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“Estamos a ser empurrados para fora do SNS e daqui a nada para fora do país”: o grito dos médicos no primeiro dia de greve

“Estamos a ser empurrados para fora do SNS e daqui a nada para fora do país”: o grito dos médicos no primeiro dia de greve
Rui Duarte Silva

Os médicos não aceitam ganhar mais 20% quando consideram que “a moeda de troca é a perda de direitos”. Por isso, saem à rua naquele que é o primeiro de dois dias de greve a antecederam dois dias de negociação com o governo. Na manhã desta quarta-feira, no Hospital de São João, no Porto, houve 90% de paralisação dos blocos operatórios

“Estamos a ser empurrados para fora do SNS e daqui a nada para fora do país”: o grito dos médicos no primeiro dia de greve

Joana Ascensão

Jornalista

“Estamos a ser empurrados para fora do SNS e daqui a nada para fora do país”: o grito dos médicos no primeiro dia de greve

Rui Duarte Silva

Fotojornalista

Passava pouco das dez da manhã e Manuel abandonava rabugento o hospital com o amigo que o acompanhava. Veio de Felgueiras, a 50 quilómetros dali, para um exame marcado para a hora certa. “Vinha a chegar à portagem e ligaram-me do hospital a dizer que os médicos estavam em greve e que tinha de ser remarcada”.

A sua ida ao Porto resultou apenas numa viagem de regresso sem o problema resolvido, junta com uma manhã ocupada em vão. E foi quando regressava ao carro que os cerca de uma centena de médicos reunidos à porta do Hospital de São João começaram a exaltar os cartazes e as vozes, em gritos, para as câmaras de televisão. “O povo merece o SNS”, ouvia-se.

Os médicos anunciaram e cumpriram: a proposta que o governo lhes entregou no final do mês passado seria insuficiente para os impedir de avançar com os primeiros dois dias de greve, nestas quarta e quinta-feira.

“As coisas aumentam para nós como aumentam para o país inteiro e os nossos salários permanecem iguais”

Na malha humana, principalmente constituída por médicos jovens, Patrícia distingue-se pelas dezenas de autocolantes do sindicato colados na roupa. Aos 29 anos, a jovem médica está prestes a terminar um ciclo e a entrar noutro: para o ano, com 30 anos, será finalmente médica de família.

Mas é com alguma facilidade que se colhe algum descontentamento nos olhos da portuense a trabalhar em Lamego, que nem o recente anúncio da passagem de todos os centros de saúde para modelo B conseguiu amaciar.

“É verdade que os indicadores servem para avaliarmos o que está a ser feito e o que é preciso melhorar, mas neste momento estamos a orientar tudo por indicadores. Para atingirmos o que nos exigem, temos de abdicar de muita coisa, fazer consultas de 15 em 15 minutos – algo que não é bom nem para nós, nem para os doentes. Chegamos ao final de um dia de trabalho com 30 a 40 consultas e não damos aquilo que poderíamos dar aos doentes”, desabafa, crente num caminho diferente para o atendimento médico.

“Boa parte da nossa avaliação depende da redução dos custos. Só que, se temos um doente com indicação para TAC, não vamos pedir um Raio-X só por ser mais barato”, constata a médica interna, aparentemente fora da proposta de governo de incremento salarial (por ainda não ter a especialidade concluída) e que a FNAM quer abranger.

A receber um salário de 1900 euros brutos, Patrícia assume ter mais dois trabalhos, numa clínica de diálise e num lar. “As pessoas comentam que eu ando sempre a viajar, mas é por isso. Fazendo as contas, eu ganharia a mesma coisa em meio horário (20h) no privado do que ganho no SNS. Não tinha progressão de carreira, é verdade, mas se falarmos puramente em dinheiro, seria vantajoso. E eu nem sequer acho que me paguem bem no privado!”, refere.

Sabe que está numa posição de vantagem face à maioria dos jovens da sua idade em Portugal – que, segundo números deste ano, recebe um salário inferior a mil euros líquidos por mês – mas garante que os médicos estão longe de ser quem está mal nesta equação.

Nós estamos a ser empurrados para fora do SNS e daqui a nada para fora do país. Temos uma formação excelente. Se formos ali à Alemanha, eles querem-nos. O Estado está a investir na nossa formação para depois dar-nos de mão beijada a outros para usufruírem dela”, remata a futura médica de família.

O que ofereceu o governo?

Na proposta do governo consta um suplemento salarial de 20% face ao salário-base em troca de dedicação plena para médicos que trabalhem em hospitais, sendo essa dedicação plena obrigatória nos Centros de Responsabilidade Integrados (CRI). Contudo, essa dedicação plena implica aumentar o número máximo de horas extraordinárias anuais de 150 para 350, algo que Joana Bordalo e Sá, dirigente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), apelida de “inconstitucional”.

Da proposta do governo estão excluídos os médicos internos (que ainda não terminaram a especialidade), os de Saúde Pública e os de Medicina Geral e Familiar, depois de todas as Unidades de Saúde Familiar (USF) terem passado a modelo B, com remuneração dependente do desempenho.

Ao Expresso, Joana Bordalo e Sá disse que o “rascunho de proposta” entregue aos médicos é “inadmissível”. “Nós não podemos aceitar qualquer medida que implique perda de direitos com repercussão nos doentes”, declara, referindo-se ao aumento das horas extraordinárias máximas anuais.

Mas entre as principais reivindicações da FNAM está também o recuo para as 35 horas de trabalho semanal, quando quase metade dos médicos têm contratos de 40 horas, e a redução dos turnos de Serviço de Urgência (SU) de 18 para 12 horas.

“Se nós passarmos para o horário de 35 horas, conseguimos ter mais médicos no Serviço Nacional de Saúde e gastar menos em horas extra, menos em produção adicional e em produção no privado, que são coisas que saem muito caro a todos nós”, argumenta a dirigente sindical.

“Mas o que nós queremos é uma valorização transversal a todos os médicos que contemple a perda de poder de compra, já que fomos a classe que mais perdeu com a inflação, em conjunto com essa passagem das 40 para as 35 horas. Isto tinha de ser para todos os médicos. Hoje um médico hospitalar em regime de 40 horas tem um valor hora de aproximadamente 16 euros e médicos de família nas Unidades de Saúde Familiar (USF) têm um valor-hora de mais de 17 euros”.

Para já, o Ministro da Saúde, Manuel Pizarro, marcou novas reuniões negociais para os dias 7 e 11 de julho.

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