Blitz

dEUS ao vivo no Coliseu de Lisboa: a arte de saber partir tudo

No regresso ao Coliseu dos Recreios, os belgas dEUS foram corajosos: tocaram muitas canções de “How to Replace It”, o primeiro álbum que lançaram em mais de dez anos, foram ao baú resgatar momentos de discos menos famosos, mostraram-se económicos nos ‘clássicos’ da década de 90 e, ainda assim, tiveram o público na mão. Melhor: em momentos incandescentes, como ‘Instant Street’, foram ferozes como nunca. No fim, a casa veio abaixo

Já vimos dEUS muitas vezes. Por esta altura, ano da graça de 2023, já não valerá a pena contar a feliz história em Portugal de uma banda belga que roubou os corações de uma imensa minoria quando, em meados da década de 90, começou a mostrar por cá a até aí inesperada alma do rock alternativo da Flandres. Nem é bem um plural majestático. Já vimos dEUS mesmo muitas vezes: o signatário destas linhas, o estimado leitor, o público que neste início de férias da Páscoa não chegou para encher o Coliseu dos Recreios, a mesma sala onde a banda se tinha apresentado na última vinda a Lisboa com um propósito mais festivo, o 20º aniversário do álbum “The Ideal Crash”.

O que pode mais um concerto dos dEUS trazer de novo? Várias coisas, surpreenda-se. Desde logo um alinhamento fortemente baseado no ‘terror’ daquele admirador que, entretanto, envelheceu e perdeu o fio à meada de uma banda a que outrora prestara devoção: música nova. A opção deve ser respeitada. Com o primeiro álbum em onze anos lançado há poucos meses, os belgas desejam provar que continuam a saber fazer isto. “How to Replace It” foi visitado em oito momentos, não surpreendentemente aqueles em que o entusiasmo deu lugar ao respeito, em que a câmara do telemóvel, a voz e as pernas descansaram um pouco. É um disco que tem dias: começa empolgante com a bateria marcial, a toada operática e o ambiente severo do tema-título, um dos que ‘ficam’ (e canção de abertura do concerto de domingo), convida à distração nos anos 80 sintéticos de ‘1989’ ou na desengraçada ‘Man of the House’.

Outra ‘novidade’: temas que julgávamos ‘tardios’ na discografia de uma banda que nos anos 90 editou um trio de discos infalível (“Worst Case Scenario”, “In a Bar Under the Sea”, “The Ideal Crash”) tornam-se novos clássicos, canções que provavelmente teriam merecido maior atenção no seu tempo, aquele em que porventura já olhávamos para trás com saudades. À distância de mais de uma década, ‘Constant Now’, de 2011, e ‘The Architect’, de 2008, já são ‘da casa’.

Coesos, à frente da bateria de Stéphane Misseghers, apresentam-se lado a lado Klaas Janzoons (teclados/violino elétrico), Tom Barman (voz, guitarra, percussão synth), o regressado Mauro Pawlowski (guitarra) e Alan Gevaert (baixo). Tocam entrosados e alto, um volume que favorece, paradoxalmente, as canções mais atmosféricas, como a espectral ‘Quatre Mains’ ou a quase psicadélica ‘Sun Ra’, mais dois momentos pouco óbvios ‘sacados’ ao repertório lançado no século XXI. Raridade ao vivo, ‘W.C.S. (First Draft)’, composta no início dos anos 90 por Tom Barman e Stef Kamil Carlens, o baixista e cofundador que saiu antes de “The Ideal Crash” (1999), marca presença, reminiscente de velhos (e hoje inacessíveis) prazeres narcóticos dos dEUS mais próximos de Tom Waits.

Se ‘Fell Off the Floor, Man’ e, já no encore, ‘Roses’ provocaram maior comoção entre a velha guarda, nada se compara ao efeito produzido pelo crescendo infernal daquela canção inicialmente folk que se agiganta e, em cinco minutos que parecem vinte, soa maior do que o mundo. ‘Instant Street’, para surpresa de quem, em 1999, achou que os dEUS já não eram bem um grupo de ‘música alternativa’ quando ouviu os amigos perguntar “que banda nova gira é esta?”, é um colosso. E, diz quem a vê e ouve transposta para o palco há quase 25 anos, soa cada vez mais impressionante. Riffs de guitarra para cantar em coro de olhos cerrados e o amanhã que se lixe? Vamos a isso.

Efeito de êxtase similar voltou no fim de um concerto em que Tom Barman comunicou sempre em português (“a minha professora está nesta sala”, revelaria o ginasticado vocalista, inexcedível na entrega física). Depois de uma ‘Bad Timing’ quentinha mas não esfusiante, e já arrumados os agradecimentos e vénias da praxe ( “um bom fim de fim de semana”, palavras de Barman já bem perto da meia-noite), chegaria a surpresa reservada para os amigos portugueses. Ausente nesta digressão, ‘Suds & Soda’ e o seu violino doido trouxeram a juventude de volta aos ossos de um público que, incentivado a tal, encheu o palco do Coliseu numa celebração coletiva que uma pandemia, há uns anos, tentou matar. Banda, público, tudo ao molhe e fé em dEUS. A gente arrepia-se quando está junta.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: lguerra@blitz.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate