Apaixonados pelo presente e sem vergonha do passado, os Arctic Monkeys deram no MEO Kalorama um dos seus melhores concertos em Portugal
Arctic Monkeys no MEO Kalorama 2022
Rita Carmo
Arctic Monkeys no MEO Kalorama 2022
Rita Carmo
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Quatro cavalheiros britânicos, liderados por “Sir” Alex Turner, deram um concerto para mais tarde recordar, na segunda noite do novo festival de Lisboa, o MEO Kalorama. Sem precisarem de falar muito, os Arctic Monkeys deixaram as suas canções falar por si: e a comunicação foi perfeita
Faltavam dois ou três minutos para as onze da noite quando, no palco grande do novo festival de Lisboa, a voz de Mike Skinner, aka The Streets, se calou, e a música ambiente (sem ofensa para o clássico ‘Turn The Page’, que então se fazia ouvir) deu lugar a um mar de gritos. São os gritos de mil saudades, que Alex Turner, nunca demasiado efusivo, retribui erguendo os braços, em sinal de saudação e agradecimento. Numa linha reta, na frente do palco, perfilam-se então o homem que mais piropos ouvirá esta noite ("Te amo, Alex!", exclama a nosso lado um espectador espanhol), Jamie Cook na guitarra e Nick O'Malley no baixo. Lá atrás, sorridente mas implacável, Matt Helders prepara-se para usar a sua bateria para iniciar o ritmo cardíaco da banda que, há coisa de 20 anos, teve a benfazeja ideia de trocar Sheffield, em Inglaterra, pelo mundo. Na hora e meia que se seguiu, vimos um dos melhores concertos dos Arctic Monkeys em Portugal (e já lá vão nove, desde a estreia em 2006, no pequeno Paradise Garage, em Alcântara). Com a experiência e maturidade de quem já terá dado milhares de espetáculos, mas com um entusiasmo bastante superior àquele que demonstraram na anterior passagem por Portugal, no NOS Alive em 2018, os britânicos atingiram um equilíbrio notável. E provaram que, às portas do sétimo álbum ("The Car", nas lojas em outubro), têm um cancioneiro tão rico que todas as canções são “aquela”, sendo justamente levados em ombros por uma plateia em delírio.
De visual mais informal do que foi hábito durante a “era” de “Tranquility Base Hotel + Casino”, o álbum de 2018, Alex Turner não demorou a dar ao povo o que o povo queria ouvir, mas também cantar e, em última análise, viver. Neste momento, os Arctic Monkeys podem dar-se ao luxo de começar um concerto com um dos seus maiores êxitos: ‘Do I Wanna Know?’, um dos pontas de lança de “AM”, o prodigioso álbum que os catapultou para a liga das bandas que tocam em estádios e recintos afins. Antes que a multidão da Bela Vista se consiga recompor da injeção de sensualidade rock, chega o relâmpago ‘Brianstorm’ e, puxando do cartão “terceira idade”, damos por nós a pensar que não deixa de ser emocionante que, 16 anos depois do primeiro concerto por cá, descortinemos na plateia uma réplica do efeito “pés em todo o lado menos no chão” a que assistimos quando éramos todos bastante mais novos. Podem estar mais sofisticados e procurar, no último álbum e aparentemente no próximo, referências menos ligadas à corrente, mas nesta sexta-feira à noite a energia de ‘Teddy Picker’ (não tocada ontem, em Espanha), ‘The View From The Afternoon’ ou ‘From The Ritz to the Rubble’ é a mesma de sempre, contagiando um oceano de gente.
Durante décadas, a música popular vinda do Reino Unido conquistou e moldou ouvidos em todo o mundo. Mas nem sempre as apostas do rock britânico lograram vingar em Portugal, por falta de identificação com as referências ou com a própria abordagem. Filho de um melómano e de uma amante das letras, Alex Turner logrou quebrar essa barreira, e não deixa de impressionar a forma como as suas crónicas - das mais juvenis, e disparadas em rajada, às irónicas e contemplativas - se imiscuíram no imaginário de falantes de uma outra língua, de cidadãos de um outro país. É um pequeno império que os Arctic Monkeys construíram aqui, cogitamos em ‘Crying Lightning’, e uma pequena magia que se opera quando ‘Teddy Picker’ liberta a energia de 80 mil pés e 40 mil memórias afetivas (contas feitas por alto, com base nas estimativas da organização).
À sua frente, a banda tem gente que em várias idades cresceu a ouvir estas canções, e esse é um tipo de compromisso e fidelidade que não se trai. Em todo o caso, os músicos não tomam a rendição por garantida e dão tudo para fazer um brilharete em cada canção. Em ‘Potion Approaching’, Alex Turner, sem guitarra mas com óculos de sol, lembra-nos que, se no último álbum confessava que só queria ser um dos Strokes, em 2009, ano de “Humbug”, provavelmente ambicionava ser Josh Homme, timoneiro dos Queens of the Stone Age e rei do rock do deserto. Na adorável ‘Cornerstone’, recupera as primeiras aproximações à vertente baladeira (afinal, é possível que, a certa altura, também tenha desejado ser Burt Bacharach). E, na mesma sequência, um dos álbuns menos citados dos Arctic Monkeys - “Suck It and See”, de 2011 - mostrou o seu brilho, através do belíssimo petardo ‘Library Pictures’ e de ‘That’s Where You Were Wrong', com o lápis aguçado de Mr. Turner a desenhar a frase “and suddenly the sky was a scissor”.
Tão bom cantor como narrador, um dos frontmen mais discretos do rock contemporâneo acabou por comunicar na perfeição com o seu público, sem precisar de dizer mais do que meia dúzia de palavras, “obrigado” sendo uma delas. Para as duas canções de “Tranquility Base…”, ‘o tema-título e ’One Point Perspective', guardou alguma teatralidade lacónica; à nova ‘I Ain’t Quite Where I Think I Am' emprestou ginga funky e em ‘Knee Socks’ foi a cara risonha de uma banda sexy que, claramente, se estava a divertir.
Sem surpresa, mas com estrondo, dois dos momentos mais efervescentes do concerto acabaram por ser faces opostas da mesma moeda. Primeiro, ‘I Bet You Look Good on the Dancefloor’, cuja passagem pela Bela Vista representámos no nosso bloco de notas com um desenho semelhante a um abalo de 9.5 na Escala de Richter. Lançado há 17 anos, o primeiro single daquela que, então, era apresentada como uma “banda do Myspace” prova que até podemos envelhecer, mas a adolescência nunca morre, conservando-se a sua energia primitiva em cápsulas como uma canção de 2 minutos e 54 segundos.
Ao segundo álbum - “Favourite Worst Nightmare”, de 2007 - a rapaziada já tinha corrido mundo e conhecido outros sentimentos, o que lhes permitiu escrever ‘505’. E nada como a partilha de um coração partido para soprar um arrepio coletivo numa multidão. Esta noite, todos quiseram juntar o seu desgosto, real ou imaginário, àquele que Alex Turner tão bem giza nestes versos. Os segundos de quase silêncio, traduzindo o momento imediatamente antes do último adeus, em que a alma parece abandonar o corpo, e a explosão final ficarão certamente entre os instantes mais intensos do festival que este ano se estreia.
Não recusando a adulação do público, mas não se banhando na mesma, a banda sai então discretamente de palco, voltando pouco depois para um encore em que os fãs puderam rebentar o que restava da sua voz, cantando em coro acertado ‘Arabella’ e ‘R U Mine?’. Podia ter sido um concerto conceptual a meio-gás, como o de Algés em 2018, ou um espetáculo em modo best of, mas sem emoção. Mas foi o melhor de dois mundos, reunindo o saber acumulado de muitas voltas ao planeta e o respeito pelo seu próprio catálogo, um dos mais fortes dentre as bandas da sua geração. Soubéssemos todos envelhecer como eles.
Arctic Monkeys no MEO Kalorama, Lisboa, 2 de setembro de 2022:
Do I Wanna Know? Brianstorm Snap Out of It Crying Lightning Teddy Picker (não tocada ontem, em Espanha) Potion Approaching The View From the Afternoon Cornerstone That's Where You're Wrong Library Pictures (não tocada ontem, em Espanha) Tranquility Base Hotel + Casino Why'd You Only Call Me When You're High? I Ain't Quite Where I Think I Am Do Me a Favour From the Ritz to the Rubble I Bet You Look Good on the Dancefloor Knee Socks 505
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