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“Fogo-Fátuo”: comédia musical gay portuguesa junta monarquias, paixões e quartéis de bombeiros

“Fogo-Fátuo”: comédia musical gay portuguesa junta monarquias, paixões e quartéis de bombeiros

“Fogo-Fátuo”, sobre a paixão de um príncipe e de um bombeiro, é uma maravilha de inventiva e eficácia, regida pelo princípio do prazer

“Fogo-Fátuo” é uma máquina de matar preconceitos raciais e sexuais, não foi à toa que já se escreveu que, por isso mesmo, resultou num tremendo filme político. Como tremendo filme político que é, não dispensa uma relação com o tempo, com a História e, em particular, com uma malfadada realidade portuguesa em que, tal como no fado do ‘Embuçado’ (a que Paulo Bragança dá uma nova versão), os mascarados se escondem, trocando o que são por aquilo que aparentam ser.

À sua sexta longa-metragem chamou João Pedro Rodrigues uma “fantasia musical”. É um filme pirómano e pronto a despir, denso como uma rocha incandescente. A sua poética erótica responde incondicionalmente ao desejo e à vontade dos corpos, elevando-os. Está rodeado de incêndios futuros e passados que convergem em força para os dias de hoje. Incêndios que, quer a nível literal quer alegórico, passam pelo conflito monárquico-republicano, pelo passado imperialista e colonial português assim como pela crise climática e os anos da pandemia em que o filme se fez. E se nenhum destes assuntos se esgota num primeiro olhar, nenhum é abordado sem ironia.

Falemos de incêndios, sim, ou não começasse tudo na Travessa da Queimada lisboeta e no (diz o senso comum) libidinoso ano de 2069 em que Alfredo, um velho aristocrata falido, deitado no seu leito de morte, se comove com o boneco Playmobil ali deixado por um sobrinho-neto. Um travelling à frente refoca o boneco (é um bombeiro negro) e é nesse instante que Alfredo pronuncia o nome do homem que amou intensamente cinco décadas antes: Afonso.

A cena é antecâmara de um flashback que vai depois para 2011 e que logo convida ao tom de imaginação e de escárnio que há de vir. São os tempos das primeiras ereções do menino Alfredo em cena coreografada por canção infantil de Joel Branco (que faz de Alfredo no fim da vida) e que Rodrigues classificou de “pré-ecologista”. Poucos anos depois, arde a Mata Nacional de Leiria e o rapaz de sangue azul (já com Mauro Costa no papel) sai-se com ímpeto que abala os candelabros do seu berço real: quer ser bombeiro, algo que, aos olhos dos pais (excelentes papéis de Miguel Loureiro e Margarida Vila-Nova), não é coisa para o seu dente.

E quem disse que “Fogo-Fátuo” não tem também no seu centro, acima de tudo o que nos convence ser, uma grande história de amor que batalha contra toda a espécie de convenções? Se rimos duplamente com a teatralização das cenas de Alfredo à mesa, já que ele e a família observam e interagem com a audiência, o dispositivo altera-se radicalmente com a chegada do rapaz à caserna dos soldados da paz e o seu encontro com Afonso (André Cabral). Não há, nunca houve, nem em Oliveira, em Rocha ou em César Monteiro, realizador luso mais forte a fixar o coup de foudre como João Pedro Rodrigues.

Em “Fogo-Fátuo”, o preconceito não tem hipótese de sobreviver, é asfixiado à nascença, não há ditame que lhe dê guarida nem realismo que lhe dê socorro

E é de uma intensidade louca, voluptuosa, libidinal, o grande amor que ali se incendeia à nossa frente entre o aristocrata branco que estudou história de arte e o bombeiro negro que o introduz a uma relação sem as hierarquias que ficaram lá fora, do mesmo modo que aqui não há hierarquias entre a grande arte de Caravaggio e o erotismo popular dos cartoons de José Vilhena.

Pela força dos artifícios, que Rodrigues manipula com uma graça inédita e uma liberdade que até hoje nunca ousara (veja-se a felicidade dos números musicais que, longe da métrica rigorosa hollywoodiana, adaptam o pas de deux daquela influência a condutas de salvamento concretas), torna-se credível o que à partida só poderia ser inverosímil. Os sexos com canção politicamente incorreta de Amália em pano de fundo não são sexos, são dildos — mas a cena de sexo é belíssima e verdadeira! E é também pelos artifícios que aquele Portugal futurista atinge utopicamente uma mentalidade que ainda lhe falta, podendo o fatalismo do fado transformar-se, enfim, em elogio do falo!

Em “Fogo-Fátuo”, o preconceito não tem hipótese de sobreviver, é asfixiado à nascença, não há ditame que lhe dê guarida nem realismo que lhe dê socorro. A equação conclui-se sempre com um “além de...” Além do juízo preconcebido... Além do excêntrico quadro racista que José Conrado Roza pintou no reinado de D. Maria I... Além do que os pais de Alfredo gostavam que ele tivesse sido antes dele sair da casca... É um ponto de inflexão incrível na obra do maior cineasta português da sua geração, em simultâneo absolutamente coerente com os princípios que a moldaram.

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