1981: O restaurante que “revolucionou o Bairro Alto na forma de comer e de estar”
Pap'Açôrda, no Bairro Alto, em 2013
Pap'Açôrda, no Bairro Alto, em 2013
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Numa época em que no Bairro Alto, em Lisboa, escasseavam restaurantes posicionados entre a tasca e o ambiente seleto, nasceu o Pap'Açôrda, em 1981. Neste baluarte da cozinha portuguesa de aprumo, muitas refeições estendiam-se para lá da hora de fecho. A mesa 26 era de Mário Soares, fã de Pregado frito com arroz de tomate e de Bife à Portuguesa. Sean Connery adorava peixe frito e Robert De Niro aterrou de avião particular, semanalmente e durante um ano, para se sentar à mesa deste espaço icónico fundado por Fernando Fernandes e José Miranda. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, vamos voltar atrás no tempo - com o apoio do Recheio - para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal
Na memória dos que viveram o início dos anos 80, no centro de Lisboa, guardam-se, certamente, um espaço e tempo muito particulares. O Bairro Alto era um local “de prostitutas, fado e boémia”, de pequeno comércio e redações de jornais. Sugeria-se ao taxista conduzir até àquele emaranhado de ruelas e carros estacionados nos passeios e “começavam logo a blasfemar”, embora a graça estivesse, também, nesse caos. Petiscava-se um bacalhau frito, pataniscas ou pastéis de bacalhau e bebia-se um copito de vinho. Para saciar dignamente o estômago, com um certo primor despretensioso, não havia quase nada. Mas no Bairro, que se “reinventa sozinho” e vai criando “tribos e maneiras de estar”, aproximava-se uma transformação com epicentro no Restaurante Pap'Açôrda.
Veja a fotogaleria do restaurante Pap'Açôrda:
Pap'Açôrda, no Bairro Alto, em 2013
Pap'Açôrda, no Bairro Alto, em 2013
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Fernando Fernandes geria com um irmão, na Costa da Caparica, o restaurante Pátio Alentejano, de cozinha portuguesa. Dois dos clientes assíduos eram Manuel Reis, que tinha uma loja de antiguidades no Bairro Alto, e José Miranda, ambos com experiência na TAP e as viagens no sangue. Manuel convence Fernando a abrir um restaurante no Bairro porque aí “só havia o Bota Alta e mais dois ou três restaurantes, não havia absolutamente nada de interessante num patamar intermédio entre o luxuoso e o popular”, conta Fernando Fernandes. Descartou uma primeira hipótese na rua da Rosa e apaixonou-se por um espaço “extraordinário” na rua da Atalaia, uma antiga casa de pasto com um pé direito de três metros e meio. Fernando faz sociedade com José Miranda, juntam as economias e, com a ajuda de amigos e do “simpático” senhorio, Virgílio Dias Guterres (pai de António Guterres), fazem uma intervenção. O espaço ficou com a eletricidade por fora, não todo “arrumadinho”. Tinha capacidade para cerca de 60 lugares e duas salas decoradas por Manuel Reis. Na sala da entrada, a mais emblemática e parcialmente forrada a mármore, distinguia-se um “fabuloso” balcão do mesmo material, e aí “todo o mundo fumava que nem louco”, recorda Paula Ribeiro, amiga da casa e cliente quase desde o início. A segunda sala era um saguão, convertido em jardim de inverno. Num leilão da Feira das Indústrias compraram cadeiras de ferro que imitavam uma linha de design, e pintaram-nas de cor de rosa. Predominavam os tons de rosa e salmão na casa, mais os verdes claros e escuros dos cortinados de plástico à entrada. O nome, Pap'Açôrda, foi sugerido pelo designer Henrique Manuel, que desenhou um papa-açorda à altura, isto é, alguém “que fica preguiçoso porque come muito”.
Fernando Fernandes, fundador do Pap'Açôrda
A 5 de março de 1981, o restaurante Pap'Açôrda abre ao público com um 'festão', comida e bebida de graça [e no ano seguinte abriria o bar Frágil]. Servem-se croquetes, canapés, entradas e a açorda que deixaria a capital a salivar. O “extraordinário” poeta Alexandre O'Neill é um dos presentes e todos se tornaram clientes. Os aniversários do restaurante passam a celebrar-se a rigor. Fernando e José vão todos os dias ao Mercado da Ribeira, de madrugada, abastecer-se de produtos frescos, conhecer e criar laços de confiança com as vendedoras, e à lota da Docapesca comprar peixe. Da Beira recebiam cabrito, enchidos e o queijo Serra da Estrela. Do Alentejo o pão na base das açordas. Manuela Brandão assumiu a cozinha ao fim de ano e meio, sucedendo aos irmãos de Fernando. A curiosidade e habilidade para a cozinha tradicional portuguesa sobressai. Com o primeiro ordenado, comprou livros de cozinha. Lia, testava e aprendia até acertar a fórmula, e fazia-o tão bem que, ainda hoje e já em nova morada, é ela a comandar o fogão.
Manuela Brandão
Bons produtos e novas inspirações
“Além do produto português e da cozinha tradicional portuguesa, era tudo bonito. O jeito de servir era diferente, o prato era diferente, o espaço era diferente. Pratos como as açordas, os croquetes e o paté de santola, mantêm-se até hoje. Nunca tinha visto carne de porco misturada com amêijoas [Paula nasceu no Brasil] e, a primeira vez que comi carne de porco à alentejana, pensei se combinariam. É divino, amo até hoje. O esparregado do Pap'Açôrda não existe, não existe, os Peixinhos da horta (€7,50) também. São coisas muito portuguesas e muito boas”, partilha Paula Ribeiro. Da sensibilidade de Fernando, José e Manuel Reis, e das viagens pelo mundo, chegam outras inspirações. “Eram pessoas cultas, viajadas e às vezes apareciam com produtos que não havia cá”, conta Paula. Começaram a usar ervas aromáticas, a rúcula e a endívia, o ruibarbo, os pimentinhos padrón, chanquetese foram descobrir o rodovalho à Figueira da Foz. Provavam manteigas em tasquinhas parisienses e ingredientes noutras latitudes e viam “como isso se podia transformar e adaptar ao gosto dos portugueses”, explica Fernando.
Peixinho da horta no restaurante Pap'Açôrda
Manuela Brandão fala com um sorriso no rosto. Continua a ter “prazer nas coisas”, a ser “feliz a cozinhar”. Mantém na ementa os clássicos do Pap'Açôrda, como a Açorda Real (€37) com camarão e lagosta , as Costeletas de borrego (€38,50) panadas ou grelhadas, os Filetes de peixe-galo com molho de laranja, batatas cozidas e grelos (€27,50), os Filetes de pescada com arroz de berbigão (€23), o Bife do lombo à Pap'Açôrdacom esparregado (€33,50). De 15 em 15 dias, introduz produtos e sugestões adequadas às estações: favas, castanhas, caça, a lampreia ou o sável, entre outros. Tachadas de ensopados, caldeiradas ou açordas fizeram sempre furor, atualizando-se os empratamentos e o serviço.“No início dos anos 80, a cozinha era mais simples, era muito caseira. Fazias no tacho e ia no tacho para a mesa ou servia-se na travessa. Hoje em dia é mais delicado, já vai no próprio prato [açorda e arrozes são exceções] e tem outras condições”, comenta a cozinheira. A receita da Mousse de chocolate Pap'Açôrda (€7) vai manter-se no segredo dos deuses, fora do livro que Paula Ribeiro prepara sobre o restaurante. “Para muitos, é a melhor do mundo. Sempre foi um ícone do Pap'Açôrda”. A mousse vem numa tigela grande com uma colher e o cliente serve-se a gosto.
Mário Soares e Miguel Esteves Cardoso O sucesso do projeto iniciado em 1981 “foi imediato”. Logo após a abertura começou a gerar curiosidade, interesse e a fidelizar clientes. Alguns até hoje, como o presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, apreciador de carne e Cozido à Portuguesa, mas que deixa Manuela decidir o que vai comer. No início, a responsável pela cozinha confessa ter ficado “em estado de choque” com as filas que chegavam ao atual Casanostra. Reservar mesa era difícil, mesmo fazendo até três turnos. Em teoria, o almoço findava às 14h30. Na prática, podia prolongar-se até às 16h00 (ou mais) e os jantares “até à hora que era...”.Como se dizia na época, no Pap'Açôrda reunia-se tout Lisbonne. Misturava-se “a classe artística, jornalística e os empresários”, lembra Paula Ribeiro.As pessoas iam para comer bem, verem e serem vistas.ParaFernando Fernandes, o restaurante “revolucionou um pouco o Bairro Alto, na forma de comer e de estar”. E mesmo na forma de servir: “Até aí, ou era tudo muito rígido ou tudo à balda. Nós tínhamos uma abordagem intermédia: fazíamos bem, mas de forma descontraída, sem estar sempre em cima das pessoas e a ser muito chato. Modéstia à parte, o Pap'Açôrda serviu também muito de inspiração para novos restaurantes e cozinheiros, fomos um pouco inovadores. A época também é importante, porque quando abrimos havia muito pouca informação e afirmação nos gostos”, contextualiza Fernando Fernandes.
Miguel Esteves Cardoso reunia a equipa de O Independente no restaurante do Bairro Alto
Clara Azevedo / Expresso
O conceito do restaurante e o respeito pela privacidade dos clientes fazia-os “sentirem-se em casa”, notava Manuela, que lhes conquistou o palato. Mário Soares gostava do Pregado frito com arroz seco de tomate e do Bife de lombo à Portuguesa com ovo estrelado.“Dizia sempre que estava péssimo, mas depois, antes de sair, já dizia ah... comi tão bem... estava maravilhoso! Ele sentava-se e era como se estivesse em casa. Batia nas costas do Fernando e dizia - Então? Diz àquele gajo para cortar a barba, olha para aquilo! (risos). Punha-se na brincadeira com o José Miranda e a mim puxava-me a bochecha e comentava que comeu lindamente, mas primeiro dizia que estava péssimo (risos)”, conta Manuela. Chovesse ou fizesse sol, a mesa era a 26 e chamavam-na de Mesa Mário Soares. E se estivesse ocupada? Paula esclarece: “Não existia a possibilidade de essa mesa não estar disponível. Você podia ser irmã de sangue... Se ele não tivesse reserva, podia sentar-se, mas essa mesa era dele”. “O Mário Soares foi muito importante para nós, porque deu uma credibilidade enorme ao restaurante”, reconhece Fernando Fernandes.
A cozinheira Manuela Brandão no início do Pap'Açôrda
Muitas reuniões políticas aconteceram neste restaurante. Aliás, “todas as reuniões importantes de todos os setores eram lá ao almoço”, eleva Manuela, prolongando-se já à porta fechada. Se ali se cozinharam eleições? De “certeza absoluta”, afiança Fernando. E era onde se ia ter uma conversa séria ou conquistar alguém. O jornalista Pedro Rolo Duarte contava que tinha começado a namorar e “também se tinha separado” no Pap'Açôrda. À imagem de Júlio Sarmento, Pedro Cabrita Reis tornou-se assíduo, apreciando Bacalhau assado, Ensopado de cabrito e caldeirada. Clara Ferreira Alves também vinha e, na época d'O Independente, Miguel Esteves Cardoso “levava o núcleo duro da redação” a reunir no Pap'Açôrda.“Chegavam ao almoço e saíam ao jantar, eram horas e horas” a debater, inspiradamente, as edições.
Robert de Niro no novo Pap'Açôrda com Manuela Brandão
Robert De Niro, Sean Connery e Catherine Deneuve
Os cineastas nacionais “vieram todos”, de João Botelho a Manoel de Oliveira e António-Pedro Vasconcelos, bem como atores e músicos. A nível internacional, sempre que Catherine Deneuve estava em Lisboa ia ao Pap'Açôrda, e havia quem já a tomasse por sócia. Robert De Niro faz o mesmo, ligando para os responsáveis a avisar. “Esteve a fazer um filme em Espanha e, durante um ano, que foi quanto durou a filmagem, vinha de avião particular e ia comer ao Pap'Açôrda uma vez por semana. Quando acabou a rodagem, pediu-nos para fazer uma festa com todo o pessoal do filme e nós fizemos”, revela Manuela Brandão, que tirou uma foto com De Niro já na nova morada do restaurante no Mercado da Ribeira. Sean Connery era um fã do misto de peixe frito, enriquecido de linguadinhos, enguias, carapauzinhos, aparas e a parte da cabeça do rodovalho. Aproveitou a rodagem em Portugal de parte do filme “A Casa da Rússia”, ao lado de Michelle Pfeiffer, para satisfazer o apetite à mesa do emblemático restaurante do Bairro Alto.
Ainda Portugal “não estava na moda”, nos anos 80 e 90, e já o Pap'Açôrda colecionava elogios em guias e revistas internacionais. O ator John Malkovich tornou-se cliente e depois sócio de Fernando, José e Manuel Reis no restaurante Bica do Sapato, que abriu em 1999. “Toda a gente vivia de costas voltadas para o rio e, quando entraram novos administradores no Porto de Lisboa, começaram a devolver o rio às pessoas”, refere Fernando Fernandes, que preferiu Santa Apolónia à “compacta” área das Docas para abrir um novo espaço. Um ano antes tinha também aberto em Santa Apolónia a discoteca Lux. “Foram 20 anos de Bica do Sapato, onde muita coisa aconteceu, muita gente se encontrou e se separou. As festas da Bica eram incríveis... Enquanto o Pap'Açorda era muito mais intimista, a Bica era aberta para o rio, aberta em todos os sentidos. E havia a proximidade do Lux... O momento era favorável, porque a Bica abre na viragem para 2000, com a chegada do Europeu de Futebol, no pós-Expo'98, e quando Portugal começou a ficar na moda. Da mesma forma que o Pap'Açôrda mudou o Bairro Alto, a Bica e o Lux mudaram aquela zona. A cidade começa a mudar e descer. Eu amava a Bica, passei mais tempo lá do que noutros lugares”, recorda Paula Ribeiro.
Entrada do restaurante no primeiro piso do Mercado Time Out
Um novo Pap'Açôrda
Em 2016, o Bairro Alto vivia uma transformação que desagradou a Fernando Fernandes. Sobretudo, a saída do interior para a rua. O empresário aceitou o convite da Time Out para instalar o restaurante no Mercado da Ribeira, no Cais do Sodré, que “estava em crescimento”. A 5 de março, Fernando, Paula e Manuela fazem a última ceia no velho Pap'Açôrda. Manuela “já tinha chorado tudo”, Paula “chorava que não acabava”, mas Fernando, transmontano de origem, já apontava ao futuro. Passou aí os melhores anosda sua vida, mas gosta de (re)começos e “estava louco para ir embora”.Em maio, o Pap'Açorda reabre no primeiro piso do Mercado da Ribeira, num espaço amplo, com vista para o jardim exterior e o Time Out Lisboa Market, onde uma imparável multidão de comensais – turistas à cabeça – analisa as opções gastronómicas e disputa as mesas.
Com duas salas, garrafeira e um bar, o atual Pap'Açôrda (Av. 24 de Julho, 49, 1º, Lisboa, Tel. 213464811) casa modernidade e tradição. Reconhecem-se apontamentos do espaço original - um lustre, algumas cadeiras e os arranjos florais - mas aqui respiram-se novos ares. Houve quem ficasse “agarrado à memória do restaurante lá de cima, que era muito acolhedor, mais pequenino e familiar”, mas depois dizem que “a comida e o espírito são iguais”, conta Manuela Brandão, a alma dos cozinhados que marcaram gerações. Quem ajuda a cativar a nova geração é Ricardo Fernandes, filho de Fernando, na direção do restaurante. É o seu tempo. “Este Pap'Açôrda nunca foi para ser a mesma coisa. É a mesma coisa na linha, na essência, no paladar e bom gosto, mas é outra fase e outro sítio”, reforça Paula Ribeiro. Segundo Fernando, a experiênciacorre “lindamente” e dácontinuidade ao trabalho, dentro da lógica do espaço e tempo atuais. Introduziram-se a Tomatada com ovo escalfado (€6,50), pratos vegetarianos e vegans, saladas mais compostas, massas, caril e até hambúrgueres, pratos mais leves. Subsistem os clássicos, o apuro, o cuidado e o bom gosto neste restaurante de referência, que não se “arma ao pingarelho”.
Pap'Açôrda no Merdado da Ribeira
Fernando Guerra
Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, fazemos uma viagem no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.
Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:
O Recheio fez sempre do pioneirismo uma bandeira e abriu caminho em vários domínios da atividade. Em 1981, tinha uma equipa jovem, com idade entre os 30 e os 40 anos, apesar da maioria dos seus colaboradores já ter muitos anos de experiência na distribuição. Nesse ano, os serviços já eram totalmente computorizados. Foi a primeira empresa do país a ter sistema para leitura de códigos de barra e fazer compras à distância. Os volumes comercializados exigiam já dados informatizados, que permitissem uma melhor gestão de stocks.
A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.
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