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Cavaco Silva: "O primeiro-ministro deve evitar responder em público às críticas do Presidente"

Cavaco Silva: "O primeiro-ministro deve evitar responder em público às críticas do Presidente"
NUNO FOX

Cavaco escreve no seu novo livro que o seu artigo da ‘má moeda’, que há 19 anos ajudou à queda de Santana Lopes, "não parece ter perdido pertinência perante a realidade política a que assistimos”. “Primeiro-ministro e Governo não beneficiam de um clima de conflitualidade com o Presidente da República”, avisa o autor.

Cavaco Silva: "O primeiro-ministro deve evitar responder em público às críticas do Presidente"

Ângela Silva

Jornalista

António Costa não disfarça o enfado que lhe têm provocado algumas intervenções públicas do ex-Presidente da República Cavaco Silva - em maio, acusou-o de “descer à terra enquanto militante partidário para vir animar a direita na crise política artificial que pretende criar” -, mas Cavaco não dá sinais de tencionar calar-se e acaba de passar a livro uma série de conselhos dirigidos a quem chefia um Governo, incluindo sobre a forma como um primeiro-ministro se deve relacionar com o chefe de Estado.

O primeiro-ministro “deve evitar responder em público às críticas (do PR) à política do Governo que considere injustas e reservar-se para manifestar o seu desacordo na seguinte reunião de quinta-feira ou através de um telefonema pessoal”, escreve Cavaco Silva no seu último livro “O primeiro-ministro e a arte de governo”, que será lançado esta sexta-feira, com apresentação de Durão Barroso.

Sobre o que pensa do atual Governo e do atual primeiro-ministro, a quem já sugeriu num artigo recente em plena ‘crise Galamba’ que ponderasse a demissão por ter perdido a autoridade, Cavaco Silva chega a dizer neste livro que o artigo que publicou em 2004 sobre “a boa e a má moeda” e que ajudou a precipitar a queda do Governo de Santana Lopes "não parece ter perdido pertinência perante a realidade política a que assistimos”.

O conselho de cautela na escalada de guerra com Belém não só vem de um conhecedor profundo das agruras da coabitação de mão no coldre – Cavaco e Mário Soares protagonizaram nos anos 90 um clima de assumida guerra aberta, em que Soares chegou a promover reuniões para analisar cenários para correr com Cavaco – como soa a recado direto para António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa (mas sobretudo para o primeiro)

Costa e Marcelo provocam-se e agridem-se na praça pública há semanas, ao ponto de o primeiro-ministro a quem o Presidente há muito batizou de otimista irritante vir agora dizer que são os otimistas irritantes e não os velhos do Restelo que fazem o país andar para a frente, para Marcelo responder do alto da sua “proveta idade” que as medidas que Costa anunciou para os jovens “dão muito jeito em termos eleitorais” (ou seja, o otimista passa a eleitoralista). Seguindo o guião de Cavaco, Costa talvez ganhe em ter mais tento na língua.

Sendo o livro sobre a arte de governar e não sobre a arte de presidir, é inevitável que os conselhos contidos no capítulo dedicado ao relacionamento do chefe do Governo com o Chefe de Estado encaixem mais em António Costa do que em Marcelo Rebelo de Sousa. O resto é feito pela coincidência temporal deste lançamento com a fase mais em brasa da relação entre os atuais inquilinos de S. Bento e de Belém, o que facilita leituras conexas.

Exemplo: quando Cavaco avisa que “o primeiro-ministro e o Governo não beneficiam de um clima de conflitualidade com o Presidente da República”, se não é mais um remoque ao primeiro-ministro socialista que claramente desde a chamada ‘crise Galamba’ decidiu comprar a guerra com Marcelo, parece.

Reunião do Conselho de Estado
Ana Baiao

Em maio, recorde-se, António Costa dizia que Cavaco Silva “teve a enorme frustração de concluir o seu mandato presidencial dando posse a um Governo [que ficou conhecido como geringonça] que, de todo em todo, não desejava, tendo ficado com essa mágoa” e, portanto, acrescentava, “volta e meia despe a sua função institucional”. Agora, Cavaco passa a livro uma espécie de guião de experiência feita – e teve experiência dos dois lados da relação PM-PR – de que resulta um aviso ao atual primeiro-ministro para que não escale o confronto com Marcelo e deixe para o recato das reuniões a sós a possibilidade de “sublinhar o risco de o Presidente ser usado como arma de arremesso entre partidos”.

“Embora o primeiro-ministro saiba que o Presidente da República não dispõe de autoridade executiva e não pode publicamente apresentar alternativas políticas ao programa e à ação política do governo em funções" - escreve Cavaco - o que compete ao chefe de um Governo é “evitar responder em público”. Até porque, sublinha, “o facto de ser eleito por sufrágio universal confere-lhe (ao Chefe de Estado) uma acrescida influência política e capacidade de expressar opinião própria sobre os assuntos relevantes da vida nacional” (o ‘melão’, expressão que Marcelo usou para falar do plano do Governo para a Habitação, que o diga).

Numa clara chamada de atenção para o poder de desgaste que qualquer Presidente da República acaba por ter, até pela “margem de liberdade em que se podem mover diferentes titulares no exercício do cargo”, Cavaco Silva diz que “a principal preocupação do primeiro-ministro no seu relacionamento com o PR deve ser o de evitar que o Presidente utilize os seus poderes para impedir o Governo de executar o seu programa e que tenha sucesso na sua ação”. Se se tiverem em conta as recentes ameaças de Marcelo Rebelo de Sousa de que pode continuar a travar o pacote do Governo para a habitação, a sugestão a retirar deste livro é que compete antes de mais ao chefe do Executivo “evitar” que o poder de bloqueio do Presidente acorde (tarde demais?).

Mas no que toca a cautelas preventivas, Cavaco defende mesmo que o PM “deve fazer uma interpretação alargada do dever constitucional de informação ao Presidente”. E a verdade é que em matéria de informação, Marcelo costuma queixar-se de, no arranque desta maioria absoluta socialista, ter sido pouco ouvido, vendo-se confrontado com factos consumados sem informação prévia sobre orgânica e nomes do Governo, que até chegaram à comunicação social antes de chegarem a Belém.

Mesmo quando reconhece o óbvio - que “o Governo e a maioria parlamentar que o apoia têm legitimidade democrática para tomar medidas com que o Presidente não concorde” - , Cavaco Silva escreve que "são situações que o primeiro-ministro deve fazer o possível por evitar e que deve gerir com toda a sua habilidade política (o episódio Galamba, quando Costa afrontou direta e frontalmente Marcelo, estará nos antípodas da receita cavaquista).

Cavaco Silva escreve, aliás, que “o primeiro-ministro deve registar as críticas e sugestões do Presidente relativamente à atividade do Governo e comprometer-se a analisá-las com atenção” (Galamba já teria sido remodelado …).

Presidente “não é uma figura ornamental”

“No nosso sistema político", lembra ainda o ex-Presidente, citando os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, "o Presidente não faz parte da dialética maioria/oposição, mas não é uma figura ornamental apenas para presidir a cerimónias oficiais e representar o Estado”. E, acrescenta, “a Constituição prescreve mesmo que compete ao PR pronunciar-se sobre todas as emergências graves para a vida da República”.

Por estas e por outras, Cavaco Silva insiste que PM e Governo “não beneficiam de um clima de conflitualidade com o Presidente, exceto se o Presidente cometer erros ou extravasar claramente as suas competências e que tal seja percebido pela opinião pública". Marcelo ter passado o primeiro ano deste Governo a agitar o papão da dissolução do Parlamento talvez encaixe nos “erros”, mas sendo o livro sobre a arte de governar, Cavaco não desenvolve este lado da moeda que ficará, quanto muito, para um eventual novo livro sobre a arte de presidir.

Marcelo e Cavaco no lançamento do livro de Rui Ochoa
TIAGO MIRANDA

Para já, Cavaco Silva aconselha António Costa a fazer o que puder para evitar a guerra aberta com Marcelo Rebelo de Sousa. Porque, escreve, “o mais importante para o primeiro-ministro é que o Presidente adote uma conduta marcada pela isenção e independência em relação às forças partidárias, não interfira no combate político e não atue como força de contrapoder relativamente ao Governo, antes lhe garanta cooperação institucional”.

Esta parte, António Costa percebe bem e subscreverá sem esforço, já que antes da atual maioria absoluta a coabitação com Belém foram seis anos de (quase) lua de mel. Ou de céu. Já sobre a atuação do atual Presidente da República, que entrou no segundo mandato num registo que agrada mais à direita e que muitos socialistas consideram estar a assumir-se como contrapoder, fica-se a saber menos do que pensa o ex-Presidente Cavaco.

A sua análise é sobre “o exercício das funções de PM” e carrega na tecla das “críticas à atuação governativa mais recente”. Ao ponto de considerar que o seu artigo “Os políticos e a Lei de Gresham” (que há 19 anos contribuiu para a queda do Governo de Pedro Santana Lopes) “embora publicado em novembro de 2004, continua a ser referido a propósito da ‘boa e da má moeda’ e não parece ter perdido pertinência perante a realidade política a que assistimos”.

Ao lembrar a pertinência do artigo que engrossou os argumentos do ex-Presidente Jorge Sampaio para demitir o Governo de Santana Lopes, o livro que fala sobretudo para quem governa também deixa, afinal, uma pista para o Presidente da República.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: AVSilva@expresso.impresa.pt

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