Exclusivo

Cinema

Viola Davis é “A Mulher Rei”. Neste épico africano, é sobre ela que estão todos os focos (e o trabalho é pujante)

Viola Davis é Nanisca, capitã do principal destacamento de combate do reino
Viola Davis é Nanisca, capitã do principal destacamento de combate do reino

“A Mulher Rei” é um filme de ação de grande espetáculo e fundo histórico. Revela-se uma surpreendente ficção sobre o empoderamento feminino

Quem veja a embalagem — o cartaz, o trailer, o aparato promocional — percebe logo tudo: é um filme afro, centrado num grupo de guerreiras chefiadas por Viola Davis — ferocíssima — num tempo ainda de comércio negreiro. O combate, diz-se, é pela liberdade. O dispositivo é de grande produção americana, um épico para estreia quase simultânea por todo o lado, dos Estados Unidos à África do Sul, da Argentina a Taiwan. “A Mulher Rei” é um dos blockbusters deste outono.

Quem veja a embalagem percebe logo tudo? Engano. Porque aquilo que parece um filme de ação, com cimitarras e lanças, cheio de sangue e fúria, é outra coisa mais complicada. Entendamo-nos: não digo que o público esteja a ser ludibriado, com uma qualquer promessa de lebre e serviço de gato. Aliás, é mesmo o contrário, se se tratasse apenas de um filme de ação a promessa seria de gato e o que nos dão é lebre.

A história? Tudo se passa em 1823 no Daomé, perto da costa onde os portugueses tinham construído a Fortaleza de São João Baptista de Ajudá como entreposto para o tráfico de escravos. Estamos no reinado de Ghezo/John Boyega cuja força militar inclui uma falange de mulheres — as Agojie — capitaneada por Nanisca/Viola Davis e que, na ficção, parece ser o principal destacamento de combate do reino. Longamente subjugado pelo império Oyo, o Daomé tem como principal atividade económica a venda de escravos aos traficantes portugueses que o próprio rei promove. Quando o filme começa, o principal fito de Nanisca é a libertação do jugo Oyo, ao mesmo tempo que tenta convencer o rei a cessar com o tráfico humano e a fazer uma reconversão económica do país.

Com este quadro histórico como fundo, o filme organiza-se em torno da jovem Nawi/Thuso Mbedu, rebelde da autoridade paterna que a queria vender para casar com um homem muito mais velho, rico e cruel; oferecida pelo pai ao rei, passa a integrar a recruta das Agojie, sob a asa disciplinadora e educativa de uma veterana, Izogie/Lashana Lynch. É a partir deste personagem que irradia uma teia ficcional que tem a habilidade bastante para ser, dentro de um tipo de filmes muito padronizado, bastante complexo. Para começar não há qualquer simplismo na definição dos ‘bons’ e dos ‘maus’ da fita. Se as Agojie são as heroínas, não se poupa na descrição dos sacrifícios que as mulheres fazem para lhes pertencer — a violência dos treinos e das provas, a renúncia aos homens e à maternidade, o pacto de vitória ou morte para que são adestradas.

No tráfico de escravos tanto são responsáveis os clientes portugueses/brasileiros como os fornecedores africanos — nenhum maniqueismo étnico, a este respeito. A luta de Nanisca é, aliás, mais contra os Oyo (chefiados pelo sanguinário Oba/Jimmy Odukoya, outrora seu captor, violador e verdugo) que contra os brancos. Por outro lado, não se faz a glorificação dos valores bélicos, os combates são sempre uma tormenta de extremo furor (coreografados, sim, mas brutais e produtores de monstros, como Nanisca reconhecerá lá para o fim).

O que o filme mostra é o empoderamento das mulheres — as que não desistem, as que têm valores e espírito de entreajuda, as que se sacrificam, as que não vergam, as que, tendo medo, o superam

Onde “A Mulher Rei” se firma não é no militarismo nem na negritude, é no feminismo. O histórico jugo masculino está, aliás, marcadamente visível e o que o filme proclama, através de múltiplos apontamentos, é a tenacidade das mulheres em dele se libertar, a urgência de ter voz na definição do seu destino. O que o filme mostra é o empoderamento das mulheres — as que não desistem, as que têm valores e espírito de entreajuda, as que se sacrificam, as que não vergam, as que, tendo medo, o superam.

O corpo criativo de “A Mulher Rei” é, aliás, predominantemente feminino. Da realização (Gina Prince-Bythewood) ao argumento (Dana Stevens, Maria Bello), da direção de fotografia (Polly Morgan) à produção (também maioritariamente assinada por mulheres), o filme é um objeto invulgar quanto à dominância de género que, então, no campo dos intérpretes é, naturalmente, avassalador. Viola Davis é quem tem todos os focos (e um trabalho pujante). Mas quem me apetece destacar é Lashana Lynch (lembram-se dela do último James Bond?) pela quantidade de cambiantes que a sua personagem vai revelando, uma subtileza de atriz que os filmes de ação usualmente não comportam.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas