Na data da publicação deste podcast comemora-se o Dia Mundial da Luta Contra a SIDA, e talvez as metáforas bélicas e da guerra contra a doença não sejam as melhores. A médica Maria José Campos não se revê nelas e deixa isso claro neste episódio: “Cada vez que dizemos ‘a luta’ contra a SIDA estamos a colocar todos os aspectos bélicos na pessoa infectada, o que é culpabilizante. É preciso desconstruir essa linguagem bélica porque senão do lado do inimigo estão as pessoas infectadas com VIH e isso não é justo.”
Já em 1978, Susan Sontag escreveu A Sida e as suas Metáforas, um notável ensaio sobre a utilização alegórica, e frequentemente culpabilizante, da doença na nossa cultura. A obra tornou-se num clássico que a revista Newsweek considerou "Um dos livros mais libertadores do seu tempo". Nesse livro, Susan Sontag defende que a maneira mais autêntica de enfrentar a doença - e a maneira mais saudável de estar doente - é resistir a esse pensamento metafórico. E acrescentou: “As metáforas têm que ser expostas, criticadas, desancadas, arrasadas”.
Nesta mesma semana ficou a conhecer-se o novo relatório de infeção por VIH em Portugal, apresentado pela Direção-Geral da Saúde (DGS) e pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), a revelar que em 2022 foram diagnosticados 804 novos casos de infeção por VIH, mantendo-se a tendência decrescente que se verifica desde o ano 2000. Na última década, a diminuição foi de 56%. Os casos de Sida desceram 74%. Uma doença que é cada vez mais crónica e menos uma sentença de morte e que, mediante tratamento, não é detectável nem transmissível.
Os números refletem que a maioria (75,5%) dos novos casos foram registados em homens (3 casos por cada caso em mulheres), com uma média de idades de 37 anos. E embora a transmissão heterossexual se mantenha como a mais frequente (47,7%), os casos em homens que têm sexo com homens (HSH) corresponderam à maioria dos novos diagnósticos. (61,8%).
Este ano assinalam-se 40 anos da epidemia de VIH em Portugal e ainda não há cura para este vírus. O que é algo surpreendente dado que recentemente, num tempo recorde, o mundo criou vacinas contra a COVID-19. Haverá falta de investigação, vontade e investimento para se encontrar finalmente uma vacina ou uma cura para o VIH?
O que este novo relatório deixa claro é que ao contrário da grande evolução da medicação e diagnóstico da doença, o estigma e a discriminação associados à infeção por VIH persiste quase inalterável, com quatro em cada dez pessoas seropositivas a referirem terem sido alvo de algum tipo de discriminação social e 15% a reportarem já ter sofrido alguma situação de violação dos seus direitos. O que falta fazer para que este cenário mude?
“Ter VIH já não é uma sentença de morte e quem faz tratamento não transmite o vírus. Mas o estigma e desconhecimento persiste. E esse sim, mata. Ainda há quem diga que o VIH se transmite na saliva e nas casas de banho. Há coisas mirabolantes que permaneceram ao longo de décadas porque não foi feito um trabalho constante de estar sempre a informar como se transmite e se previne. O facto da minha filha saber, não quer dizer que a minha neta saiba”, afirma Maria José neste podcast.
Desde 1983 o estigma foi mudando de rostos. O HIV já foi considerado a doença dos gays, das pessoas travestis e trans, depois das prostitutas, das pessoas toxicopendentes até se perceber que era uma doença que podia infetar qualquer pessoa, fosse qual fosse a sua orientação sexual, identidade de gênero ou condição social. Mas a culpa e invisibilização ainda permanece, talvez por ser uma doença associada ao prazer, com todos os falsos moralismos associados a uma cultura judaico cristã…
Esta semana foi também notícia que o tratamento preventivo para o VIH, a PrEP, ou profilaxia pré-exposição, que é um comprimido que previne a transmissão do vírus da imunodeficiência humana (VIH), estará disponível fora dos hospitais no primeiro trimestre de 2024. Passando a ser mais um aliado contra a transmissão por via sexual, a par do preservativo.
Maria José Campos esperou muito por este momento. E enquanto tentava de todas as formas que o processo de implementação da PrEP avançasse, cinco amigos seus ficaram infectados com VIH. A médica atribui o atraso desta medida ao facto de durante muito tempo a comunidade científica ter sido contra este tratamento. Por preconceito.
“A PrEP é um grande avanço, chega a ser mais eficaz do que o preservativo, evita que alguém que contacte sexualmente com uma pessoa seropositiva se infete. Mas sabemos a situação do SNS. Isso vai levar aos centros de saúde um grupo grande de pessoas que vai solicitar mais consultas e análises.Não sei se os serviços estão preparados e se haverá formação dos médicos de família. Poderá haver um certo bloqueio. Vamos ver se poderia ser exequível ter esses medicamentos mais disponíveis nas farmácias, como a pílula do dia seguinte e anticoncepcional”
Já no livro “1983” dos artistas Nuno Alexandre e João Pedro Vale (Documento histórico e artístico rigoroso e cuidado que vale a pena adquirir), Maria José considera que a comunidade científica atrasara o processo porque achava que a PrEP era sinónimo de “devassidão”. E mais disse: “Eram exatamente as mesmas pessoas, com o mesmo discurso contra o preservativo, que anos antes impediram, por exemplo, que houvesse preservativos na escola.”
Com um profundo sentido de missão e humanismo, Maria José Campos nunca caiu nas armadilhas da superioridade moral, por ser médica, branca, de classe média e heterossexual, e tem sido ao longo destas 4 décadas uma aliada da comunidade LGBTQIA+, percebendo de perto os seus desafios, culturas e vivências, sem olhar o mundo à sua imagem. Evoluindo junto com estas pessoas e trazendo esse conhecimento para junto da classe médica e científica.
No final da primeira parte, Maria José é surpreendida com uma áudio comovente da atriz e ativista trans Jó Bernardo.
Na segunda parte desta conversa, Maria José começa por falar da amizade e do tanto que aprendeu com Jó Bernardo sobre a comunidade trans. Recorda ainda como começou no ativismo e se tornou aliada e cúmplice da comunidade LGBTQIA+ e recusou “as plumagens” da ribalta.
E se teve uma fatura profissional e pessoal por ser uma mulher contra um certo sistema, numa sociedade e classe profissional que considera ainda muito “conservadora”, “castradora” e “masculinizada”, sublinha o tanto que aprendeu e o mundo que ganhou com as comunidades da margem.
E volta a comover-se com um novo áudio, desta vez de Ricardo Fuertes, técnico nas áreas do VIH e dependências, também amigo de Maria José Campos, que aqui conta outros lados seus e deixa-lhe uma pergunta de boa reflexão. E há ainda espaço para se falar de sexualidade, sem culpas e vergonhas, e da importância de levar esse tema sem preconceitos seja à mesa com amigos ou nas consultas médicas.
Revela aqui que aos 68 anos, depois de sair de cena do mundo da medicina está a aprender a nadar, a falar italiano e, imagine-se, bordado japonês. E como não podia faltar, traz-nos música e literatura. As suas escolhas literárias são: “Puta feminista” de Georgina Orellano, e “O Negócio da Saúde - como a medicina privada cresceu graças ao SNS”, de Bruno Maia.
Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Tomás Almeida. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.
Voltamos para a semana com mais uma pessoa convidada. Até lá pratiquem a empatia e boas escutas!