13 novembro 2013 8:00
13 novembro 2013 8:00
À conversa com um amigo católico, um católico xiita para sermos rigorosos, aponto para o cartaz do filme e digo que "não vi mas já gosto, filmado por Scott e escrito por Cormac não pode ser mau". Reacção do Ayatollahzinho? Que lá estava eu com a devoção errada por Cormac McCarthy, um escritor muito parecido com Rubem Fonseca e profundamente relativista, que abraça o mal, justificando-o, relativizando-o, o mal não deixa de ser o mal só porque está bem escrito, sabes? Concordo com a primeira asserção, Cormac é parecido com Fonseca, mas não concordo com a segunda: não, o ponto de Cormac e de Fonseca não é o relativismo.
Ou melhor, não sei qual é a intenção de Cormac (e de Fonseca), só posso descrever o impacto que as suas histórias têm na minha pobre e, vá, cristã cabeça. Quando obriga o leitor a ver o mundo através dos olhos de um assassino ou mesmo de um estuprador, Cormac não quer relativizar o mal que aquelas personagens lançam sobre o mundo. Julgo que não é isso. Cormac não é um míssil amoral e relativista, é uma bomba moral (não confundir com moralista, sff). Os livros de Cormac McCarthy obrigam o leitor a ver o mal na sua dimensão humana; naquelas páginas, o mal não é um distante e abstracto horror provocado por um ser luciférico, titânico, não-humano, o mal é ali uma presença concreta provocada por um homem, que poderia ser eu. Ora, há dias, defendi que a leitura de Cormac deixa-nos sozinhos, no escuro. Mas se calhar não é bem assim.
Quando vemos o interior de um pecador, quando vemos o mundo através dos olhos de alguém que pisou todos os riscos, a sensação de desconforto que emerge na nossa cabeça não é o deserto amoral. É, isso sim, a urgência do perdão. Sim, o perdão. Porque já sentimos a humanidade daquele ser perdido, já sentimos a sua fragilidade, uma fragilidade presente até nos momentos mais violentos. Somos forçados a perdoá-lo. O assombramento provocado por Cormac não resulta, portanto, das trevas amorais que apontei há dias. A causa está noutro lado: é aquele medo que está antes do perdão e, acima de tudo, é o cansaço que fica depois do perdão, é o quebranto psíquico e até físico depois da redenção. Ler Cormac é extenuante porque é uma experiência religiosa. O meu amigo está errado e você, caro leitor, não se deixe enganar pela presença fofa de Cameron Diaz e Penélope Cruz: este filme não dá palmadinhas no ombro, é barra pesada.
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