Sociedade

No brio da navalha!

No brio da navalha!
JOSÉ CARIA

Em Lavre, as portas de um antigo café dão entrada à cozinha regional do restaurante Maçã

Nessa ancestral rede social que eram as tabernas alentejanas, onde de tudo se falava, e de tudo um pouco se sabia, mas cujo saldo final era aprender algo com os mais velhos e assim afinar a sabedoria. As conversas de fim de jorna eram entrecortadas por fatias delicadas de maçã, ou de um pero caído de um pereiro caseiro, laminadas à navalha com algumas lascas de queijo seco e um trago de vinho jorrado da talha. Os cafés foram a extensão moderna das tabernas, com a prosa a manter-se solta.

O idiota da aldeia podia vociferar a sua baboseira, mas era logo posto em reflexão, fosse por meio de um safanão ou de uma vetusta reflexão dada por alguém que já conhecia um pouco mais da vida. Assim, a momentânea ‘babosêra’ diluía-se com a proverbial ‘bebedêra’ que desculpava os infundados excessos de linguagem. Hoje a (des)informação embriaga muitos que dizem as suas baboseiras para infindáveis plateias virtuais, e que por vezes sabem menos que alguns ‘idiotas’ virais. Talvez a taberna e o café tivessem até uma espécie de função formadora nas pequenas comunidades...

Voltando ao Alentejo, encontramos cafés que passaram do petisco ocasional para os da terra que ‘picavam’ ao balcão, para uma cozinha mais ampla e de raiz caseira que atraía os viajantes de passagem. O Maçã, em Lavre, é um desses casos em que a petiscaria da frente da casa deu origem a uma cozinha sólida na retaguarda e com sala patusca, cheia aos fins de semana, recuperando-se assim um hábito e uma imagem que se esbateu nos anos ‘troikianos’ em muitos restaurantes da região. A mesa foi sendo composta com um belíssimo “Queijo fresco” (€1,65) de sabor lácteo presente e teor de sal equilibrado a dar-lhe personalidade e sabor (há por aí umas aberrações adocicadas), obra da Queijaria das Romãs. O típico rissol do redenho frito nos “Torresmos” (€3,50) enxutos e saborosos, uma “Salada de pota” (€5) sem história, umas apaladadas “Fêveras de coentrada” (€3,50) com os cubinhos de entremeada grelhada em alho, azeite e coentros. A fechar os petiscos, o verão rompeu com o frio da estação numa radiosa “Salada de pimentos” (€3,50) com aveludadas tiras vermelhas, onde a doçura natural do sol que lhe amadureceu as faces fez brilhar o pimento.

Nos pratos, um pouco visto “Polvo frito com arroz de feijão” (€12,50) que vinha em tentáculos crocantes, mas a revelar excesso de cozedura e qualidade regular da matéria-prima, destacando-se aqui a bela execução do arroz carolino de feijão vermelho. Em tacho de barro surgiu o “Arroz de lebre” (€12,50), com a carne a abeberar o caldo feito com o sangue, mas onde a acidez prejudicou o prato, ou por excesso do canónico golpe final de vinagre (ora se o sangue já traz vinagre…) ou pela qualidade vinagreira. Num rico e aromático molho atomatado, a “Perdiz estufada” (€14) veio dividida sobre duas torras de azeite, e exibiu a proeza de se manter húmida no interior. Nos “Medalhões de lombinhos com ervas aromáticas” (€12,50), a carne tenra em nacos grelhados revelou boa estirpe porcina, embora um uso excessivo de alecrim no tempero aromático, e as migas de guarnição a surgirem um pouco secas, com falta do ‘pingo’ habitual da frigideira.

Carta de vinhos com total influência regional, a preços abordáveis e boa variedade. Serviço acelerado, porém atento, eficiente e esforçado em receber bem, isto num contexto de lotação esgotada, o que é de referir. Ainda se acomodaram as papilas com uma fatia do agradável e pouco visto “Pudim de amêndoa e laranja” (€2,50), onde o óbice foi o facto de surgido com a base um pouco queimada, o que foi pena, pois o topo estava apetecível. Na “Tarte de limão (da época)” (€2,50) denotou-se a vantagem do creme revelar sabor cítrico fresco e ‘genuíno’ (em vez de suco de limão pré-comprado), daí a indicação do fruto ser ‘de época’, embora o recheio tivesse uma cobertura de claras batidas em castelo, mas sem ponto de merengue antes de irem ao forno. A base da tarte em massa folhada (molenga) é uma opção em que se perde o contraste (da massa quebrada) entre as diferentes texturas do doce.

O imaterial cante e a navalha são símbolos de uma cultura ancestral alentejana. No Maçã há pequenos detalhes a melhorar, mas cozinha-se e serve-se com ‘o brio da navalha’ que nos serve pequenas fatias de sabores regionais.

MAÇÃ
Estrada Nacional 114, n. 24 — Lavre (Montemor-o-Novo)
Tel. 265 847 100
Encerra à segunda-feira

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