8 maio 2013 8:00
8 maio 2013 8:00
Bruno, começo por dizer que Alexandra Alpha é a minha única paixão dentro da obra de Cardoso Pires. Noutros livros, encontrei obviamente muitas passagens brilhantes, porque Cardoso Pires domina, entre outras coisas, a arte do diálogo - coisa rara na ficção portuguesa. Além disso, ele define personagens com pontaria de Guilherme Tell. Bastam duas ou três setas para a personagem cardosopirista entrar na nossa cabeça já completamente formada. Um exemplo de O Anjo Ancorado: "À rapariga tremiam-lhe os dedos. Tinha-os queimados do tabaco, e eram secos, maltratados, até. Isso queria dizer insónias, arrelias de alma, vida de pessoa só. Percebendo os dedos, lendo-os por fora, o homem ao findar o serão falou-lhe como se deve falar a uma rapariga assim". A passagem é boa, sem dúvida, mas repito: o livro não me agarra, não me fascina, não me apanha de frente, e a ficção ou é uma colisão frontal ou não é. Foi assim com Anjo Ancorado, Jogos de Azar, Delfim, República dos Corvos, etc. O cenário só mudou com Alexandra Alpha. Este, sim, foi essa colisão frontal.
Tal como dizes neste verdadeiro Google Maps da literatura portuguesa, Alexandra, a publicitária da Alpha Linn, é a plataforma giratória de uma galeria notável de personagens que ilustram a sociedade portuguesa dos anos 60 e 70. Está lá tudo: o queque de esquerda dado às "pedantices francófilas", para usar uma expressão tua; o jovem padre contestatário, representante dos católicos progressistas liderados espiritualmente por Ruy Belo; a professora que transfere a frustração amorosa para a mensagem de ódio do PCP; as "amigas malfodidas" que parecem representar um país de malfodidos (Alexandra é a única pessoa bem resolvida naquele Portugal); o marialva do Alentejo (o tio Berlengas) e o marialva de Trás-os-Montes (Sebastião Opus Night), dois Palma Bravo mais interessantes do que o Palma Bravo original, dois representantes da ordem social derrotada pelo 25 de Abril. O conjunto sociológico é notável. Aliás, atrevo-me a dizer que Alexandra Alpha está para os anos 60 e 70 como Sinais de Fogo está para os anos 30. É um fresco da sociedade que fez a transição do Estado Novo para a democracia. E tudo isto é regado com a técnica do monólogo. Alexandra Alpha é uma gigantesca teia de dezenas de monólogos distintos, algo que, porventura, influenciou o nosso Francisco.
Neste fresco, qual é o papel concreto de Alexandra? Tal como salientas, a sua independência financeira e emocional (recusa o casamento, cuida do filho do seu amante brasileiro, é soberana na cama, "amande-se mesmo à pai Adão") metia medo aos homens do antigamente, a começar pelo tio, e às mulheres da geração anterior, a começar pela mãe. Ou seja, Alexandra representa a geração de mulheres que matou o salazarismo. Emancipadas pelo trabalho e pela pílula, as Alexandras, entre elas a minha mãe, destruíram a base social daquele autoritarismo versão marialva.
Mas este fresco histórico é apenas a carapaça. Sem uma personagem forte no seu centro, Alexandra Alpha seria um relato sociológico e não um romance. E, meu caro amigo, Alexandra é mesmo um íman literário. Queremos estar com ela, queremos aqueles "seios precisos", aquelas "coxas densas", aquele robe desleixado, mas, acima de tudo, queremos aquela cabeça dentro da nossa cabeça. Durante as dezenas e dezenas de páginas dedicadas às personagens secundárias, perdemos o rasto a Alexandra e isso, confesso, deixa-me angustiado. Acho até que escrevi à margem qualquer coisa como "ó Cardoso Pires, onde está a nossa mulher?" E por que razão Alexandra é tão poderosa literariamente? Haverá muitas respostas, mas a minha está na página 114 do teu livro: quando começa a sentir amor por aquele jovem oficial do ultramar, Alexandra usa de imediato certas memórias para iniciar um processo de desapaixonamento. Nos antípodas da mulher-anjo, Alexandra é a mulher-soberana que sabe desapaixonar-se, um verbo que nós, homens, só concebíamos em cabeças masculinas. Julgávamos que o segredo era só nosso. Gandas meninos.
Da série "Cartas a amigos"
O purgatório dos retornados