13 anos depois de implementados incentivos legais para a partilha da licença parental inicial, ainda há três em cada cinco casais que optam por não o fazer. O peso cultural anula uma “lei progressista” e traz prejuízo para pais e mães
Ao longo da História, têm sido várias as batalhas das mulheres na luta pela emancipação, com alguns progressos assinaláveis. Se antes se encontravam em desvantagem no ensino e no mercado de trabalho, hoje estão em número igual ou maior nas escolas e nas empresas, reduzindo assim muitos dos fatores causadores da desigualdade salarial. Exceto um: a maternidade. E aqui as licenças de parentalidade são incontornáveis.
Historicamente desenhadas para a mulher, pela sua condição biológica, mas também com base no “estereótipo do papel da mãe, naturalmente cuidadora, com instinto maternal”, reconhece Mafalda Leitão, socióloga do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa), estas licenças de maternidade eram o reflexo da desigualdade que grassava na sociedade.
“O estereótipo está na organização do mercado de trabalho, das expectativas que se colocam em relação aos trabalhadores do sexo masculino e do sexo feminino e também, logicamente, na cabeça dos legisladores que fazem as leis”, acrescenta a socióloga Vanessa Cunha, investigadora do mesmo instituto e coordenadora do Observatório das Famílias e de Políticas de Família (OFAP).
Uma investigação dinamarquesa publicada em 2019 — Children and Gender Inequality: evidence from Denmark —, com o objetivo de mostrar como diferem as trajetórias de impacto nos salários do pai e da mãe ao longo do tempo, mostrou que só há um tombo do lado dela após o primeiro filho.
Impacto nos rendimentos de mães e pais, o caso da Dinamarca
Mas o mesmo deixa de ser sentido pelas mulheres sem filhos. Constatou-se, então, que a desigualdade salarial, no caso dinamarquês, não está tão relacionado com o facto de se ser mulher, mas de se ser mãe.
Impacto nos rendimentos de mulheres com e sem filhos, o caso da Dinamarca
Ambas as sociólogas portuguesas têm-se debruçado em investigações sobre os papéis parentais em Portugal. Especialmente dedicada a estudar o primeiro tempo dos pais com os filhos, Mafalda Leitão assume mesmo que “é na parentalidade que reside a grande desigualdade de género”.
O errado “mês do pai”
A reboque de países como a Islândia, onde desde 2000 há um tempo obrigatório para o pai, Portugal desenvolveu uma “política progressista” para a licença parental inicial, em especial com a mudança legislativa de abril de 2009, que passou a dar aos casais um mês extra “bem pago” em caso de partilha — um incentivo.
No entanto, as sociólogas revelam ao Expresso que, 13 anos depois da entrada em vigor da lei, apenas 40% dos casais optaram por partilhá-lo. Segundo o OFAP, em 2010 eram cerca de 20% e em 2015 quase 30%. Em 2019 chegaram a ser 40,9% e em 2020 estimativas apontam para 44%. O aumento tem sido gradual mas nunca se chegou sequer aos 50%.
Evolução das licenças partilhadas entre pais e mães
Em parte, isto acontece por desconhecimento. Mas aqui encaixam casos como os da monoparentalidade ou aqueles em que o pai não é elegível para a atribuição da licença. Por outro lado, é ainda mais visível uma má interpretação da lei.
“Este mês extra ficou associado ao ‘mês do pai’”, porque se verifica que, em grande parte dos casos de partilha, a mãe goza todo o tempo e depois, no fim, o pai substitui-a num mês sozinho.
Nas palavras de Vanessa Cunha, “a sociedade simplificou esta moldura legal”.
“O pai acaba com um papel secundário, acessório. Mas não é isso que diz a lei. Na lei, após o período obrigatório da mãe de um mês e meio [e o período de 20 dias obrigatórios do pai], os casais podem dividir a restante licença conforme desejarem”, explica Mafalda Leitão.
LICENÇAS DE PARENTALIDADE EM PORTUGAL
Parte dos casais também não o faz com base da perda de rendimentos para a família. No caso das licenças pagas a 80%, e sempre que o ordenado do pai é superior ao da mãe, ser ele a viver mais tempo de licença implica uma superior perda de rendimentos do que se fosse a mãe a vivê-la sozinha.
“As políticas vivem numa sociedade que inspira estereótipos”, teoriza Mafalda Leitão. Por vezes não chegam. E isso traz problemas.
Empresas são travão
Não são inocentes as palavras de Mafalda Leitão quando diz que “o início de tudo” está na licença parental. Ela, que acompanhou para a sua tese de doutoramento homens que passaram mais tempo com os filhos recém-nascidos, entendeu que, embora uns mais autónomos e outros “monitorizados à distância pela mãe”, todos sentiram ser essencial a primeira ligação às crianças. E, de facto, o que a ciência vem mostrar é que “quando num casal é sempre a mãe a pegar ao colo, a mãe a adormecer, a mãe a mudar as fraldas, o bebé só vai querer aquela pessoa”, perpetuando-se uma maior proximidade entre ambos.
Na investigação, Mafalda observou também “um mercado de trabalho muitíssimo resistente” a aceitar que os homens merecem ter este papel: é o que chama “supremacia da maternidade face à paternidade”. Muitos pais não se sentem à vontade para reivindicar o direito, mesmo tendo conhecimento dele. Os que o fazem, por norma os mais novos e de classe média-alta, muitas vezes são incompreendidos e ridicularizados por quererem ficar com os filhos, muitas vezes são incentivados a trabalhar na mesma à distância e até castigados.
Mas se numa primeira fase esta discrepância carrega uma desigualdade para o pai, a longo prazo são as mães as mais afetadas. “Perdem recursos económicos nas suas carreiras contributivas e no rendimento que vão auferir enquanto reformadas, perdem na progressão de carreira e perdem em termos familiares, porque se perpetua o estereótipo”, enumera.
Medidas recentes como a de Espanha, que desde janeiro de 2021 equiparou as licenças 100% pagas à mãe e ao pai, mostram uma evolução. As sociólogas ouvidas pelo Expresso são tendencialmente favoráveis à partilha igualitária, mas continuam a defender legislação liberal como a portuguesa.
Contudo, admitem falhas. Uma delas é a total impossibilidade de o pai poder usufruir desse tempo com o bebé caso a mulher não esteja elegível (se não estiver no mercado de trabalho ou se for estagiária, por exemplo).
Num policy brief de 2016, lançado pelo ICS-ULisboa sobre a relação entre os homens e as licenças parentais, um terço dos homens e cerca de um quarto das mulheres ainda discordavam de que o pai e a mãe fossem igualmente capazes de cuidar de um bebé pequeno. Talvez por isso, dados do ano passado divulgados pela CGTP mostraram que são muitas mais as mulheres já ficaram em casa para cuidar dos filhos, ao mesmo tempo em que oito em cada dez realizam tarefas domésticas pelo menos uma hora por dia, face a apenas dois em cada dez homens.
Desigualdades entre homens e mulheres
“As mulheres entraram no mercado de trabalho mas os homens não entraram na vida doméstica na mesma proporção”, conclui Mafalda Leitão. Uma luz ao fundo do túnel surge quando se vê que os jovens revelam uma visão bastante mais igualitária do que as gerações anteriores.
Num recente estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos com o objetivo de traçar um retrato da geração entre os 15 e os 34 anos, mostrou-se como a maioria considera que mãe e pai deveriam dividir ao meio o tempo da licença paga. O que resta é um longo caminho.
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