A Tempo e a Desmodo

O homem que falava através das mulheres

24 maio 2013 7:45

24 maio 2013 7:45

Bruno, estás certo onde Vasco Pulido Valente está errado. No prefácio do "Amor de Perdição" da Alêtheia, VPV diz que o centro do romance é Simão, porque "a violência de Simão destrói o mundo". Sim, é verdade. Mas é o amor de Teresa que abre as portas a essa violência e, no final, é a paixão desta menina-mulher que redime o trajecto violento de Simão. Além disso, é o carinho de Mariana que ampara Simão durante a odisseia. Sem Teresa e Mariana, a violência do valdevinos não tinha por onde passar; seria uma água pantanosa, sem direcção. O amor incondicional daquelas mulheres é o verdadeiro motor da tragédia de "Amor de Perdição". Aliás, o amor da mulher camiliana, excessivo, terminal e consciente, é a grande descarga eléctrica de toda a obra de Camilo. Portanto, acho que acertas no alvo quando afirmas que "sem a descoberta juvenil propiciada pela troca de olhares de janela a janela, talvez o destino homicida do sanguíneo Simão fosse idêntico, mas não teria a beleza do amor para o redimir". 

Teresa é a "menina-mulher de têmpera camiliana, antes quebrar do que torcer", que recusa as ordens do pai para obedecer ao amor imaculado que sente por Simão. Como sabes, esta feminilidade armada até aos dentes é uma das coisas que mais me atraem em "Amor de Perdição" e nos restantes livros de Camilo. As Teresas, as Ângelas e as Angélicas fazem-me lembrar as mulheres de Howard Hawks. Tal como a mulher hawksiana, a mulher camiliana mostra sempre aquela tigresa que rasga a pose de dondoca, que recusa o papel de acessório e que assume a sua própria vontade, entrando em ruptura com o mundo dos homens. E, apesar de ser forte, não é feita de músculo e buço. Ela é bonita e feminina. É por isso que a sua presença é tão subversiva para os códigos masculinos: ela é forte sem nunca ser máscula. 

Meu querido amigo, esta presença feminina em Camilo é tão forte, que me atrevo a dizer o seguinte: Camilo tinha várias costelas stendhalianas. O que quero dizer com isto? Se a minha memória paquidérmica não me falha, Simone de Beauvoir afirmou que Stendhal foi o primeiro romancista a projectar as suas opiniões através de personagens femininas. À sua maneira, Camilo foi o nosso Stendhal. Camilo falava através das amazonas que criava. Perceptível em "Amor de Perdição", esta marca torna-se ainda mais evidente nos melhores romances do feiticeiro de Seide.

 

Da série "Cartas a amigos"

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