Jorge Palma com todos: duas horas de devoção ao rock com o Palma's Gang em Lisboa
Palma's Gang
Rita Carmo
Palma's Gang
Rita Carmo
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Este sábado, o supergrupo sonhado por Zé Pedro nos anos 90 reuniu-se no Capitólio, em Lisboa, para um concerto fervilhante de energia e entusiasmo. Desaparecido em 2017, o guitarrista dos Xutos esteve presente em espírito, na camaradagem & alegria contagiantes de Jorge Palma, Flak, Alex e Kalú
“Oh Jorge!”, gritou alguém na plateia do Capitólio, em Lisboa, quando o primeiro de dois concertos do Palma's Gang naquela sala já se aproximava do fim. “Tens de nos dar disto mais vezes!” A sugestão, repleta de convicção, acaba por traduzir bem o sentimento dos espectadores que esgotaram o espetáculo de sábado à noite. Com uma plateia em parte contemporânea dos músicos em palco, mas também com vários fãs mais jovens e até crianças, este foi um encontro de várias gerações unidas pela paixão à mesma causa: o rock. Formados na aurora dos anos 90, como aventura elétrica em redor do cancioneiro de Jorge Palma, os Palma's Gang responderam, neste regresso aos concertos, à sede que muito público parece ter tanto da boa e velha combinação guitarra, bateria & baixo, como de um certo ambiente de “garagem” que o Capitólio (sala na qual Vasco Sacramento, que detém a concessão do espaço, pretende recriar o espírito dos clubes das grandes metrópoles) soube oferecer.
Nada disto - público sôfrego de celebrar, ambiente apropriado aos festejos - seria suficiente se em cima do palco não estivesse uma banda à altura. Mas bastaram alguns segundos de ‘Portugal, Portugal’, a canção com que a noite teve começo, para confirmar que Jorge Palma, o líder deste gangue do bem, está numa forma imaculada. Este ano, para celebrar meio século de uma carreira singular, o músico anunciou uma série de concertos temáticos. Vimos o primeiro, nos jardins do Palácio Baldaya, em Benfica, quando o outono era apenas uma aragem noturna, e deixámo-nos maravilhar pela solidão habitada por piano e voz, em redor do álbum “Só”. Seguiram-se vários espetáculos no Tivoli, dedicados a discos como “Com Uma Viagem na Palma da Mão”, “Lado Errado da Noite” ou “Bairro do Amor”, com banda. E este fim de semana a jornada chega ao final, com duas atuações do Palma's Gang - atravessando a Avenida da Liberdade, Palma troca o intimismo do Tivoli pela libertação do Capitólio (em modo plateia em pé) e volta a encontrar-se com os companheiros com quem ‘pintava a manta’ no Johnny's Guitar: Flak na guitarra, Alex Cortez no baixo e Kalú na bateria. O “ideólogo” do grupo e mentor desta e tantas outras amizades, Zé Pedro, já não está entre nós - assinala-se dentro de poucos dias o quinto aniversário da sua partida -, mas o seu espírito esteve bem presente esta noite, na camaradagem e também na homenagem ao rock. “Nesta guitarra está o Zé Pedro”, disse Jorge Palma ao arrancar para a frenética ‘Picado pelas Abelhas’, canção de 1982 que encerrou a noite, com o som das cordas do malogrado guitarrista, resgatado ao disco ao vivo de 1993, a ouvir-se no Capitólio. Foi a única alusão direta ao homem dos Xutos & Pontapés, num serão de poucas palavras mas de muitas canções e ainda mais risos e cumplicidades.
Ao cabo de tantas semanas de concertos e ensaios, dizíamos, Jorge Palma mantém a voz na textura e temperatura certa para duas horas de rock, com escassos momentos de abrandamento à guitarra acústica (aliás, aos 72 anos, o autor de ‘Frágil’ será dos poucos a conseguir soar tão rock em modo unplugged como ligado à corrente). Visivelmente feliz por à sua espera ter uma plateia tão numerosa como ternurenta, Jorge Palma conta, também, com o contagiante entusiasmo deste supergrupo: na guitarra, Flak, ex-Rádio Macau, faz as delícias dos fãs de solos e riffs heroicos (não por acaso, vislumbram-se no público t-shirts de bandas como os Led Zeppelin), conquistando também pela alegria de estar em palco, traduzida em sorrisos rasgados. Mais discreto visualmente, mas imprescindível no seu baixo-pêndulo, Alex Cortez, outra das peças “de raiz” dos Rádio Macau, posiciona-se à esquerda, com Kalú, dos eternos Xutos, a completar a frente de ataque na sua bateria engalanada com um galhardete do Futebol Clube do Porto.
A ‘Portugal, Portugal’, de imediato entoada pelo público, segue-se ‘Eles Já Estão Fartos' (1977), o que confere uma certa toada contestatária ao início do concerto. Verdadeiro canivete suíço da música portuguesa, a obra de Jorge Palma oferece canções para todas as ocasiões - e a vontade de tocar é tanta que, em ‘Velho no Jardim’ (1975), se lhe parte uma corda da guitarra, o que obriga ao recomeço da canção (na mesma altura, um espectador ao nosso lado sentiu-se mal, sendo prontamente assistido pelos outros fãs e também pelos seguranças da sala).
Nos arranjos roqueiros imortalizados no único disco do Palma's Gang - gravado ao vivo no Johnny's Guitar e editado em 1993 -, algumas das músicas ganham cores quase grungy (é o caso de ‘Razão de Estado’, originalmente de 1985). Noutros temas da lavra de Jorge Palma, tocados esta noite mas não incluídos naquele álbum, é a palavra que fala mais alto: em ‘Obrigação’, canta-se ‘Para haver amor não pode haver obrigação!", com muitos pontos de exclamação; logo a seguir, ’Jeremias' é brindada com um coro tão esperado como avassalador. Já ‘Lobo Malvado’ tem direito a uivos esforçados de Jorge Palma, no início e no final do tema que antecede o hino ‘Deixa-me Rir’, introduzido no alinhamento sem apresentações ou fanfarras. Aliás, como já escrevemos, há poucas palavras, esta noite, além das transportadas por estas canções de sempre, cantadas em uníssono por uma das plateias mais sorridentes que nos lembramos de ver.
Antes do primeiro encore, ‘Podem Falar’, do ano em que o punk despontou, ou seja, 1977, e ‘O Homem Invisível’, de 1985, elevaram a temperatura em palco e fora dele. Pedido euforicamente, e com recurso a cânticos futebolísticos, o ‘prolongamento’ desta partida contemplou ainda vários golos de belo efeito, das acústicas e bluesy ‘No Tempo dos Assassinos’ e ‘Dormia Tão Sossegada’ ao rock visceral de ‘Espécie de Vampiro’, com Palma & público a gritarem a promessa (ou ameaça?): “É só para beber/gota a gota do teu sangue”.
Quase duas horas depois de ‘Portugal, Portugal’ oficializar o regresso do Palma's Gang aos palcos, os berros de “só mais uma!” renderam, na verdade, mais duas prendas ao público que encheu o Capitólio. Primeiro, o baixo de Alex desenhou o caminho para a Nova Iorque de Lou Reed e ‘Walk on the Wild Side', numa viagem que teria certamente feito as delícias do grande devoto da religião rock que era Zé Pedro. Nem de propósito, logo a seguir, Jorge Palma refere pela primeira vez o nome do amigo - seu e de todos nós, numa noite onde todas as figuras que puderam estar presentes, do antigo porteiro do Johnny Guitar, Rui Kilito, à antiga agente da banda, Ana Moitinho, compareceram neste novo capítulo da história do Palma’s Gang. Foi uma prova impressionante de vitalidade que se repete, no domingo, também no Capitólio.
O alinhamento do concerto do Palma's Gang no Capitólio, a 19 de novembro de 2022
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