50 Anos, 50 Restaurantes

1979: A modesta pensão que fez nascer um restaurante de culto em Paços de Ferreira

Capão à Freamundo do restaurante Aidé, em Paços de Ferreira
Capão à Freamundo do restaurante Aidé, em Paços de Ferreira

Aidé Pereira da Costa Lino viu-se, ainda jovem, com sete filhos para criar sozinha. Porém, nenhuma adversidade a fez baixar os braços. Esta figura, muito estimada em Paços de Ferreira, foi um exemplo de resiliência e construiu uma pensão com um restaurante que se tornariam, já sob a gestão de Fernando Pinto, incontornáveis na região e em que o “Capão à Freamunde” é razão para romarias. Pelo Restaurante Aidé, reduto de sabores de tradição, passam presidentes da república, primeiros-ministros e meio mundo das artes. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, vamos voltar atrás no tempo - com o apoio do Recheio - para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal.

Perante a morte do marido, Aidé Pereira da Costa Lino ficou numa encruzilhada. Estava viúva aos 34 anos e com sete filhos para criar, o mais velho com apenas 13 anos. Vivia num prédio em Paços de Ferreira, cuidando de uma mercearia e de uma tasquinha no rés-do-chão, junto à Confeitaria Amândio, pertença do pai. Percebe, então, que tem de arranjar outro sustento para os filhos e tenta comprar a Pensão Palmeira, em frente. Estava tudo apalavrado, mas no dia em que atravessa o jardim para fazer a escritura, a amiga diz-lhe que a vendeu a outra pessoa. Consta que esse suposto “adversário” de negócios “deitou foguetes para festejar”. De volta à estaca zero, lembra-se de uma casinha antiga, com um terreno ao lado onde bem que podia nascer uma pensão... “É aqui que eu a vou fazer”, decide.

Só havia um problema, a autarquia não lhe dava licença de pensão. “Havia outra na zona e o proprietário tinha um certo controle sobre o presidente da altura”, considera Fernando Pinto, proprietário do atual Paços Ferrara Hotel. Aidé não desiste. Se não podia ser pensão, seria uma casa de habitação para a família. Recolhe financiamento junto de familiares, endivida-se na banca, e avança com a construção de raiz. “A dona Aidé era uma senhora à frente do tempo, muito inspiradora, muito lutadora. Nunca se deixou ir abaixo pela viuvez. Arregaçou as mangas e esse projeto era forma que ela encontrou de dar trabalho e sustento aos sete filhos. Dois quiseram estudar, cinco ficaram a trabalhar consigo. Ela é mesmo muito admirada no concelho. Era muito lutadora, teve uma história de vida admirável”, comenta Joana Pinto, uma das três filhas de Fernando – Joana, Teresa e Sandra Pinto, todas envolvidas na estrutura hotel.

Veja a fotogaleria com a história do Restaurante Aidé

Desafios a superar

Mais pedras dificultaram o caminho de Aidé, como a guerra colonial, para onde foi o filho mais velho. Ainda tentou apelar a um comandante de Penafiel, dizendo que precisava do filho para trabalhar, mas em vão: “Ele era daqueles homens duros de antigamente e disse que preferia que morresse meia dúzia de militares do que um porco”, conta Fernando Pinto. Aidé “veio de lá doente”. Na iminência de recruta de outro filho, escreveu mesmo a Salazar, argumentando que “precisava do segundo filho para trabalhar, e o pedido foi aceite”. O outro filho só foi para a tropa quando o mais velho regressou. Com a mudança da presidência da câmara, obteve a licença de pensão. Para Fernando, “se tivesse sido ele a autorizar de início, a dona Aidé teria feito as mesmas coisas, mas com outras condições”.

Entre a morte do marido e a inauguração, a 1 de julho de 1962, d'A Nossa Pensão – nome sugerido pelo filho em Angola - decorrem cerca de 10 anos. Aidé muda-se, então, para o reservado num extremo do edifício. A pensão abriu com 18 quartos modestos, só com bidé e lavatório, e só três casas de banho. Havia uma sala de refeições pequenina, no arranque ainda sem cortinados, e nas caves ficava a adega com as pipas de vinho e um lagar com prensa. Num barraco, guardava a lenha, porcos e pintainhos. Em cartões-de-visita dessa época, lê-se que um atrativo era existir “Água quente e fria em todas as dependências”. Ainda sem esquentadores, a água quente dos quartos circulava através “de uma espécie de serpentinas”, por ação do fogão a lenha, e era preciso esperar. “Água fria nem sempre, quente às vezes”, ironizava um hóspede.

A fundadora Aidé Pereira da Costa Lino

Nova gestão e crescimento

Aidé não se desfez da mercearia e tasquinha, os filhos revezavam-se no auxílio. Os anos passam e, no final da década de 70, o cansaço pesa como nunca. Escasseiam funcionários e clientes no restaurante, até que se reúne com os filhos e lhes pergunta se alguém queria gerir a pensão. Teresa Seabra é a única a anuir, já que tinha um bom braço direito, o marido Fernando Pinto, já com boa experiência em restauração. O casal passa a gerir a pensão em 1979 e torna-se proprietário em 1984. A partir daí, nasce “o bichinho de fazer obras”. Alterou-se a sala do restaurante, colocando janelas com madeira de carvalho, chão e teto em madeira, vidros laminados, e alteraram-se as portas. Além do prato da casa, introduzem-se duas ou três opções de peixe fresco, outras tantas de carne tenrinha e de qualidade, e a clientela responde positivamente. A vinda de Teresa Pinto, outra das filhas, para os fogões, foi uma grande ajuda.

O Restaurante Aidé começou a trabalhar “muito melhor” e o projeto foi crescendo ao nível do serviço e instalações. Após uma primeira pintura geral, inicia-se em 1994 a extensão - quatro andares e rés-do-chão – sem parar a atividade. Em 1996, inaugura a nova ala, com casas de banho privativas nos quartos, cozinha e salas comuns. A seguir, restaurou-se a casa original para ficar condizente. Salvaguardando melhorias posteriores, a face atual do Paços Ferrara Hotel concretizou-se em 2001. Dispõe de 37 quartos renovados e uma moderna sala do restaurante, com cadeiras almofadadas, cortinas e atoalhados elegantes, de tons claros.

Fernando Pinto assumiu a liderança do projeto em 1979

“É um orgulho muito grande ver a casa como está. Deu muito trabalho, trabalhámos durante 40 anos e fazíamos tudo: lavávamos loiça, cozinhávamos, tudo. Trabalhávamos das 8h à meia noite, todos os dias. Costumo dizer que não sou empresário da restauração e hotelaria, mas trabalhador por conta própria, porque um empresário não faz nada, chega ao fim do mês e vai ver se tem ou não tem lucro”, realça Fernando Pinto. Quando saiu a lei para acabar com as pensões, há cerca de uma década, classificou-se o alojamento como hotel de três estrelas e o restaurante batiza-se de “Aidé”, em homenagem à fundadora, falecida aos 94 anos. Joana Pinto tem a certeza que a avó Aidé ia adorar o gesto... “Pela história de vida que teve, foi um caso de superação. Tinha um gosto fora do normal pela casa que conseguiu construir. Darem-lhe seguimento era das coisas que mais se orgulharia, disse-nos isso muitas vezes em vida”. Com o contributo importante do genro de Fernando, o chef Joaquim Gomes, “nos últimos 10 anos houve uma modernização da carta e do serviço”. Introduziram-se novos pratos e melhorou-se a oferta de vinhos.

O premiado “Capão à Freamunde”

O galo capão e outros trunfos

O livro de reclamações ainda não foi estreado desde que Fernando Pinto assumiu os destinos da empresa. O restaurante conquistou os comensais com sabores tradicionais e produtos escolhidos a dedo. Há uns anos, desconfiava-se da comida de hotel. Hoje, há quem diga que o Aidé é “um restaurante com quartos em cima”. Na preenchida lista de entradas, destaque para a “Espetadinha de lulas e gambas” (€0,80), a “Empada de capão” (€1,20), a “Barriga com ovinho de codorniz” (€0,80), o “Revolto de camarão e espargos” (€6,50), as “Amêijoas à Bulhão Pato com tostas de alho” (€14), o fumeiro e alheira de Montalegre.

Um das bandeiras da casa é o “Capão à Freamunde”, especialidade da freguesia de Freamunde, em Paços de Ferreira. O Restaurante Aidé venceu a maioria das edições do concurso anual que elege o melhor na Semana Gastronómica do Capão à Freamunde. A época ideal para se provar este prato no Aidé vai do fim de novembro a janeiro, em reservas para grupos de sete a oito pessoas (€150). Até da Madeira já vieram de propósito para o saborear... Fernando explica a receita: “O capão é castrado. Depois de morto, é limpo e colocado em água e limão, temperando-se com sal, alho, pimenta e colorau. Está dois dias a marinar nesse tempero e faz-se o recheio com os miúdos do capão e pouco de salpicão, chouriço e presunto, para ficar saboroso. Vai ao forno inteiro e demora três horas a assar. Vai-se virando e junta-se um pouco de vinho do Porto até ficar douradinho. No fim, é trinchado e vai para a mesa com batata assada, grelos salteados e o recheio”. Acompanha com vinho maduro tinto ou espumante bruto.

Polvo no restaurante Aidé

Entre as outras vias para o prazer, estão sempre duas ou três variedades de bacalhau, como à moda de Braga (com cebolada e assado na brasa), o “Bacalhau gratinado com gambas”, e o “Bacalhau à Brás”. Já o polvo, pode servir grelhado à Lagareiro (desde €19), à moda do Minho, em “Arroz de polvo com filetes do mesmo” ou assado no forno. Os peixes podem ser grelhados, servir num “Arroz de garoupa” ou de tamboril com gambas. Nas carnes, destacam-se os “Lombinhos de boi grelhados” (desde €18), que é o prato “top” da casa segundo o proprietário, e servido com batata a murro e legumes salteados. O “Rosbife com batata palha” (desde €17,50), o “Cabrito assado no forno com batata assada”, a “Bochecha de vitela estufada” (com batata assada ou puré de batata assada), a “Vitela assada” e a “Costela mendinha” são outras opções. Finalize uma fantástica “Tarte de maçã” (€5), quente, baixinha, com finas fatias da fruta e que vai ao forno e “com caramelozinho por cima”, servindo com gelado de caramelo toffee. Tem ainda o “Leite creme queimado” (€3,50), o “Crepe com gelado de baunilha e chocolate quente” (€4,50), o “Bolo de chocolate húmido com gelado de morango” e os queijos de Paços de Ferreira. Ao almoço, pergunte pela sugestão do chef e brinde com um vinho a copo.

O Capão à Freamunde já valeu vários prémios ao Restaurante Aidé

Cavaco, Soares e José Sócrates

De segunda a sexta-feira, a maioria os clientes do Restaurante Aidé (Paços Ferrara Hotel, Avenida 1º de Dezembro, 137, Paços de Ferreira. Tel. 255962548) são empresários ligados aos móveis e à madeira, à confeção e têxteis, ou à maquinaria. As famílias preferem os fins de semana e, ao sábado, costumam esgotar a ocupação pelas 16h00. A consistência gastronómica não passa despercebida às caras conhecidas. Presidentes da República, primeiros-ministros, ministros, secretários de estado e autarcas são presença regular. Jorge Sampaio, Cavaco Silva, Mário Soares, Passos Coelho, José Sócrates e Santana Lopes, todos conheceram esta cozinha.

Era Cavaco Silva primeiro-ministro quando veio inaugurar uma escola. Serviu-se um buffet de pé, para cerca de 150 pessoas, num salão em frente à igreja. De manhã, os seguranças “foram à cozinha, às flores e mexeram em tudo com detetores”. E foram perentórios: “A partir de agora, você é o responsável se acontecer alguma coisa ao primeiro-ministro”. Admirado, Fernando pergunta: “Eu? Mas eu porquê?”. Às duas meses no salão “só ia quem os seguranças deixassem passar”. Fernando prontifica-se a servir o café ao governante... “Foi um senhor comigo até à beira dele, levava eu o café na bandeja, para ver se punha alguma coisa no café! Foi uma coisa...”. Antes de arrancarem “com quanta velocidade tinham” rumo a Penafiel, Cavaco louva o serviço: “Nunca comi tão bem e tão rápido em festa nenhuma”. A dinâmica foi diferente com o presidente da República Mário Soares, que também veio em maré de inaugurações. “Ele pergunta, é ali em baixo? É por aqui? Então vou a pé. E foi por aí abaixo, a pé, até à escola. Quando os outros estavam com tanto medo, a proteger Cavaco Silva, Mário Soares disse que ia a pé e foi tudo atrás dele. Os carros ficaram lá em cima e foram ter à escola”. Numa outra ocasião, José Sócrates quis sentar-se à mesa de um restaurante, em vez de ficar “em pé a petiscar”. Ligaram meia hora antes e Fernando teve de arranjar comida para 50 pessoas. “Tínhamos muita carne para grelhar e demos resposta”, felizmente.

Lena D'Água protagonizou um momento divertido no restaurante
Arquivo A Capital

As visitas do fundador da IKEA

“A vossa comida é toda muito bem temperadinha”, reconheceu Herman José. Quando há festas populares, espetáculos ou outros eventos culturais, é habitual os artistas comerem no Aidé. Assim sucedeu com a fadista Mariza, com Pedro Abrunhosa, Pedro Barroso, Luís Represas, Fernando Pereira, Rui Veloso, João Tordo, Fátima Lopes, Pedro Teixeira, Cláudia Vieira e Pedro Chagas Freitas. E a família Carreira dormiu no hotel. No tempo da antiga pensão, ainda a sala era aquecida com uma salamandra a lenha, apareceu Lena d'Água. “Antes de ir para a discoteca onde ia fazer o trabalho, estavam ela e os músicos a beber whiskeys”. A dado momento, vira-se e diz: “Não vamos lá, senão vamos partir aquela merda toda!” (risos). Mas lá foram atuar, bem dispostos. Rui Águas, o irmão de Lena, também vinha muito ao Aidé. Especiais eram também as visitas do fundador do IKEA, Ingvar Kamprad. Paços de Ferreira é conhecida como a “Capital do Móvel” - o mobiliário do hotel é, obviamente, pacense - e alberga a maior fábrica da Península Ibérica a produzir para a IKEA. Ingvar, que se destacava “pelas suas sandálias e meias brancas”, chegava cedo para jantar, em privado. Veio atraído pelo polvo grelhado, fazendo fé no feedback dos compatriotas, e “deu os parabéns” à equipa.

Restaurante Aidé

Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, voltámos atrás no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.

Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:

1972: O restaurante bar de Lisboa que se transformou na segunda casa do Expresso

1973: O tributo a Eusébio e uma mesa para a eternidade

1974: O Pote que ajudou a cozinhar a Revolução dos Cravos

1979: A evolução do mundo das vendas

O maior desafio de Carlos Ricardo, que entrou para o Recheio da Figueira da Foz em 1979, foi passar das operações (estivera na distribuição e aviamento de mercadorias) para as vendas. Venceu-o com a ajuda de colegas e superiores: “Todos me deram força. Não há dúvida de que, se há empresa que dá oportunidades de crescimento aos seus profissionais, esta é uma delas”, refere. Hoje na equipa comercial de Leiria, recorda-se das primeiras vezes nessas funções, fazendo férias de outros vendedores, e da diferente realidade de então. Quando abordava um cliente, por norma ele tinha todos os apontamentos sobre os artigos que necessitava, feitos à mão, e era “só dar uma vista de olhos e apontar”. O cliente “não era tão exigente”. A diversidade de produtos também era menor, o que reduzia as opções de escolha e facilitava as vendas. “Ainda não havia marcas próprias, nem tanto sortido de mercadoria como há agora. Havia pouca variedade de arrozes, massas, óleos, azeites, águas ou açúcares”, ilustra. O aumento da concorrência e da diversidade de produtos “exige bastante mais” dos vendedores, que “têm de insistir o dobro”. Mas agora também se vende “muito mais”, explica o colaborador, uma realidade facilitada pelas novas tecnologias.

A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.

Acompanhe o Boa Cama Boa Mesa no Facebook, no Instagram e no Twitter!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas