Blitz

101 canções que marcaram Portugal #91: ‘Encosta-te a Mim’, por Jorge Palma (2007)

Jorge Palma
Jorge Palma
D.R.

Depois de décadas de percurso musical, de reverência por parte de um público fiel e de as suas canções fazerem parte do nosso quotidiano, o grande êxito de vendas surgiu apenas em 2007. ‘Encosta-te a Mim’ era uma balada melosa e ondeante. Composta numa guitarra que pertencera a Zeca Afonso, vendeu 30 mil cópias e fez Jorge Palma entrar no mainstream para que um novo público descobrisse o seu passado. É a 91ª de 101 canções que marcaram Portugal

Jorge Cerejeira

101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.

‘Encosta-te a Mim’, Jorge Palma (2007)

27 de Novembro de 2008. Las Vegas. Um pastor vestido de Elvis Presley celebra o casamento de um casal vestido de negro. A noiva entra na pequena capela (Viva Las Vegas) ao som de ‘Encosta-te a Mim’ e aceita como esposo o compositor dessa mesma canção. Jorge Palma e Rita Tomé selam uma união já de anos com a canção de maior sucesso da sua carreira. Fora, estava a ser, um ano de glória e o feito merecia comemoração de arromba.

Estreou-se em 1972 a solo, mas, apesar da aclamação e reverência, só 35 anos depois é que Jorge Palma alcançou um sucesso retumbante, uma transversalidade nacional que nunca ocorrera – nem mesmo ‘Bairro do Amor’, a sua canção mais emblemática até então, atingira a amplitude de ‘Encosta-te a Mim’. A glória é imprevisível, composta de fatores pouco objetivos, e os músicos habituaram-se a não criar expectativas em relação ao sucesso que as suas composições possam vir a ter. A aclamação de Jorge Palma (emende-se: o seu êxito de vendas) deu-se com uma canção que, como um exemplo da sua (des)intuição, não estava para ser incluída no álbum. Todavia, e porque o destino se constrói de acasos, Jorge Palma ia tocando aos seus companheiros dos Rio Grande ‘Encosta-te a Mim’, referindo-se à canção como uma ‘baladazita’. Simplesmente a canção, mesmo que ainda sem arranjos, é uma grande canção – com ou sem arranjos. E Palma foi sendo incentivado por aqueles a quem mostrava ‘Encosta-te a Mim’ a incluí-la no álbum que nem nome tinha ainda.

Quem decidiu o alinhamento do álbum não foi Jorge Palma, mas a editora – que, num rasgo de intuição, decidiu colocar a canção a abrir “Voo Nocturno”. Caiu nos ouvidos de Portugal. Portugal reviu-se nos primeiros acordes da canção e na sua letra melosa e ondeante. Os quatro minutos que dura ‘Encosta-te a Mim’ provocava sorrisos e silêncios – como se as palavras reproduzissem os amores que todos vivíamos ou tínhamos vivido. A música era uma catarse para os erros cometidos; um pedido de perdão por um passado sem orgulho. É daquelas composições que nos fazem empatizar com a sua matéria sentimental. E terá sido porventura essa empatia que fez de “Voo Nocturno” ter alcançado disco de platina e mantido no topo das tabelas de vendas em Portugal por quatro semanas consecutivas.

Bem-aventurada a guitarra ‘Martin’ em que Jorge Palma compôs ‘Encosta-te a Mim’; esta guitarra pertencera a Zeca Afonso e, para além da sua sonoridade, Jorge Palma parecia absorver, como uma invocação, o magnetismo das composições de Zeca. Como curiosidade infeliz, a guitarra acabou por ser roubada. Ainda assim, Jorge Palma tinha receio de que ‘Encosta-te a Mim’ fosse uma balada piegas, entediante e enjoativa. Não o foi, não. É uma canção que vive de uma harmonia entre as palavras de Jorge Palma, a sua melodia, o primeiro compasso (magnético) de Marco Nunes, músico dos Blind Zero – que criou a entrada para ‘Encosta-te a Mim’ – e os arranjos dos músicos de estúdio (sem a interferência de Jorge Palma, que nem estava presente).

Há décadas que Jorge Palma era reverenciado. Alcançara sucesso com álbuns de originais (nas décadas de 70 e 80) e atravessara os anos 90 a recriar composições suas ao piano (“Só”) ou em formato rock and roll (“Ao Vivo no Johnny Guitar”). Vivera décadas de experiências exuberantes que povoaram depois o seu percurso musical – sinuoso, marginal e desconcertante. Mas também esmerado, elegante e sofisticado. Emigrara para a Dinamarca por se recusar a lutar numa guerra que não era a sua. Na Dinamarca, tomou contacto com o ‘estado’ de Christiania, uma comunidade anárquica, insubmissa e livre. Aí nasceu o ‘Bairro do Amor’. Haveria de regressar, de embalar a trouxa e de zarpar muitas vezes – com um ímpeto de errância e de se esquivar de formalismos. Conheceu Ary dos Santos (cujas orientações seriam o tirocínio do seu percurso enquanto compositor). Dirigiu a orquestra que acompanhava Amália no tempo do PREC. Esteve presente no primeiro Vilar de Mouros. Participou num Festival RTP da Canção.

Teve tempo de viver, de conviver, de errar e emendar, de transgredir. Não veio do nada, como escreveu, mas trilhou o seu percurso sem bússola, sem destino. O importante no seu destino foi mesmo o caminho, a estrada, o percurso. E foi esse percurso que lhe permitiu, como uma alegoria de si mesmo, compor dezenas de canções – celebradas, repetidas, festejadas ao longo de décadas. Mas haveria de ser uma canção delicada, ensaiada numa guitarra que pertencera a Zeca Afonso, que estimularia novos seguidores a descobrirem o seu passado, o muito bom que fizera até ‘Encosta-te a Mim’.

‘Voo Nocturno’ é um álbum afortunado. Vivendo de acasos. De referências (o título provém de uma novela de Saint-Exupéry, que Jorge Palma lera em criança) e de afinidades insondáveis. Fez Jorge Palma passar da margem para a intimidade. ‘Encosta-te a Mim’ fê-lo passar a fazer parte do mainstream – ainda que não desdenhando de exibir excentricidade e, por isso, de nos surpreender.

Recebe-me bem
Não desencantes os meus passos
Faz de mim o teu herói
Não quero adormecer.

Ouvir também: ‘The Nine Billion Names Of God’ (1972). Foi por aqui que tudo começou. O título provém de um conto fantasioso de Arthur C. Clarke. Arnaldo Trindade arriscou editar este single transgressor da matriz musical dessa época. Percebe-se as grandes referências musicais de Jorge Palma de então: Neil Young, James Taylor e Elton John.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas