante Mónaco. Era frequentado pela alta sociedade e estrangeiros famosos, que aí também dançavam e se divertiam. Representante do glamour de outros tempos, foi palco de jantares dançantes, casamentos e festas de arromba. O nome inspirou-se no principado de Rainier e Grace Kelly. Em 1986, Mário Soares e Cavaco Silva tentam aí normalizar a relação política, num almoço a ver o mar. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, vamos viajar no tempo, com o apoio do Recheio, para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal.

Pouco antes de Mário Soares tomar posse como presidente da República, em 1986, telefonou a Cavaco Silva e convidou-o para almoçar. A relação com o novo primeiro-ministro, vencedor das eleições legislativas e do congresso do PSD na Figueira da Foz, nunca foi fácil. Não se tinham entendido para segurar o Bloco Central e Cavaco apoiara Freitas do Amaral na corrida à presidência, contra Soares. Este, questionava o currículo político de Cavaco e a “falta de uma visão externa e humanista”, que fosse além da cultura técnico especializada, lembra José Manuel dos Santos, ex-assessor cultural de Mário Soares. Não havia verdadeira empatia entre os dois. Ainda assim, Soares “reconhecia-lhe e respeitava-lhe a legitimidade” e almoçam a 26 de fevereiro no restaurante Mónaco, em Caxias, concelho de Oeiras. Tentavam apaziguar as relações, “trabalhar em conjunto” e entenderem-se no que era essencial para o país.

Cavaco Silva e Mário Soares em 1986
Rui Ochoa / Expresso

Apesar de ser um “pé de chumbo” confesso, Soares tinha memória de ir dançar ao Mónaco na juventude. Aí regressava quando queria sair de Lisboa ou fazer almoços politicamente discretos. Volta e meia, tornava aos restaurantes da Linha, como o Mónaco, que permitia ter uma “conversa tranquila e distendida”. Ainda por cima olhando o mar, de que Soares “gostava muito”, garante José Manuel dos Santos, que amiúde passeava com o presidente à beira-mar ou em jardins. As refeições eram, para o socialista, ocasiões de “distensão, convívio, conversa e trabalho, tudo ao mesmo tempo” e o almoço com Cavaco “correu bem, dentro do estilo de cada um”. Na obra “O Meu Tempo com Cavaco Silva”, Fernando Lima, ex-assessor de Cavaco, refere que “grande parte do encontro fora preenchido com a explicação do primeiro-ministro sobre os objetivos e problemas do Governo”. Reservou-se uma mesa junto à janela, vista mar, e a conversa decorreu num “ambiente de grande cordialidade”, revelou o próprio Cavaco Silva na “Autobiografia Política”.

“Mário Soares estava bem-disposto, irradiava simpatia, como ele sabe fazer, e voltou a dizer-me que o Governo podia contar com a sua solidariedade. Eu retribuí, afirmando que ele podia contar com um relacionamento correto e a colaboração leal do Governo, no respeito pelas suas competências constitucionais. […] O almoço correu tão bem que vi nele o início de uma nova fase do nosso relacionamento pessoal. Mas quando olhava para trás, para tudo o que se tinha passado depois do Congresso da Figueira da Foz, e tinha presente a habilidade política que era atribuída a Mário Soares, eu concluía que não podia ficar tranquilo”, descreveu Cavaco Silva. Os problemas agudizaram-se no segundo mandato de Soares.

Grace Kelly, Rainier do Mónaco e filha de ambos, Carolina, terão visitado o restaurante Mónaco

O ano de Rainier e Grace Kelly

Nos anos 80, o Restaurante Bar-Dancing Mónaco ainda recebia políticos e artistas, mas a glória de outrora era uma miragem. Sucedendo ao Restaurante - Casa de Chá Vela Azul, que operou no mesmo local, o Mónaco inaugura a 28 de julho de 1956, ano do “casamento do século” entre a atriz Grace Kelly e o príncipe Rainier III do Mónaco. Ao projeto do empresário galego Manuel Outerelo Costa, juntou-se em sociedade o maestro e compositor Shegundo Galarza. Importava-se um conceito em voga noutras paragens: um restaurante onde também se podia ver e ouvir conjuntos musicais e dançar.

A moda pegou e, em 1960, a imprensa descrevia o restaurante Mónaco como “um dos mais luxuosos da elegante orla marítima”, recebendo “as mais distintas personalidades” nacionais e estrangeiras, aponta um documento do Serviço de Arquivo Municipal de Oeiras. Sobressaía o serviço, o conforto, elegância e o ambiente selecionado. A atuação do conjunto de Shegundo Galarza prolongava-se até às primeiras horas da madrugada, “abrilhantando animados bailes num ambiente verdadeiramente simpático e acolhedor”. O jazz e sonoridades latinas, como o tango, animavam serões de atmosfera distinta, cultivando a “high-life”. Além da sala principal, onde ficava o palco, havia uma zona de bar e espaços privativos para banquetes e casamentos. Das grandes janelas contemplava-se o Atlântico.

Ao projeto do empresário galego Manuel Outerelo Costa, juntou-se em sociedade, o maestro e compositor Shegundo Galarza (na foto)
Arquivo A Capital

João Braga teria uns 15 anos quando se estreou no Mónaco, no início dos anos 60. Na altura, frequentava com pessoas mais velhas e encantou-se com o cenário: “Estar ali era uma maravilha e um sonho para um miúdo como eu. A orquestra era fantástica, a música boa, as pessoas muito bem vestidas e eu também ia com gravatinha. O pessoal todo muito bem fardado, era fantástico”, recorda o fadista. O “afável” Shegundo Galarza, ao piano, e os músicos que o acompanhavam, eram “todos muito bons” e transportavam os dançarinos amadores para “o clima especial” que viam nos filmes. Num fim de noite, acompanhado pelo piano de Shegundo e a bateria, João ficou na sala a cantarolar algo em inglês e francês.

O edifício degradado em Caxias

Gastronomia, José Cid e Tozé Brito

O Bife com molho pimenta, o Arroz de lavagante, o Salmão e o espadarte fumados eram pratos de sucesso. O mais vistoso, para João Braga, era a mise en scéne do Crepe Suzette. Quando é bem preparado, “é uma coisa ótima e digna de se ver, com a chama diante do cliente, e tudo a olhar...”, comenta. Alinhada com o despojamento da sala, amadeirada, a cozinha revelava-se “muito mais simples do que é hoje, muito menos pretensiosa e mais saborosa”, defende o fadista, que assinala 55 anos de carreira. Com a emergência de locais como o Le Caveau, o Palm Beach ou a discoteca Caixote, João afasta-se um pouco do Mónaco. Foi nessa fase, ao escutar “Povo que Lavas no Rio” de Amália Rodrigues, em 1963, que despertou para o fado e as casas de fado. Voltaria ao Mónaco no início dos anos 70, na companhia da vencedora do concurso Miss Portugal. Escaparam ao beberete após o evento e rumaram ao suposto recato de Caxias, mas o restaurante estava “cheio de gente conhecida”.

Eram muitos os famosos a dar um ar da sua graça. Diz-se que a própria Grace Kelly o terá visitado em 1964, mas também outros vultos internacionais, participantes em festas exclusivas, e ainda os reis Simeão da Bulgária, Humberto de Itália, a Marquesa de Vilaverde e Marcelo Caetano, que segundo relatos da imprensa aparecia no livro de honra do Mónaco, “de fotografia autografada a preencher página inteira, em maio de 1969”. João Braga recorda-se dos atores Carlos José Teixeira e António Vilar, entre muitos nomes.

João Braga estreou-se no Mónaco com 15 anos

Triste foi o destino dos que faleceram em acidentes naquela que ficou conhecida como a 'curva do Mónaco', que, “quando chovia, era perigosíssima”, lamenta José Cid. O cantor e compositor tinha também 15 anos quando entrou no Mónaco, com um primo, para ouvir Shegundo. Já era vocalista de um grupo de jazz em Coimbra e convidaram-no a cantar um clássico. Cantou dois temas, o último dos quais “Put Your Head on My Shoulder”, de Paul Anka, agradando à audiência. Mais tarde, começou a ir com Tozé Brito. Felizmente, para José Cid, havia sempre “arrumação de automóvel e comia-se bem”, em especial o Arroz de lagosta da sua perdição. Entre 1969 e 1972, Tozé Brito foi ao Mónaco muitas vezes com o pai, saborear comida tradicional portuguesa. Agradava-lhe o toque especial do sítio, poder jantar e dançar, e a presença de Shegundo. “Ia muita gente para o ouvir tocar”, comenta. Até certo ponto, era um espaço elitista, mas também “arejado e súper agradável”, um “topo de gama” de ambiente único em Portugal.

"O por do sol do Mónaco ficou para sempre na minha vida”, recorda Lili Caneças
DR

Memórias de Lili Caneças

Lili Caneças lembra-se de ver, por exemplo, João Ferreira-Rosa e Mercês da Cunha Rego. Adorava piano, pelo facto de a mãe ser pianista, e considera que Shegundo “inovou de tal maneira o conceito de se tocar piano que era, de facto, um deslumbramento”. O Mónaco “era sempre súper bem frequentado” e estava “sempre super bonito”. O serviço acompanhava: “Os empregados eram fantásticos, tinham orgulho de estar no Mónaco pelo prestígio que o restaurante tinha. O serviço era tão bom, a gastronomia era tão boa, e estávamos a olhar para o mar... No verão, sobretudo, ainda conseguíamos ver os pores do sol do Mónaco, que ficou para sempre na minha vida”, recorda Lili Caneças, apreciadora do peixe “fantástico, muito bem feito,” e da lagosta.

Na época, Lili Caneças vivia na Parede e a melhor amiga casou-se no Mónaco. Foi nessa ocasião, envolvida pela sofisticação da sala e o romantismo musical, que conheceu o ex-marido, Álvaro Caneças, um homem “muito bonito, que parecia Marcello Mastroianni”. Sentaram-se lado a lado, gerou-se um clima e casaram três meses depois. As idas ao Mónaco pediam indumentária à altura do momento. Certa noite, confiando que Brigitte Bardot e Jacques Charrier iriam lá jantar, Lili coloca um vestido de veludo preto “igual ao de Brigitte” e o irmão compra uns óculos “à Jacques Charrier”. As vedetas internacionais não vieram, mas houve quem as confundisse com a dupla portuguesa: “Quando entrámos, era tudo “Bravo, bravo, Brigitte! A empregada que zelava para que a casa de banho estivesse impecável, e que me conhecia lindamente, pediu-me um autógrafo. Escrevi-lhe “Avec tout mon amour, Brigitte Bardot, em francês impecável. Era muito divertido...”, conta com humor.

Edifício do antigo Restaurante Mónaco

A decadência

Ainda na década de 70, Shegundo Galarza e Manuel Outerelo Costa deixaram o projeto e muitos clientes habituais saíram do país após o 25 de Abril de 1974, como o próprio João Braga, forçado ao exílio “por causa de uma patetice”, regressando em 1976. Um ano antes, Tozé Brito voltou de Inglaterra e já não encontrou o Mónaco que tinha conhecido, “passou a ser um restaurante como outro qualquer”. José Cid estranhava a pouca clientela nos anos 80, dada a beleza do enquadramento: “As voltas que o mundo dá...”. O restaurante manteve-se aberto com outros músicos e proprietários, entre os quais José Esteves, para quem o Mónaco foi “símbolo de uma época e fez história”. No seu entender, o desenvolvimento da A5 e o facto de a marginal ter sido “um ano fechada ao trânsito”, devido à requalificação e colocação do separador central, também contribuíram para reduzir a afluência.

Em 2015, o blogue Restos de Colecção, da autoria de José Leite publicou fotografias, recortes e conta boa parte da história do Mónaco.

O comboio continua a passar junto ao edifício do antigo restaurante Mónaco

A nova vida do Mónaco

José Cid ainda lá atuou com a sua banda, numa festa privada, e João Braga voltou para o aniversário de uma amiga. A despedida do fadista foi em 1995 numa “memorável” festa de anos de um amigo, mas o restaurante Mónaco (Avenida Marginal, Caxias, Oeiras) já estava “completamente descaracterizado”. Acabou por fechar e nem a tentativa do empresário Luís Quaresma e da escola Dançarte, em 2008, evitou o fecho permanente. Em 2014, foi noticiada a venda do espaço a um grupo espanhol. Segundo o Jornal de Negócios, em 2021, o Maxgroup - franchisado da Remax - comunicou que estaria a comercializar o imóvel, então em “fase de reabilitação e reconversão em unidade hoteleira de quatro estrelas”. Fonte da Remax informa que o imóvel terá sido, entretanto, vendido por outro promotor, não tendo sido possível apurar, em tempo útil, mais detalhes do negócio.

Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, fazemos uma viagem no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.

Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:

1972: O restaurante bar de Lisboa que se transformou na segunda casa do Expresso

1973: O tributo a Eusébio e uma mesa para a eternidade

1974: O Pote que ajudou a cozinhar a Revolução dos Cravos

50 ANOS RECHEIO

A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.

Acompanhe o Boa Cama Boa Mesa no Facebook, no Instagram e no Twitter!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas