50 Anos, 50 Restaurantes

1975: Uma estrela renovada no topo do prédio da Cooperativa dos Pedreiros

Restaurante Portucale, no Porto
Restaurante Portucale, no Porto
Depois de Sónia Braga entrar no Restaurante Portucale, só conseguiu sair com a ajuda da polícia. A novela "Gabriela" fazia furor em Portugal e a atriz brasileira, que chegou com “todo o glamour”, gerou entusiasmos inesperados. Foi um dos episódios memoráveis na história deste restaurante, a funcionar no 14º piso do Hotel Miradouro. Presidentes da República, primeiros-ministros, personalidades das artes e do desporto, usufruiram da panorâmica única. Muitos foram atendidos por Ernesto Azevedo, cuja visão valeu ao Portucale a conquista e manutenção de uma estrela Michelin. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, vamos voltar atrás no tempo - com o apoio do Recheio - para relembrar os 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal.

Há um detalhe arquitetónico curioso no Restaurante Portucale, que ocupa o 14º piso do Hotel Miradouro, no Porto. A zona do bar é mais baixa do que a sala de refeições, o que faz com que o teto assuma a forma de um olho. É um convite, implícito, à contemplação. Através dos janelões, vê-se toda a cidade do Porto, Vila Nova de Gaia, o rio Douro, o mar, a Serra do Marão e, virando a Norte, a Póvoa de Varzim e uma montanha galega. O funcionário José Magalhães não tem dúvidas: “é uma panorâmica única”, inspiradora, e que permite perceber como a cidade mudou desde 1969, o ano de abertura da então Albergaria Miradouro. Com o tempo, tornou-se “mais cosmopolita” e cheia de prédios, constata José Manuel Azevedo, sócio-gerente juntamente com o irmão, Orlando Azevedo.

Quando se está 198 metros acima do nível do mar sente-se uma paz tranquilizante. Mas houve ocasiões bem diferentes... Certo dia, um amigo de Roman Abramovich apareceu de iate e, à noite, subiu ao Portucale, que fechou para ele soprar as 40 velas em exclusivo, junto a dez convidados. Quis beber Barca Velha, Petrus e champanhe de sete mil euros, e a noite foi animada por uma cantora de jazz vinda da América com os respetivos músicos, uma girls band portuguesa, bailarinas do Moulin Rouge, quatro strippers a servirem o bolo e fogo de artifício. A festa prolongou-se pela madrugada e correu “muito bem”. “Foi única, única, única!”, recorda José Manuel Azevedo. Apesar do retorno financeiro, quem não a apreciou por aí além foi o pai de José, Ernesto Azevedo. “Detestou, ficou furioso. Disse que não tinha criado o restaurante para fazer aquele tipo de eventos”. Compreende-se, tendo em conta a calma e discrição que o caracterizavam.

A vista atual a 198 metros acima do nível do mar

198 metros acima do nível do mar

Ernesto Azevedo era “muito amado” no setor. “Todos gostavam dele, era extremamente afável e preocupado com o cliente, que via como um amigo. Não deixava isso em mãos alheias”, descreve Isabel Cabral, mulher de José Manuel Azevedo. Foi nele que o crítico gastronómico Daniel Constant pensou quando a Cooperativa dos Pedreiros, construtora do prédio, lhe perguntou pela pessoa ideal para gerir um restaurante de nível internacional no topo do edifício, cuja existência seria uma condição da autarquia para autorizar tamanha construção. Ernesto trabalhava no Hotel Parque, em Lamego, e aceitou o desafio.

Percorra a fotogaleria:

As primeiras portas, vidros e estores elétricos

O novo local de trabalho era um prédio revestido a azulejos amarelos, com o macete e o escopro do pedreiro em evidência, e que demorou cerca de oito anos a concluir, por ter sido feito nas horas vagas de pedreiros, engenheiros e eletricistas. Tal como aconteceu com as igrejas das Antas e do Marquês e a própria Câmara do Porto, o Edifício Miradouro construiu-se com o granito polido pela cooperativa, que podia assim alojar clientes internacionais mostrando, in loco, a qualidade do trabalho. A Cooperativa, que foi pioneira na atribuição de “pensões para as viúvas dos trabalhadores”, ainda é a proprietária do prédio. Os arquitetos Maria José Marques da Silva e David Moreira da Silva desenharam os móveis e viajaram pelo mundo em busca dos melhores materiais. Num espaço pleno de combinações geométricas, subsiste a alcatifa e um sentido estético de regresso a outro tempo, orgulhoso de si e indiferente a modas. Destacam-se as madeiras exóticas africanas, os azulejos coloridos e as tapeçarias de Guilherme Camarinha, alusivas ao vinho do Porto, caça, pesca, sobremesas e à arte do pedreiro, esta especificamente na sala de estar do hotel.

O novo restaurante atrai as atenções. “Tinha as primeiras portas, vidros e estores elétricos. Apostou-se na tecnologia e no que havia de melhor”. E Ernesto também queria fazer desta uma casa de sucesso ao nível da comida. “Continuou a servir o Bacalhau à Marinheiro criado em Lamego e tentou descobrir, por exemplo, um prato que não havia em Portugal, o Espadarte fumado. Foi a Itália, viu como se fazia e começou a fumar o espadarte. Era um must, exportávamos e tudo. Tinha essa capacidade de descobrir, não parava, estava sempre a pensar, sempre a ler. Na altura, era uma visão muito diferenciadora”, recorda o filho. António Ribeiro, irmão de José Magalhães e colega no serviço de sala, diz que Ernesto “era um homem à frente do seu tempo”. “Nos anos 70, ainda não havia Google para pesquisar e ele já fazia chegar aqui o foie gras importado de França, as peras abacate da América do Sul, as endívias da Holanda e faziam-se aqui coisas maravilhosas. Essa qualidade e saber do senhor Azevedo foi incutindo o bom gosto nas pessoas. Hoje em dia, tanto podem vir comer umas Tripas à moda do Porto como um belo Escalope de foie gras com maçã escalfada”, comenta.

Apesar dos convites, Ernesto não saiu do Portucale, onde podia continuar a ser um bom anfitrião. Para Isabel Cabral, ele “era super criativo, tinha amor naquilo que fazia”, além de ser uma “pessoa excelente, inigualável”. O seu mundo era a cozinha, a combinação de sabores, o trato e o cuidado na apresentação. Envolvia-se na criação das ementas e, na execução, contava com o talento de chefs como António Vieira, depois António Sousa e Manuel Jorge (neste momento é Fernando Machado). “Pegou na gastronomia tradicional portuguesa, com leve toque afrancesado, e na própria gastronomia francesa, indo buscar o foie gras, o linguado gratinado com champanhe, as próprias natas usadas nos cogumelos, os espargos, os abacates que não havia no país e as endívias”. Vários restaurantes começam a seguir-lhe as pisadas.

Ernesto Azevedo

A visão de Ernesto Azevedo, a estrela Michelin e os famosos

Em 1974, ano da Revolução dos Cravos, o Restaurante Portucale conquistou uma estrela Michelin. Já “há muito tempo que era falado a nível internacional” e o prémio atrai reportagens internacionais. Num jornal americano, chegou a estar “no top 10 dos melhores restaurantes do mundo durante sete ou oito anos”, comenta o sócio-gerente. Havia um russo que, sempre que ia a Barcelona participar em conferências, passava no Portucale para saborear perna de javali. O peso da estrela no estrangeiro não encontrava, porém, eco em Portugal, que lhe “passou um bocadinho ao lado”: “Vinha uma noticiazinha no fundo da página”, um posicionamento apenas contrariado por pessoas “mais conhecedoras” ou com mais acesso aos circuitos gastronómicos. Mas a distinção não foi obra do acaso, mantendo-se em 1975 e até 1980. “O José Quitério chegou a dizer que no Portucale só se mexe com pinças”, ilustra José Azevedo.

Apesar de pequeno – subsistem os 30 quartos de origem, seis dos quais com cantos panorâmicos -, o hotel em que o restaurante se insere era onde o antigo Presidente da República, Ramalho Eanes, ficava alojado quando vinha ao Porto. Francisco Pinto Balsemão também fazia “grandes festinhas” no Portucale, com amigos como Miguel Veiga. Mário Soares vinha “muitas, muitas, muitas vezes”, fosse para jantares de Estado ou a título pessoal, e adorava as Tripas à moda do Porto. Pinheiro de Azevedo, antigo Primeiro-Ministro, esteve no hotel algum tempo e fazia aí as conferências de imprensa. Uma vez saiu a correr, sem tempo para se saciar com a omeleta: “Era miúdo e acabei por comê-la eu. Cheguei à escola e disse, todo contente, que tinha comido a omeleta do Pinheiro de Azevedo!”, recorda José Manuel Azevedo, entre risos.

Isabel Cabral e José Manuel Azevedo

Durão Barroso e o Dom Pérignon

José Sócrates apareceu há pouco tempo e na memória ficou o jantar do antigo presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, com os irmãos Oliveira, do meio desportivo. Quiseram “acompanhar a refeição toda com Dom Pérignon” e, quando o champanhe acabou, foi um ver se te avias para o repor. “Fomos a correr para o El Corte Inglés e lá conseguimos”, conta Isabel Cabral. Fernando Gomes era dos autarcas mais assíduos. Rui Rio apareceu “poucas vezes” e Rui Moreira, que nutria grande apreço por Ernesto, aparecia mais antes da presidência. Neste restaurante receberam-se desde a realeza europeia às grandes famílias do Porto, que aqui se sentem em casa. Pinto da Costa vinha de propósito comer Cordon Bleu com molho de cogumelos e também era costume encontrar-se com o antigo presidente do Vitória de Guimarães.

Pedro Abrunhosa “é um fã completo” do Portucale e, por vezes, sobe para mostrar a vista aos amigos estrangeiros. Épica foi a visita, em 1977, de Sónia Braga, protagonista de Gabriela, a primeira novela brasileira transmitida em Portugal. “A limusine a chegar, aquele glamour todo, a presença dos jornalistas...”. “Veio na altura da novela e gerou-se um alvoroço. Havia tanta gente lá em baixo que ela não conseguia sair. Para sair do restaurante foi preciso chamar a polícia”, conta José Manuel Azevedo. Antes de sair, Sónia Braga ainda distribuiu alguns cartões do restaurante marcados com o seu batom. Malu Mader, Cláudia Raia e Regina Duarte foram outras atrizes brasileiras que por aqui passaram, tal como Caetano Veloso, jogadores de futebol, empresários, António Damásio, Manuel Luís Goucha, Danielle Mitterrand, Charles de Borboun-Siciles e os Duques de Calábria.

Presidente da República, Mário Soares, no Restaurante Portucale, com Ernesto Azevedo como anfitrião

Cabeça de javali e talheres de prata

Conhecida a história, peça os aperitivos. A cabeça de javali é uma das exclusividades. É fumada, cozida, desossada e as cartilagens são prensadas com grãos de pimenta preta. Serve-se ainda um paté especial, vegetal, com corações de alcachofra, espargos verdes, castanhas e cogumelos: é tudo cozido, triturado e temperado com ervas aromáticas e um dentinho de gengibre. Não pode faltar a manteiga com alho e ervas, as azeitonas temperadas com aromáticas e azeite virgem, o pãozinho estaladiço, os pastéis de bacalhau e a bola de carne caseiros. Já agora, uns croquetezinhos de vitela... Observe os carrinhos e talheres de prata da Christofle, os pratos da Vista Alegre e confie no aconselhamento para o que se segue. O Crepe de camarão (€11) é uma espécie de folhado, com camarões e Bechamel, que é enrolado e levemente frito para ficar crocante, servindo com folhas de inverno. Outro clássico são os Cogumelos frescos, que são grelhados e salteados em azeite e alho. Uma opção muito fresca é a Pera abacate recheada com camarão e lagosta (€12,50). Há sempre quem ceda às “saudades de vir comer aquele Bacalhau à Marinheiro (€20,50), um Cabrito estufado à Serrana (€20) ou o Bife à Portucale flamejado à mesa”, acrescenta António Ribeiro.

Maria Gonçalves Azevedo, mulher de Ernesto e conhecida como a “Dona Mariazinha” também trabalhou no Portucale. Era “a alma dos doces, uma doceira de mão cheia” que ensinou as pessoas a fazer bem. Os doces conventuais fazem-se na casa, “com o coração”. A Sopa dourada, “abençoada pelas freirinhas de Santa Clara do Porto”, leva ovos-moles, bocadinhos de pão-de-ló torrado no forno, lâminas de amêndoa e um pauzinho de canela. O Toucinho-do-céu inclui amêndoa, ovos moles e fios de chila, e é cozido no forno. Na Chilada do Convento de São José, a chila é “muito bem trabalhada” e enriquecida com amêndoa laminada e ovos moles. “Hoje, o Pudim Abade de Priscos envergonhou-se e não chegou aqui, mas veio o pudim com a receita da avó, um pouco de vinho do Porto Tawny e caramelo. Fazíamos uma trilogia conventual, com um sorvetezinho de lima para refrescar o palato, pode ser?”, indaga António Ribeiro. Claro, “maravilhosa ideia...”.

Almoço com vista no Restaurante Portucale

O Restaurante Portucale (Hotel Miradouro, Rua da Alegria, 598, Porto. Tel. 225370717) está aberto todos os dias das 12h30 às 14h30 e das 19h30 às 22h30. A vista panorâmica mantém-se única!

Fachada do Hotel Miradouro

Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, voltámos atrás no tempo para relembrar os restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.

Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa

1972: O restaurante bar de Lisboa que se transformou na segunda casa do Expresso

1973: O tributo a Eusébio e uma mesa para a eternidade

1974: O Pote que ajudou a cozinhar a Revolução dos Cravos

1975: NOVOS PRODUTOS NAS PRATELEIRAS

Consumada a Revolução dos Cravos, o Recheio diversifica cada vez mais os produtos à venda. Isabel Soares entrou com 20 anos para a loja da Estrada de Mira, na Figueira da Foz, e nota que, com a passagem a cash & carry, se disponibilizam “frutas em caixa, como pêssegos e maçãs, legumes como a cenoura, que também não havia no início, a couve lombarda e a couve flor, batatas e azeitonas”. Mais tarde, começou tudo a vir embalado da fábrica: as azeitonas em baldes de 10 kg, as caras de bacalhau, o bacalhau em caixas de 5 kg, e depois 20 kg. "Começámos a vender também muito queijo em barra, o Flamengo em bola e o Beirão, redondo", refere. Joaquim Pereira, outro antigo funcionário do grupo, acrescenta que com a vinda dos retornados, “habituados a outro nível de vida” em África, expande-se o mercado por grosso e passam a estar disponíveis produtos que até aí “o comum dos portugueses não conhecia”, e quer experimentar. Dos desodorizantes ao Ginger Ale e à Coca Cola - cuja importação foi proibida pelo Estado Novo, avesso a gastos considerados “supérfluos” e em produtos estrangeiros. Isabel salienta ainda novidades como a pintura dos corredores, o escritório na parte de cima, o início da venda para restaurantes, a garrafeira e a organização dos corredores por tipologia de produtos.

A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 39 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro .

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