A Beleza das Pequenas Coisas

Maria José Campos: “Continua a haver muitas pessoas com medo de fazer o teste de VIH pela discriminação. Esse silêncio mata"

Maria José Campos é um dos nomes mais incontornáveis no apoio às pessoas infectadas com VIH em Portugal desde os anos 80 quando dava consultas no Hospital Egas Moniz, onde estavam internadas as primeiras pessoas doentes com o vírus. Fez parte da fundação da Associação Abraço, depois da ILGA, e foi coordenadora científica do Check Point LX. Até abril deste ano, altura em que se reformou, dava consultas de infectologia no Hospital de Egas Moniz, em Lisboa. No Dia Mundial da Luta Contra a SIDA, a médica faz o retrato da situação atual e dos últimos 40 anos e alerta para o perigo do estigma, do medo e da ignorância que ainda mata e exclui. Ouçam-na no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”, com Bernardo Mendonça

Na data da publicação deste podcast comemora-se o Dia Mundial da Luta Contra a SIDA, e talvez as metáforas bélicas e da guerra contra a doença não sejam as melhores. A médica Maria José Campos não se revê nelas e deixa isso claro neste episódio: “Cada vez que dizemos ‘a luta’ contra a SIDA estamos a colocar todos os aspectos bélicos na pessoa infectada, o que é culpabilizante. É preciso desconstruir essa linguagem bélica porque senão do lado do inimigo estão as pessoas infectadas com VIH e isso não é justo.”

Já em 1978, Susan Sontag escreveu A Sida e as suas Metáforas, um notável ensaio sobre a utilização alegórica, e frequentemente culpabilizante, da doença na nossa cultura. A obra tornou-se num clássico que a revista Newsweek considerou "Um dos livros mais libertadores do seu tempo". Nesse livro, Susan Sontag defende que a maneira mais autêntica de enfrentar a doença - e a maneira mais saudável de estar doente - é resistir a esse pensamento metafórico. E acrescentou: “As metáforas têm que ser expostas, criticadas, desancadas, arrasadas”.

Nesta mesma semana ficou a conhecer-se o novo relatório de infeção por VIH em Portugal, apresentado pela Direção-Geral da Saúde (DGS) e pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), a revelar que em 2022 foram diagnosticados 804 novos casos de infeção por VIH, mantendo-se a tendência decrescente que se verifica desde o ano 2000. Na última década, a diminuição foi de 56%. Os casos de Sida desceram 74%. Uma doença que é cada vez mais crónica e menos uma sentença de morte e que, mediante tratamento, não é detectável nem transmissível.

Os números refletem que a maioria (75,5%) dos novos casos foram registados em homens (3 casos por cada caso em mulheres), com uma média de idades de 37 anos. E embora a transmissão heterossexual se mantenha como a mais frequente (47,7%), os casos em homens que têm sexo com homens (HSH) corresponderam à maioria dos novos diagnósticos. (61,8%).

Este ano assinalam-se 40 anos da epidemia de VIH em Portugal e ainda não há cura para este vírus. O que é algo surpreendente dado que recentemente, num tempo recorde, o mundo criou vacinas contra a COVID-19. Haverá falta de investigação, vontade e investimento para se encontrar finalmente uma vacina ou uma cura para o VIH?

O que este novo relatório deixa claro é que ao contrário da grande evolução da medicação e diagnóstico da doença, o estigma e a discriminação associados à infeção por VIH persiste quase inalterável, com quatro em cada dez pessoas seropositivas a referirem terem sido alvo de algum tipo de discriminação social e 15% a reportarem já ter sofrido alguma situação de violação dos seus direitos. O que falta fazer para que este cenário mude?

“Ter VIH já não é uma sentença de morte e quem faz tratamento não transmite o vírus. Mas o estigma e desconhecimento persiste. E esse sim, mata. Ainda há quem diga que o VIH se transmite na saliva e nas casas de banho. Há coisas mirabolantes que permaneceram ao longo de décadas porque não foi feito um trabalho constante de estar sempre a informar como se transmite e se previne. O facto da minha filha saber, não quer dizer que a minha neta saiba”, afirma Maria José neste podcast.

Desde 1983 o estigma foi mudando de rostos. O HIV já foi considerado a doença dos gays, das pessoas travestis e trans, depois das prostitutas, das pessoas toxicopendentes até se perceber que era uma doença que podia infetar qualquer pessoa, fosse qual fosse a sua orientação sexual, identidade de gênero ou condição social. Mas a culpa e invisibilização ainda permanece, talvez por ser uma doença associada ao prazer, com todos os falsos moralismos associados a uma cultura judaico cristã…

Esta semana foi também notícia que o tratamento preventivo para o VIH, a PrEP, ou profilaxia pré-exposição, que é um comprimido que previne a transmissão do vírus da imunodeficiência humana (VIH), estará disponível fora dos hospitais no primeiro trimestre de 2024. Passando a ser mais um aliado contra a transmissão por via sexual, a par do preservativo.

Maria José Campos esperou muito por este momento. E enquanto tentava de todas as formas que o processo de implementação da PrEP avançasse, cinco amigos seus ficaram infectados com VIH. A médica atribui o atraso desta medida ao facto de durante muito tempo a comunidade científica ter sido contra este tratamento. Por preconceito.

“A PrEP é um grande avanço, chega a ser mais eficaz do que o preservativo, evita que alguém que contacte sexualmente com uma pessoa seropositiva se infete. Mas sabemos a situação do SNS. Isso vai levar aos centros de saúde um grupo grande de pessoas que vai solicitar mais consultas e análises.Não sei se os serviços estão preparados e se haverá formação dos médicos de família. Poderá haver um certo bloqueio. Vamos ver se poderia ser exequível ter esses medicamentos mais disponíveis nas farmácias, como a pílula do dia seguinte e anticoncepcional”

Já no livro “1983” dos artistas Nuno Alexandre e João Pedro Vale (Documento histórico e artístico rigoroso e cuidado que vale a pena adquirir), Maria José considera que a comunidade científica atrasara o processo porque achava que a PrEP era sinónimo de “devassidão”. E mais disse: “Eram exatamente as mesmas pessoas, com o mesmo discurso contra o preservativo, que anos antes impediram, por exemplo, que houvesse preservativos na escola.”

Com um profundo sentido de missão e humanismo, Maria José Campos nunca caiu nas armadilhas da superioridade moral, por ser médica, branca, de classe média e heterossexual, e tem sido ao longo destas 4 décadas uma aliada da comunidade LGBTQIA+, percebendo de perto os seus desafios, culturas e vivências, sem olhar o mundo à sua imagem. Evoluindo junto com estas pessoas e trazendo esse conhecimento para junto da classe médica e científica.

No final da primeira parte, Maria José é surpreendida com uma áudio comovente da atriz e ativista trans Jó Bernardo.



Na segunda parte desta conversa, Maria José começa por falar da amizade e do tanto que aprendeu com Jó Bernardo sobre a comunidade trans. Recorda ainda como começou no ativismo e se tornou aliada e cúmplice da comunidade LGBTQIA+ e recusou “as plumagens” da ribalta.

E se teve uma fatura profissional e pessoal por ser uma mulher contra um certo sistema, numa sociedade e classe profissional que considera ainda muito “conservadora”, “castradora” e “masculinizada”, sublinha o tanto que aprendeu e o mundo que ganhou com as comunidades da margem.

E volta a comover-se com um novo áudio, desta vez de Ricardo Fuertes, técnico nas áreas do VIH e dependências, também amigo de Maria José Campos, que aqui conta outros lados seus e deixa-lhe uma pergunta de boa reflexão. E há ainda espaço para se falar de sexualidade, sem culpas e vergonhas, e da importância de levar esse tema sem preconceitos seja à mesa com amigos ou nas consultas médicas.

Revela aqui que aos 68 anos, depois de sair de cena do mundo da medicina está a aprender a nadar, a falar italiano e, imagine-se, bordado japonês. E como não podia faltar, traz-nos música e literatura. As suas escolhas literárias são: “Puta feminista” de Georgina Orellano, e “O Negócio da Saúde - como a medicina privada cresceu graças ao SNS”, de Bruno Maia.


Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Tomás Almeida. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.

Voltamos para a semana com mais uma pessoa convidada. Até lá pratiquem a empatia e boas escutas!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com

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