12 maio 2011 8:53
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José Rentes de Carvalho convidou-me para apresentar o seu último livro. Aqui fica o resultado dessa imprudência.
Nem que seja por breves instantes, esqueçam os consagrados e as esperanças do costume, e dêem atenção a J. Rentes de Carvalho, este transmontano que já conquistou a Holanda literária há muito tempo. A obra deste globetrotter de Trás-os-Montes merece um pequeno altar nas nossas letras, os livros deste cosmopolita-que-não-perdeu-o-lado-silvestre têm dimensão suficiente para cobrir a minha aposta: Rentes de Carvalho é um dos grandes escritores portugueses do nosso tempo.
Este novo romance, "La Coca", volta a evidenciar as duas grandes características da arte narrativa de Rentes, já demonstradas em "Ernestina" e "A Amante Holandesa". A primeira característica está relacionada com a natureza do narrador. Os romances de J. Rentes de Carvalho são sempre palco de um narrador às voltas com o passado, às voltas com os labirintos da memória. Não, não estamos perante os labirintos lúdicos de Borges. Aqui a memória bate mesmo no osso, onde dói. Donde o tom quase sempre autobiográfico da prosa rentista. A segunda característica está relacionada com a elaboração de grandes frescos sociais e históricos de Portugal. E, neste ponto, Rentes é insuperável nas nossas letras: os seus romances permitem ao leitor cheirar, sentir, ouvir e apalpar o Porto e Trás-os-Montes da primeira metade do século XX ("Ernestina"), e abrem a porta ao ambiente opressivo e violento desse Portugal profundo que só aparece nas páginas do Correio da Manhã ("A Amante Holandesa").
Em "La Coca", o narrador e personagem principal é um escritor português radicado na Holanda, que regressa às terras da sua juventude no Alto Minho. Enquanto se recorda do contrabandismo que marcava a vida daquela região nos tempos - supostamente - pachorrentos do salazarismo, este narrador/personagem tenta fazer um retrato do tráfico de droga da actualidade. Desta forma, Rentes traz para a grande literatura um mundo que a elite urbanóide não associa a Portugal: os assassínios, as lanchas voadores, a violência latente que, volta e meia, explode. Ou seja, Portugal de Rentes não é o Portugal dos brandos costumes, essa ficção salazarista que a democracia não conseguiu destruir.
Ao revelar este talento quase único para biografar os segredos inconfessáveis do Portugal supostamente brando, ao apontar o dedo para o abismo que existe entre a falsa brandura e a real bruteza dos portugueses, ao mostrar a tensão entre a beleza esmagadora daqueles montes mágicos e a violência que corre nas veias das gentes, J. Rentes de Carvalho reserva para si um lugar de destaque na nossa literatura. Rentes é o profeta de um Portugal que importa pôr a descoberto. Um Portugal belo e violento, um Portugal trágico.